Ele entrou na faculdade de história da Universidade Estadual do Ceará (Uece) achando que a ditadura brasileira (1964-1985) havia sido uma “revolução”. Ao longo do curso, Caio Felipe Rezende passou por um processo de desconstrução do que ouvia em casa. Resolveu ir atrás da história da família e do país. Descobriu o que foi a ditadura e que seu pai havia sido um de seus agentes.
Pouco depois, trocou de curso e foi fazer cinema.
Decidido a romper o silêncio da família sobre a ditadura, Rezende se juntou a
outro brasileiro cujo pai atuou na repressão. Juntos montaram o projeto
“Histórias Desobedientes Brasil”, para reunir pessoas que questionam a atuação
de seus parentes como agentes da repressão. A iniciativa dos brasileiros é
inspirada em movimentos que já existem na Argentina e Chile, onde filhos, netos
e sobrinhos questionam seus parentes por sua atuação durante as ditaduras ocorridas
nestes países.
Hoje com 26 anos, Rezende está produzindo um documentário
com entrevistas de vários agentes da repressão. Quer contar a história deles,
mas também o processo de transformação que ele mesmo viveu nesse percurso – “um
herdeiro da repressão que não aguenta mais.”
Em depoimento a Tatiana Merlino
Nasci em 1994 e
cresci ouvindo que a ditadura tinha sido maravilhosa, que era um tempo em que
se lutava contra a subversão, que ela era necessária para limpar o Brasil.
Ouvia isso de toda a minha família, uma família de militares do Ceará. Alguns
deles colaboraram com a ditadura. Meu pai era um deles.
A fonte de
histórias sobre o passado da família sempre foi a minha mãe adotiva, que é
minha avó biológica. Quando eu era criança, depois do almoço, a gente ia
descansar na cama dela. Ouvíamos rádio e ela me contava histórias. Uma delas
foi sobre quando uma de suas duas filhas adoeceu e ela foi atrás do meu pai, no
quartel. A cidade estava deserta e o quartel cercado com sacos de areia e
soldados. Não deixaram que ela falasse com meu pai, pois era um momento de
alerta máximo. Quando chegou ao hospital do Exército, o cenário era o mesmo.
Após o atendimento, o médico lhe disse: “Você não está sabendo o que está
acontecendo? É a revolução…”
Em 2012, entrei na
faculdade de história sabendo que minha família tinha envolvimento com o regime
militar. Na época, para mim, não era ditadura, era só regime militar, ou
revolução. Entrei na universidade com o compromisso de tentar entender esse
passado, do qual eu sentia orgulho. Nessa busca, o castelo de cartas foi se
desmanchando. Fui vendo que tudo que eu havia ouvido em casa não batia com
fatos históricos. Tive muitos confrontos com meus professores. Mas, mesmo me
recusando a acreditar em certas coisas, a vasta documentação sobre o tema não
me deixava dormir sossegado.
Desde que comecei a
enfrentar e conhecer a história até os dias de hoje, vivo um processo de
desconstrução da versão de que aquilo era maravilhoso, correto, o que o Brasil
precisava. Essa versão estava muito enraizada em minha família.
Acho que o evento
mais marcante dessa época aconteceu quando eu já estava saindo do curso de
história e começando a estudar cinema. Meu carro quebrou, e, para consertar,
meu pai chamou o mecânico da nossa família há quarenta anos, e que serviu junto
com meu pai. Começamos a conversar e ele me contou muitas histórias da ditadura.
Mas disse: “só estou te falando isso porque se tem alguém que sabe desse
negócio das informações é teu pai.” Não consegui disfarçar minha surpresa e ele
percebeu. O assunto morreu. Meu incômodo começou a crescer mais.
Esse processo
coincidiu com o período da Comissão Nacional da Verdade [que funcionou no país
entre 18 de novembro de 2011 e 10 de dezembro de 2014], que gerou um incômodo
muito grande na minha família inteira. Na hora do Jornal Nacional,
quando se noticiava o trabalho, as investigações da Comissão, surgia um clima
de tensão. Meu pai ficava nervoso, falava que era uma palhaçada, uma grande
farsa, que eles [atingidos pela ditadura] queriam receber dinheiro das pensões.
