sábado, 22 de agosto de 2020

POPULISMO DE OCASIÃO

Carlos José Marques, ISTOÉ
O Brasil, palco recorrente da esperteza política para engabelar incautos eleitores, presencia agora as artimanhas de um capitão para se tornar popular. Ou melhor: populista, no manjado ardil de distribuir benesses em troca de votos. Jair, o Messias, Bolsonaro faz isso à luz do dia, de maneira escancarada, em plena campanha pelas urnas (mesmo faltando mais de dois anos para o desafio da reeleição), enquanto o País é castigado pela morte à espreita e implacável de uma pandemia que não cessa e contra a qual o governo nada faz. O “mito” da conversa fiada e mal intencionada realiza o movimento não apenas em incursões atemporais aos rincões do Nordeste. Parte para o escambo imoral, diante da dor lancinante de famílias às milhares e da falta de recursos dos menos favorecidos, que não têm como aguentar a fome e respondem resignadamente a qualquer convocação em troca de um auxílio emergencial que é obrigação do Estado, mas que vem sendo ofertado em nome de um apoio lá na frente ao mandatário disfarçado de benfeitor de ocasião. Bolsonaro está em campo. Regateando o voto de cabresto. Parece gostar da ideia de se travestir de um Robin Hood dos pobres. Inventou a lorota de fazer o maior programa assistencial do mundo, o “Renda Brasil”, na verdade uma reembalagem desavergonhada do antigo Bolsa Família, talvez com mais recursos que pretende tirar sabe-se lá de onde. Curiosa metamorfose. Bolsonaro, logo ao assumir, dizia ser o Bolsa Família algo para “comprar o voto do idiota”. Uma maneira, no seu entender, de “tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda”. Agora planeja conceber uma versão ainda mais ampla, em situação de caos das finanças públicas, e anota essa como uma espécie de grande realização administrativa de seu mandato.
Então, tomando por empréstimo as palavras do próprio, tudo indica que ele saiu mesmo a “comprar o voto do idiota”. Bolsonaro deseja, é certo, garantir-se no poder. A qualquer custo. Vale recorrer até ao inimaginável nesse sentido. Qualquer sacrifício. Inclusive o da confraternização com quem normalmente lhe seria desprezível. De novo na longa ficha de desaforos e ignomínias lançados pelo capitão: quem não recorda de quando ele se referiu aos nordestinos como “paraíbas”, na adjetivação jocosa e preconceituosa? O capitão, precisando jogar para torcida, agora se lança nos braços dos “paraíbas”, já tratados por ele como “meu povo”. O mandatário não mudou. Segue professando as mesmas barbaridades ideológicas e os mesmos planos de retrocesso autoritário, típicos de um caudilho. Apenas aprendeu a disfarçar. Orientado a se calar, obedeceu e entendeu a vantagem. No paralelo, topou se lambuzar nos acertos espúrios com a ala fisiológica do Centrão. Vem logrando êxito também nessa esfera. Distribui cargos, verbas, autarquias. Entrega o dinheiro do povo e recebe o apoio de uma base carcomida. Egresso do baixo clero, Bolsonaro mergulhou de vez na sarjeta da política. Mas deve acreditar que os fins justificam os meios. Sonha em vender-se como um “salvador da pátria”. E segue metodicamente a cartilha. Para um líder carismático a imprecisão, por exemplo, é algo valioso. Bolsonaro não gosta de explicar. Debater. Argumentar. Apenas catequizar, com a técnica de ideias personalistas para ser visto como essência de um movimento. Grita platitudes políticas rasas e simples (como a da “ameaça dos esquerdopatas”), faz reivindicações nada válidas, entre as quais a do fim dos radares móveis nas estradas. Mas o discurso enfático e repetitivo inebria fanáticos em geral. O bolsonarismo cresce na polarização. Falar de uma guerra imaginária contra o comunismo – seja lá o que queira dizer com isso hoje — funciona de alavanca. Está nos anais da história. A briga do nazismo contra esse mesmo comunismo (vale lembrar!) acabou por conduzir Adolf Hitler ao poder, em meio ao crash de 1929. País em crise, sindicalistas nas ruas reclamando direitos, o povo passando fome e o Fuhrer aproveitou para pregar uma nova Alemanha sob a sua liderança. “Nossos opositores querem destruir o país”, dizia — algo nada diferente do que é entoado por aqui hoje. A Alemanha multifacetada politicamente por 30 partidos não oferecia resistência àquela onda e as pessoas famintas e desesperadas ansiavam assim por um salvador, que hipnotizou e arrebanhou seguidores desesperados à causa. O mentor da comunicação nazista, Joseph Goebbels definia assim o adorado líder: “Hitler está acima das maquinações e eu o amo dessa forma: simples, infantil, mas autêntico”. A elite alemã, mais assustada com o comunismo do que com aquele pitoresco orador Hitler, se deixou levar. Numa visão distorcida da realidade, acabou convencida de que aquela pantomima, que gritava contra judeus e comunistas, carregava uma força mística e carismática capaz da transformação que desejavam. Ali desapareceu a democracia. Hitler, encarado como um Messias, foi de chanceler a ditador. Em um filme fake news, onde maquiava aberrações e as convertia em avanços, batizado de “O triunfo da vontade”, fez a cabeça de uma geração. E segue servindo de referência em muitas ocasiões. Recentemente, o governo Bolsonaro, na propaganda publicitária elaborada pela Secretaria de Comunicação (SECOM) e lançada em meios aos impactos da Covid-19, chegou a incitar que “o trabalho liberta”, parafraseando o lema estampado no portão do infame campo de concentração de Auschwitz. Um dos secretários de Cultura do capitão, Roberto Alvim, depois demitido, chegou a encenar um espetáculo grotesco, imitando o ministro nazista Goebbels. E o próprio filho Eduardo Bolsonaro, tentando provocar uma espécie de campeonato ideológico doente, já disse que o comunismo era pior que o nazismo. Só é, portanto, deslocado de tempo e espaço o paralelo que se percebe nos dois movimentos. Messias Bolsonaro, em pessoa, numa visita a Israel, profanou a memória dos perseguidos buscando misturar as duas coisas. Disse ser o nazismo uma espécie de comunismo. Na ideia da narrativa distorcida, falsa, ilusória, reside o maior trunfo do cinismo populista. Hitler, também encarado por alguns como uma espécie de messias, montou mais que uma legião, criou uma religião e virou dela o profeta do apocalipse, o populista da mentira. Bolsonaro das paragens tropicais vai ampliando o latifúndio de obreiros de uma seita sem causa. Quer ser venerado. Por nada. Não governa, não realiza, não constrói, nem desenvolve uma nação. Mas pontifica como “salvador”. Típico dessas figuras. Não para menos, o decano da Suprema Corte, Celso de Mello, comparou o Brasil dos dias atuais à Alemanha hitlerista, dado que nos dois países o ódio à democracia e a ode ao populismo, na pretensão de instaurar uma “abjeta ditadura”, seguiu seu curso. “Guardada as devidas proporções, o ‘Ovo da Serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar, está prestes a eclodir no Brasil”. Que a sua profecia não se realize.
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