Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes:
somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos
um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em
certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.
A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir
a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que
centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar
a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que
combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a
cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.
Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico
ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis.
Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas
nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de
auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em
requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social.
Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade
de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre
analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.
Como compreender que tenhamos chegado a esse ponto? A
interpretação geralmente aceita é a de que se trata do desfecho inevitável da
colonização portuguesa. São “grilhões do passado”. Confesso que essa teoria não
me agrada, mas não a rejeito in totum. A debilidade de nossa ordem normativa
(ou seja, de nosso sistema de valores e normas morais) em parte se deve ao
curso de nossa História. Decididamente, nunca tivemos e não temos nenhuma
inclinação calvinista. Entre nós, nem o catolicismo, nem as religiões de origem
africana, nem a família e muito menos o sistema de ensino facilitaram a
formação de padrões morais introspectivos, de caráter individual. Sem esquecer
que escravos, seres por definição carentes de interesses e desejos, não tinham
de optar entre alternativas, portanto, não tinham que refletir sobre critérios
de opção.
De qualquer forma, prefiro partir de premissas atualizadas.
Parto da proposição de que nosso país, como qualquer outro, pode ser
visualizado como uma justaposição de três grupos distintos: A, B e C.
O grupo A é composto pelos verdadeiros cidadãos. Gente honesta,
que respeita os semelhantes, e não se afasta dos padrões morais aceitáveis e
corretos em nenhuma circunstância. “No matter what”, como se diz em inglês.
No extremo oposto, o grupo C concentra a gente da pior
espécie. Não só ladrões de colarinho branco, mas ladrões de verdade, gente
violenta e assassinos que cedo manifestam tal inclinação e assim se comportarão
ao longo da vida, em qualquer circunstância. “No matter what”.
O grupo B, presumivelmente o maior, é um emaranhado
extremamente complexo. Compõe-se de gente que pode pender para um lado ou para
o outro, conforme as circunstâncias. Gente que varia da simples malandragem até
tipos mais perigosos, mas sem configurar um padrão previamente determinado. É
plausível supor que o grupo B seja proporcionalmente maior em países mais
pobres do que em países ricos, ou em momentos de depressão econômica do que em
momentos de prosperidade, e em países governados por indivíduos e instituições
corroídas pela ilegitimidade – retomo esse ponto adiante. Examinado ao microscópio,
o grupo B deixa entrever alguns traços principais. O mais importante é o que
Thomas Hobbes (1651) descreveu como a “luta de todos contra todos”. Sim, nesse
grupo a luta pela sobrevivência é renhida e constante. Muitos dos que o
integram não sabem do que vão viver amanhã, e não dispõem de recursos básicos
(como uma boa escolaridade) que os tornem mais competitivos na arena cotidiana.
Muitos não têm emprego, ou recaem no desemprego ao primeiro impacto de uma
crise. Muitos conseguem trabalho, mas em empregos de má qualidade, mal
remunerados, que não propiciam segurança, perspectiva de carreira,
continuidade, e muito menos motivação. E não nos esqueçamos de que o Brasil
nada possui que se assemelhe a uma classe média consistente, firmemente assentada
em pequenos e médios empreendimentos, urbanos ou rurais.
Pois bem, o exemplo, como sabemos, deve vir de cima. Como
poderá uma sociedade cujo núcleo coexiste com a amoralidade elevar-se a um
nível de civilidade mais alto, se sua cúpula institucional – o Estado e as
autoridades que o dirigem – todo dia nos brinda com aberrações jurídicas e
acrobacias jurídicas de toda ordem, sem esquecer a corrupção propriamente dita?
Se uma multidão de desempregados e subempregados recebe diariamente a
informação de que, nos três Poderes, os que mandam metem a mão em cifras
astronômicas?
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das
Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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