Com ares de ironia, como lhe era peculiar, o constituinte e
antológico economista, pai do liberalismo nativo, Roberto Campos, alertou,
décadas atrás, sobre o pendor ao casuísmo latente de seus pares de Congresso,
de ontem e de hoje: “cada parlamentar sente uma tentação insopitável de
inscrever no texto sua utopia particular”, disse o mestre Campos. Alguns deles
vão ainda mais adiante na ambição e querem refazer o texto todo, rasgar a Carta
e começar outra, para acomodar anseios quase sempre inconfessáveis –
invariavelmente autoritários. E eis que o líder do governo na Câmara, Ricardo
Barros, animou-se também a tirar a sua casquinha, jogando a ideia como balão de
ensaio para ganhar uns minutos de fama, na esteira de uma interpretação às
avessas do que ocorreu no Chile recentemente.
Lá foi aprovada a convocação de uma assembleia constituinte
para finalmente enterrar a peça constitucional alinhavada pela ditadura militar
de Pinochet com toda sorte de limitações aos direitos fundamentais, que vingava
até hoje. O Chile andou de uns anos para cá no trilho dos princípios
democráticos, embora amarrado a uma Carta repleta de retrocessos. Tenta agora a
transição, sonhando com o modelo, que considera ideal, de uma constituição
cidadã, tal e qual a brasileira, movida a compromissos sociais, em consonância
com a modernidade do mundo.
No Brasil, ao contrário, foi redigida a Carta justamente
quando o País saiu do regime das botinas militares, do obscurantismo que nos
legou atos constitucionais espoliadores da liberdade, e ali, nos idos de 1988,
a duras penas, iniciou a sua escalada bem sucedida de redemocratização.
Situações distintas, objetivos inversos. Ricardo Barros, no incorrigível
cacoete de varrer da frente obstáculos aos planos mirabolantes e ímpeto
gastador dos atuais aliados do capitão, almeja empurrar o País no caminho de
volta, de regresso institucional, mandando pelos ares avanços conquistados.
Casuísmo na veia.
Barros é um prócere do Centrão. Como todos sabem, a alcunha
de “Centrão” classifica aquele amontoado disforme de políticos aloprados, sem
compromisso com nada, cuja convicção varia ao sabor dos interesses, sempre
ligado ao oportunismo para levar vantagem onde der, que já apoiou o PT, pulando
de galho em galho, até vir parar no outro extremo, nas hostes bolsonaristas,
que lhe deram guarida porque o capitão assim quis. Ali aboletados, Barros e a
tropa rasa baixo clero de Messias tentam esconder a incompetência jogando a
culpa na Constituição que nada fez para o caos erigido por eles. Cabe a
pergunta: mudar a Carta Magna a título de que? Quem levanta tamanha idiotice
não entende nada de história, de governabilidade, de sentido das regras que
regem uma nação e as sociedades em geral em qualquer parte do mundo.
Constituições são revistas, mudadas, quando se enfrentam
transições de regime. O Brasil, ao declarar independência de Portugal, teve a
primeira assembleia constituinte, convocada por Dom Pedro I, que quase dois
anos depois outorgou a Carta pioneira desse imenso território. Ao sair da
Monarquia para a República, o País refez o documento. Nos idos de 30, na
entrada e saída de uma nova ditadura, mais duas cartas. E, assim,
sucessivamente, cada uma delas prenunciando reviravoltas no sistema em vigor.
A hipótese de nova constituinte em pleno estado democrático
de direito teria, como bem classificou o ex-presidente Michel Temer,
constitucionalista por formação, odor de golpe. E nem poderia ser interpretada
de outra maneira a artimanha, de caráter vil, grotesco e estapafúrdio. Diga-se,
de passagem, que Barros não é o primeiro a levantar uma sugestão como essa fora
de contexto. O quadrilheiro e ex-presidiário Lula aventou também a patacoada.
Sua sucessora e poste, Dilma Rousseff impichada, idem. É típico dos
espertalhões sem causa.
Hugo Chaves, na Venezuela, fez um lixo constitucional,
acabou por dominar a suprema corte local, o parlamento e deu no que deu. Na
Hungria a mesma coisa. Uma bobajada inominável. E todos precisam estar atentos
à recorrente lição e importante aviso: sabe-se como começa uma assembleia
constituinte, jamais como termina. Que monstro sairia daí, mexidas costuradas
em pleno momento de instabilidade e sob o domínio do bloco do Centrão? Dá até
medo imaginar.
