Recente pesquisa de opinião pública atribuiu a Bolsonaro 40%
de aprovação, isso na mesma semana em que o Brasil passou pela vergonha de
discurso irresponsável do presidente da República na ONU, no qual disse ter a
Justiça atribuído aos governadores a condução das medidas no campo da saúde
pública, além de culpar “índios e caboclos” pelos incêndios na Amazônia. O
resultado da pesquisa revela a consagração do embuste como expediente para
enganar uma população que admira mais o histrionismo do governante do que a
realidade visível.
Membros da imprensa e da sociedade civil se manifestaram
contra o desplante do discurso. Mas grande parte de nosso povo não quer ler nem
ouvir manifestações revestidas de racionalidade e não alimenta interesse em se
informar e minimamente avaliar os fatos.
Em maio, quando 30% consideravam o governo Bolsonaro bom ou
ótimo, foram lançados vários manifestos tradutores do sentimento e pensamento
dos demais 70%, destacando-se o documento editado pelo movimento Estamos
Juntos. Do manifesto realçam dois parágrafos. “Somos a maioria e exigimos que
nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu
papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa
o país”; e “Temos ideias e opiniões diferentes, mas comungamos os mesmos
princípios éticos e democráticos. Queremos combater o ódio e a apatia com
afeto, informação, união e esperança”.
Outro manifesto, de cerca de 600 juristas, intitulado Basta,
destacava que o País estava em crise política “quando já imerso no abismo de
uma pandemia que encontra no Brasil seu ambiente mais favorável, mercê de uma
ação genocida do presidente da República”. E mais adiante sinalizava: “Todos
nós acreditamos que é preciso dar um BASTA… Não nos omitiremos. E temos a
certeza de que os Poderes da República não se ausentarão”.
Hoje estamos quase virando minoria e, em vez de se ter
dignidade do presidente nesta devastadora crise sanitária, o que há é
continuada falta de solidariedade e de coragem de sua parte. Em 18 de setembro
ele fez chacota das medidas de isolamento, ao dizer a agricultores: “Vocês não
pararam durante a pandemia. Vocês não entraram na conversinha mole de ‘fica em
casa’, ‘a economia a gente vê depois’. Isso é para os fracos”.
Exigia-se, nos manifestos, que houvesse afeto, informação,
presença dos Poderes da República. O que se vê, todavia, da parte de Bolsonaro
é apenas desprezo pela dor dos doentes e de seus familiares, humilhação dos
receosos de contrair o vírus causador de tantas mortes, ofendendo todos os que
se cuidam ao chamá-los de fracos. Elogia, assim, o ideal infantil do Superman,
que munido de substância milagrosa, a cloroquina, uma anticriptonita, enfrenta
o vírus de peito aberto.
Clamava-se por ação dos Poderes da República, mas há um alarmante
silêncio dos principais atores políticos, a começar pelos presidentes da Câmara
dos Deputados e do Senado Federal, que em sua ambição de reeleição,
manifestamente inconstitucional, se fazem de surdos.
Nos manifestos requeria-se informação veraz, mas o que se
tem é desinformação. Na ONU o presidente disse: “Por decisão judicial, todas as
medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos
27 governadores das unidades da Federação. Ao presidente, coube o envio de
recursos e meios a todo o País”.
Mentira. O voto do ministro Fachin, relator da Adin 6.341,
bem esclarece ser “competência comum dos entes federativos a adoção ou
manutenção de medidas restritivas durante a pandemia da covid-19. Assim, a
princípio, tanto a União quanto os Estados e os municípios podem (e devem)
adotar imposição de distanciamento social”. O ministro Gilmar Mendes, no seu
voto, elucida: “Todas as esferas federativas que compõem o SUS (União, Estados,
municípios e Distrito Federal) possuem deveres e responsabilidades com a saúde
pública, e é de todas elas que devem ser cobradas atuações administrativas
eficazes, preventivas e de assistência”.
A verdade deixou de ser um valor, haja vista Bolsonaro
blasonar-se, com sucesso, da concessão do auxílio emergencial, quando propusera
só R$ 200 e foi o Congresso a impor o triplo. No lugar de sinceridade, união e
afeto, vive-se a criação artificial de inimigos e a exploração do medo,
geradora de crenças salvacionistas e polarizadoras.
O que fazer diante desse quadro? Como diz Milagros Pérez
Oliva no El País (27/9), não se tem antídoto certo para afrontar a teoria da
conspiração do neopopulismo.
Contudo não há que entregar o jogo, asfaltando o caminho do
autoritarismo digital. Cumpre fazer o debate, mesmo que com isso se venha a ser
acusado de fazer parte da conspiração.
Cabem, então, novos manifestos dos grupos de maio passado e
ocupar as redes sociais, denunciando com firmeza o atual descalabro político,
econômico e moral. É hora de organizar a oposição sem partido, visando a
preservar a racionalidade e a democracia.
* MIGUEL REALE JÚNIOR É ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR
SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE
LETRAS; FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
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