E que jamais falaria se fosse chamado.
À medida que o
incômodo em casa aumentava, o meu incômodo aumentava também. Eu queria entender
por que meu pai estava tão nervoso. Se a ditadura tinha sido tão maravilhosa,
por que estava havendo aquela Comissão?
Em 2014, quando
Bolsonaro cuspiu no busto de Rubens Paiva [ex-deputado assassinado pela
ditadura em 1971], doeu muito ver aquilo e ele seguir sem nenhuma punição. Foi
o cúmulo. Eu achava que Bolsonaro representava a espetacularização do ridículo
e demorei a ver semelhanças entre ele e pessoas da minha família, que na época
eu idolatrava.
Aproveitei o meu
lugar de filho de militar e fui atrás de amigos do meu pai. Peguei a agenda
telefônica dele e fui ligando, perguntando sobre aquela época. Fui vendo o que
me interessava na história dessas pessoas, se as coisas que eles narravam cruzavam
com fatos que me ajudariam a entender a época. Acabei encontrando pessoas que
testemunharam muitas coisas, pessoas que conviveram com meu pai e pessoas que
atuaram diretamente na repressão.
Algumas pessoas
assumiram torturas, sequestros, assassinatos. Eu vi que eles tinham uma
importância para eu conhecer o passado do meu pai, para me conhecer e encontrar
meu lugar na história e no mundo. Eu tinha que pegar aquela vontade de entender
o passado, somar isso ao acesso que eu tinha a essas pessoas e tentar fazer
algo de útil. Continuei e ainda continuo investigando meu pai. Dediquei parte
do meu esforço a fazer com que colegas dele falassem – pessoas que se
envolveram em ações de conhecimento nacional e que conseguiram ficar anônimas
durante todo esse tempo.
Esses militares aos
quais eu tive acesso falaram bastante coisa. Isso foi em 2015 e 2016, quando eu
já estava me afastando do curso de história e me dedicando ao cinema. Achei que
poderia avançar mais livremente se fizesse um documentário, gravasse as entrevistas.
Deu certo, e é o que venho fazendo. O filme foca bastante na trajetória de um
capitão do Exército que atuou muito no Nordeste.
Quando falo com meu
pai sobre o assunto, ele fica nervoso, diz que sofri lavagem cerebral, me
critica bastante. Fui perguntando coisas ao meu pai, ligando os pontos, mas ele
se esquiva e nega quando o assunto é repressão. Mesmo quando há indícios, ele
nega. Não tenho certeza sobre o quanto ele participou da repressão. Meu esforço
para encontrar a verdade é um enorme castelo de cartas. Os militares
brasileiros foram muito eficientes em matéria de obediência e destruição de
provas.
Apesar disso, nós
conversamos bastante. Ele viu o filho que vibrava pelas Forças Armadas virar um
defensor dos direitos humanos.
No final de 2018,
fiz um curso de documentário em Fortaleza. Ao final do curso, os alunos podiam
falar sobre seus projetos. E, pela primeira vez desde 2015, quando eu tinha
começado a fazer o documentário, falei publicamente sobre meu projeto, sobre
quem eu era e que minha família tinha envolvimento com a ditadura. Depois
disso, muita coisa mudou, muita gente me procurou.
No curso, recebi a
dica para assistir ao filme chileno O pacto de Adriana, da cineasta
chilena Lissette Orozco (a diretora vai em busca da história da sua tia
Adriana que trabalhou na polícia secreta do ditador Augusto Pinochet). Só
consegui assistir meses depois, em 2019. Então, fui procurá-la. Queria
conversar com ela. Pela primeira vez, vi que existia uma pessoa com uma
história parecida com a minha. Ela começou o projeto achando que ia
salvaguardar a história da tia, que ela falava a verdade, e eu comecei assim
também. Conversei com ela neste ano de 2020 e, a partir da nossa conversa, ela
me chamou para conhecer os “Desobedientes” (Coletivo Histórias Desobedientes,
formado por filhos e familiares de criminosos de lesa humanidade em defesa da
memória, verdade e justiça. Há um coletivo que atua no Chile e outro na
Argentina, ambos reúnem familiares de repressores).
Participei de
alguns encontros com eles. Foi um alívio encontrar um lugar confortável para
falar sobre minha história sem me sentir julgado. É um espaço de conversa, de
compreensão.
Logo depois, foi
uma grande surpresa saber que tinha outro brasileiro, filho de um agente da
ditadura, que também estava interessado em falar sobre isso. Ele havia entrado
em contato com o movimento dos “Desobedientes” da Argentina. Resolvemos,
juntos, montar o “Histórias Desobedientes Brasil”, integrado por
familiares de genocidas que abraçam as bandeiras da Memória, Verdade e Justiça.
Criamos uma página
no Facebook e lançamos um manifesto.
Parece que eu tinha
obrigação de fazer isso, mesmo que fosse difícil. E é. Nunca vai deixar de
ser. Mas me sinto na obrigação. Não posso mudar o passado da minha
família, nem reescrevê-lo, apagá-lo. O que posso fazer é falar sobre isso, é o
mínimo. Meu pai sabe que estou no movimento.
Tenho certeza que
há muitas pessoas como eu espalhadas pelo Brasil. Pessoas com esse desespero em
falar, mas que não têm coragem, que têm medo. É como se fosse um grito entalado
na garganta.
Ao mesmo tempo,
tenho receio de sofrer algum tipo de retaliação. E é uma das razões pelas quais
a gente tem se preservado um pouco até quando nos sentirmos seguros.
Na medida em que os
agentes com quem conversei baixaram a guarda, vi quem eles são, o que defendem,
o que negam, é nojento. Veio uma regurgitação, uma implosão que vem acontecendo
desde então. Não dava mais. Eu não aguentava mais, estava ficando sufocado.
Tenho certeza que não somos os únicos. Com o coletivo, queremos mostrar que há
um lugar onde as pessoas podem conversar. Imagino que isso não vá acontecer de
hoje para amanhã, mas quero que isso aconteça.
A questão da
ditadura não está fechada, não está resolvida. A chegada de Jair Bolsonaro à
Presidência me trouxe sentimentos paradoxais. Por um lado, sugou as esperanças
que eu tinha em relação a fechar esse capítulo. Mas, ao mesmo tempo, faz com
que a gente não se permita parar, jogou gasolina na necessidade de eu continuar
atuando. Mesmo que demore tempo, não posso parar.
O filme que estou
fazendo é sobre os agentes. Mas é também o ensaio de um herdeiro da repressão
que não aguenta mais. Que sente necessidade de falar sobre isso. É a exposição
da minha desconstrução, a forma como a radicalização do Brasil me radicalizou.
Não dá pra avançar
nesse tema sem falar sobre os filhos de agentes. Não é possível que a gente
continue varrendo isso para debaixo do tapete, fingindo que não é importante,
que a gente não faz parte da quebra do silêncio.
Eu ainda sou novo,
mas o que vou falar para meus filhos sobre a ditadura, quando os tiver? Quero
dar respostas diferentes quando me perguntarem sobre a ditadura militar.
Durante muitos
anos, achei que não fosse ter coragem de conversar com um familiar de algum
desaparecido. Eu tinha muita vergonha. Agora penso diferente, teria vergonha se
não falasse. Espero que esse chamado à desobediência que estamos começando
possa se transformar em algo muito bom.
Não sei se vou
conseguir, mas eu quero escrever uma história diferente da dos homens da
família que disseram sim à colaboração com a ditadura. É o que estou tentando
fazer.
*
A jornalista
Tatiana Merlino foi editora das revistas Caros Amigos e Carta
Capital, fundadora da Ponte Jornalismo e da Agência Pública. Trabalhou na
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. É coeditora do livro Luta,
substantivo feminino – Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na
resistência à Ditadura, organizadora de Infância Roubada –
Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil e coeditora
de Heroínas desta História – Mulheres em busca de justiça por
familiares mortos pela ditadura. Tatiana é sobrinha de Luiz Eduardo
Merlino, jornalista assassinado aos 23 anos sob tortura, em 1971, no DOI-CODI
de São Paulo, sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Estudante de cinema
na Unifor, diretor de fotografia nos curtas Matraca e A Mulher da Pele Azul.
Está dirigindo seu primeiro longa.
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