No varejo, naturalmente, qualquer constituição apresenta
falhas, defeitos de método e objetivo. Basta mudá-los. Se existem capítulos a
melhorar, pactuem o ajuste dentro da lei. Como? Enviando projetos de emenda
constitucional, conquistando três quintos dos congressistas na Câmara e no
Senado, em duas votações, e emplacando os tais arranjos — se é que eles são
mesmos necessários, muitos, com certeza, não. Dentro da normalidade do sistema
é possível mexer em tudo! À exceção das cláusulas pétreas, o resto pode. Por
que não buscar o roteiro convencional? Falta articulação, poder de
convencimento, propostas razoáveis? E a culpa é de quem? Da Carta Magna é que
não é.
Então, senhor Ricardo Barros, trate de realizar o seu
trabalho, cumpra com a missão que lhe cabe de harmonizar interesses e
negociações. Não consegue encaminhar as reformas? Incompetência sua! Não venha
querer apagar uma Carta, pilar de nossa democracia, filosoficamente humanista,
culturalmente civilizada, para cumprir etapas das tarefas devidas a sua pessoa.
Do contrário, peça para sair. Não se pode violentar um arcabouço regimental da
magnitude e beleza institucional como o que está em vigor — sem dúvida, o
melhor já entregue ao País — para acobertar desajustes de uma gestão sem pé nem
cabeça. Na gambiarra, não vai. Quer mexer em direitos? Por que não começa pelos
seus e da comunidade elitizada dos servidores públicos? Os direitos do cidadão,
ali contemplados na Carta — e dos quais o senhor reclama, por achar exagerados
—, são os deveres do Estado.
O senhor quer cortá-los para acomodar propostas que outorgam
mais poder a patota de sempre. Não é a Constituição que não cabe no Brasil de
hoje, como alega. São intentos oportunistas, manobras usurpadoras como os que o
senhor trouxe, que não cabem no instrumento normativo por todos nós referendado
lá atrás. Vá trabalhar parlamentarmente. Quer aumentar a força do Executivo ou
mexer na relação de poderes? Saiba que constitui uma ameaça gritante à
democracia, algo que o povo não irá aceitar. O Brasil não tem problema
constitucional. Tem, no momento, problema operacional, de controle, eficácia e
competência de quem está sentado na cadeira do Planalto.
É patética uma discussão constitucional como a que foi
proposta pelo deputado, líder de ocasião — quiçá com o aval velado do supremo
comandante. Conversa jogada fora. Ele e os demais ali querem escamotear o fato
de um governo que não consegue formar maioria, buscando mudar o País na marra.
Vão catar coquinho! É melhor conviver com a incapacidade crônica do elenco, a
falta de rumo, do que uma saída delinquente como tal. Cadê o projeto de
governo? Não tem nenhum. Não há proposta de desenvolvimento, caminhos
estruturantes. No que acredita a administração Bolsonaro? Quais os valores ali
instaurados? Inexistem projetos para a Educação, para a Saúde, para o Meio
Ambiente, para os Direitos Humanos, para a Cultura, para as Relações Externas.
Nada avança. É desordem generalizada e com desmonte sistemático do aparato em
funcionamento até a chegada dessa tropa ao poder.
Os ministros, os líderes de governo, o núcleo duro do
pelotão de frente da era bolsonarista expõem em praça pública inabilidades
notórias e para escaparem da balbúrdia rogam pela “solução mágica”. Presidente
Bolsonaro e deputado Ricardo Barros, que lhe presta vassalagem, vão cobrar
resultados dos ministros e façam alguma coisa de útil também. Não venham
pressionar a sociedade para fazer uma nova Constituição. Que conversa é essa?
Típica de governo encrenqueiro, retrógrado, perdido como o atual. De uma vez
por todas, é bom que fique claro depois dos seguidos episódios de afrontas
registrados nos últimos tempos: Não se pode mexer na forma do poder, nos
direitos e garantias.
Sobre corte de direitos e vantagens, comecem por onde eles
estão mais evidentes: na máquina do Estado, no Legislativo, no Judiciário e no
Executivo. Depois disso, sim, o Brasil será diferente. É preciso que os
políticos comecem a trabalhar a favor da sociedade e não o contrário. Fim dos
privilégios é possível, desde que haja boa vontade de quem decide. Como pode um
Centrão, que nunca foi para a oposição, falar em incoerência constitucional? É
um escárnio o que se ouve desses políticos. Centrão apoiou o petismo e, logo a
seguir, o bolsonarismo, fez e faz parte da base dos dois, e a incoerência é da
Carta Magna? Os factoides precisam ceder vez a ações e projetos efetivos.
Patética anarquia promove uma administração que não sabe priorizar os reais
anseios do cidadão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário