Leitura de 'A República das Milícias' leva à
constatação de que dias piores virão
O clã Bolsonaro sempre exalta o direito dos cidadãos a ter e
usar armas. Ignorante que só ela, a primeira família não usa o argumento óbvio:
o direito do povo em mandar bala em quem ataca a sua soberania está inscrito na
segunda emenda à Constituição americana.
Diz ela: "Sendo uma milícia bem regulamentada
necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar
armas não deve ser violado".
Aprovada em 1791, a emenda é fruto de levantes libertários:
a revolução inglesa do século anterior; a francesa, que se encontrava no auge;
e a guerra americana contra a coroa inglesa pela independência, vencida poucos
anos antes.
Nos três casos, a mobilização de tropas populares para
enfrentar os exércitos da aristocracia foi vital para o triunfo do poder
burguês, plebeu e, no caso americano, anticolonial. Assim nasceu o mundo
moderno, armado e atirando para matar.
O discurso de Bolsonaro é outro. Na imunda reunião
ministerial de abril, gravada por
ordem sua, ele rebaixou a Presidência ao seu nível, o da sarjeta: "Um
bosta de um prefeito faz uma bosta de um decreto, algema e deixa todo mundo
dentro de casa. Se tivesse armado, ia para a rua".
O que quis dizer, na sua sintaxe selvagem, é que, armado, o
povo acabaria na marra com o confinamento. Fechou
sua exortação assim: "Quero dar um puta de um recado para esses
bostas! Por que eu estou armando o povo? Porque eu não quero uma
ditadura". Cabe o clichê: estilo é o homem.
Na época, todos os comentaristas concordaram que o rosnado
presidencial visava, sim, a imposição de uma ditadura —por meio do armamento de
seus cupinchas, do núcleo duro da sua freguesia e de seu séquito de fanáticos.
Mas havia algo mais no baixo calão do Cavalão.
Esse algo mais é o tema de Bruno
Paes Manso em "A República das Milícias - Dos Esquadrões da Morte
à Era Bolsonaro" (Todavia, 302 págs.), um forte candidato a livro mais
triste do ano. Ele esmiúça com sobriedade o processo de desagregação
fluminense.
Bolsonaro e seus filhos, por exemplo, frequentam com
assiduidade clubes de tiro. Pimpões, posam para fotos com fuzis e
metralhadoras. Não são apenas infantiloides, perversos, maníacos por símbolos
fálicos que simulam disparar armas à la Rambo.
"A
República das Milícias" conta que muitos clubes de tiro são mocós
para a compra e tráfico de armas de calibre pesado. O comércio de armamento é
essencial para as milícias cariocas corromperem, ocuparem novos bairros,
aterrorizarem; e assim enriquecerem seus membros e padrinhos —caso de Bolsonaro
e caterva.
A segunda emenda usa "milícias bem regulamentadas"
como sinônimo de batalhões populares de libertação. Não são essas as milícias
do presidente. As dele são gangues que vendem proteção, gás, conexão com a TV
paga e até casas. Além de roubar e matar, suas milícias exploram o povo.
Paes Manso é um cientista político com formação de
jornalista. Ele recorre à primeira pessoa para relatar seus encontros com
milicianos e a paisagem social na qual se movimentam. O que o espanta é a
banalidade do mal. O crime virou norma; o Estado é bandido.
A condição de paulista circunspecto não o leva ao bairrismo
—seu livro anterior, "A
Guerra", com a socióloga Camila Nunes Dias, é um mergulho nos infernos
do PCC. Mas o fato de ser estrangeiro ao Rio lhe garante distanciamento crítico
de um sistema escabroso.
É dessa forma que "A República das Milícias"
investiga os estertores de uma sociedade em desagregação. Fala de esquadrões da
morte; de militares que migraram da tortura para o jogo do bicho; do homicídio
de Tim Lopes; da ocupação marqueteira da Cidade de Deus; do fracasso das
UPPs; do assassinato
de Marielle Franco; do espraiamento da força bruta.
A eleição de milicianos para o Planalto é o corolário de um
estado de coisas. Nele se imbricam a política, a polícia, igrejas, as Forças
Armadas, as rachadinhas, as Vivendas da Barra, a corrupção, a condescendência
das elites.
O triunfo miliciano espelha uma sociedade que se
desindustrializou, não oferece empregos e na qual a miséria grassa. E a
ideologia dominante, nessa terra sem lei nem ordem, é a de cortes que
desmantelam o Estado —que, justamente, deveria implementar a lei e a ordem.
Não há força social capaz de fazer frente à anomia que se
instala. Por isso "A República das Milícias" é um livro triste. Ele
não oferece soluções porque elas não parecem existir. Sua leitura leva a uma
constatação amarga: dias piores virão.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
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