Com a grosseria habitual, o presidente Jair Bolsonaro mandou
um cidadão incomodado com a alta de preços comprar arroz na Venezuela. Também
de forma habitual, a reação tosca serviu para afastar um assunto desagradável e
complicado. Não serviu, no entanto, para atenuar o desajuste dos preços nem
para afastar uma das principais ameaças à continuação da retomada econômica. A
inflação diminui o poder de compra das famílias, já afetado pela redução do
auxílio emergencial e pelo desemprego recorde. O custo do arroz, tema do
incidente na Feira Permanente do Cruzeiro, no Distrito Federal, é apenas um
detalhe bem visível do problema diante do Executivo. Será o presidente capaz de
perceber o desafio real?
Bem comportados até há pouco tempo, os preços no varejo
voltaram a assombrar as famílias. A prévia da inflação, o Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), bateu em 0,94%, a maior variação para
um mês de outubro desde 1995. A alta acumulada no ano foi de 2,31%. Em 12 meses
o IPCA-15 subiu 3,52%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Sem correção da renda familiar, preços mais altos acabam
resultando em menor poder de consumo.
A maior pressão, como no mês anterior, veio de alimentos e
bebidas. Esse componente ficou 2,24% mais caro e, por seu peso no orçamento
familiar, contribuiu com 0,45 ponto para o aumento geral de 0,94%. Carnes, óleo
de soja, arroz, tomate e leite longa vida foram os produtos com maiores altas
de preços, na parte alimentar.
Famílias de baixa renda são as mais prejudicadas pelo encarecimento
da comida e de outros itens essenciais, como o gás de cozinha. Em setembro,
houve aceleração da alta de preços para famílias de todas as faixas de renda e
as mais pobres foram as mais afetadas.
A inflação por faixa de renda mensal é acompanhada
regularmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As famílias
são agrupadas em seis faixas. Em setembro, as taxas
de inflação dos diferentes estratos variaram amplamente, desde 0,29% para a
faixa de renda muito alta até 0,98% para a de renda muito baixa.
Cerca de três quartos da inflação dos muito pobres, em
setembro, são explicáveis pela alta de preços da comida. Para as famílias de
renda média, a alimentação mais cara produziu 0,39 ponto porcentual da inflação
de 0,56%. Para os consumidores do extremo superior o item alimentação
contribuiu com 0,20 ponto do total de 0,29%. A diferença, quando se observa o
período de um ano, é muito grande. Nos 12 meses até setembro de 2020 a inflação
da classe de renda muito baixa atingiu 4,3%, enquanto a das pessoas de renda
muito alta ficou em 1,8%.
As famílias pobres foram, proporcionalmente, as mais
beneficiadas pelo auxílio emergencial, diminuído a partir de setembro e com
extinção prevista para o fim de ano. Essas famílias também estão, normalmente,
entre as mais afetadas pelas más condições do mercado de trabalho.
No fim de setembro estavam desocupados 14 milhões de
trabalhadores, 14,4% da força de trabalho, mas o número de pessoas em condições
precárias (desempregadas, desalentadas e outras) passava de 30 milhões.
Empregos devem surgir neste fim de ano, mas a melhora é
sazonal. Não se sabe se as contratações igualarão as de 2019 nem se a mão de
obra retida pelas empresas na virada do ano, quando a maior parte é dispensada,
será maior ou menor que a de períodos anteriores.
Como nem o Orçamento está definido, é difícil qualquer
previsão para 2021. Além disso, o Executivo nem sequer esboçou uma estratégia
para sustentação da retomada. Em setembro, o Índice
de Confiança do Comércio, medido pela Fundação Getúlio Vargas, diminuiu de
99,6 para 95,8 pontos, depois de cinco altas consecutivas. O Executivo precisa
informar com urgência – e de forma crível – como pretende manter a recuperação
e arrumar suas contas a partir de janeiro. Sem um mínimo de segurança, será
difícil planejar os negócios, o dólar continuará alto e a inflação seguirá
pressionada. O problema é bem mais grave que o preço atual do arroz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário