Uma nova onda feminista percorre o mundo. Em vários
países, mulheres saem às ruas e erguem bandeiras pelos seus direitos e em favor
da igualdade entre os gêneros, em diversos níveis – do político ao econômico.
Nas ruas da Bielorrúsia, elas são a vanguarda da contestação atual à ditadura
de Alexander Lukashenko. Novas teóricas e militantes emergem em toda parte,
enquanto as feministas pioneiras são relembradas e relidas. O “feminismo é tão
antigo quanto a opressão das mulheres”, disse a psicanalista Juliet Mitchell,
importante figura do Women’s Liberation Movement. No Brasil, foi uma jovem de
22 anos que iniciou essa batalha em 1832, com a publicação em Recife do
extraordinário Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens.
Dionísia Gonçalves Pinto, potiguar radicada em Olinda,
lançou seu livro sob o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta.
Apresentou-o como uma “tradução livre” da obra de Mistriss Godwin (nome adotado
pela escritora britânica Mary Wollstonecraft ao casar-se com William
Godwin) A Vindication of the Rights of Woman (Em defesa dos
direitos da mulher), um tratado feminista de 1792. O objetivo de
Wollstonecraft, seguido por Nísia Floresta, era convencer a sociedade de que a
mulher é uma criatura racional que não deve ser excluída da “participação dos
direitos naturais da humanidade”, contrapondo-se, assim, à ideia corrente de
que “a mulher deve ser linda, inocente e tola”, como escreveu a feminista
inglesa.
A surpreendente iniciativa de Nísia Floresta fez do Brasil,
país independente havia apenas dez anos, um participante do processo de
emancipação das mulheres que se desenvolvia na Europa, aos tropeções, desde a
Revolução Francesa.
Ao longo de uma vida marcada por ousadia e determinação –
que incluiu a separação do primeiro marido, a união com um estudante da
Faculdade de Direito do Recife e a fundação de uma inovadora escola para
meninas no Rio de Janeiro em 1838 –, Nísia Floresta amainou a denúncia da
ideologia patriarcal, mas se envolveu cada vez mais nos debates políticos,
sociais e literários de sua época, tendo se destacado como defensora dos ideais
abolicionistas e republicanos.
A importância de Nísia Floresta para a história brasileira é
incontestável. Entretanto, reconhecer a dimensão de sua vida e seu trabalho não
significa fechar os olhos à verdade, por mais que esta possa nos contrariar.
Uma teia de inexatidões cerca, há décadas, o livro Direitos das
Mulheres e Injustiça dos Homens. São enganos lamentáveis cometidos por
alguns pesquisadores que desdenham os fatos, prestando um desserviço à
história, à credibilidade acadêmica e à própria memória de Nísia Floresta.
Há 25 anos, após rigorosa apuração, descobri que o livro,
contrariamente ao que se supunha, não era uma tradução livre do tratado de
Wollstonecraft, mas uma tradução literal e integral de outro texto. Essa
descoberta, que até amplia a relevância da brasileira como educadora e
feminista, como explicarei mais adiante, foi recebida, contudo, com forte
animosidade pelo governo do Rio Grande do Norte e por alguns acadêmicos,
interessados mais no mito que nos fatos. E as inverdades continuaram a ser
propagadas ao longo de um quarto de século.
O momento exige que confrontemos outra vez as falsidades,
deliberadas ou não. Como insiste o historiador britânico Richard J. Evans,
nessa época seduzida por fatos alternativos e marcada pelo negacionismo em
tantos campos do saber, acadêmicos e jornalistas têm o “dever essencial de
defender a verdade”.
No dia 12 de outubro comemoram-se 210 anos do
nascimento de Nísia Floresta. Honrar sua memória significa derrubar os
mitos que foram construídos sobre sua obra, procurando distinguir fatos
indiscutíveis de opiniões e interpretações debatíveis. Significa reafirmar o
compromisso incondicional com a verdade histórica.
Foi movida pelo interesse no fenômeno da circulação e
recepção de ideias que decidi comparar o texto de Wollstonecraft de 1792 e a
presumida versão livre dessa obra feita quarenta anos depois por Nísia
Floresta. Eu pretendia estudar a criatividade da tradutora ao adaptar para o
Brasil os argumentos de uma feminista europeia. Logo percebi, porém, que não
havia entre os dois livros nenhuma semelhança. A ausência no texto da
brasileira de qualquer crítica ao filósofo Jean-Jacques Rousseau – figura
central da argumentação de Wollstonecraft por ser considerado o vilão
responsável pela ideologia da domesticidade feminina – foi para mim um dos
primeiros indícios de que havia algo de estranho na versão.
No decorrer da análise de Direitos das Mulheres e
Injustiça dos Homens, verifiquei que continha trechos do tratado
feminista De l’Égalité des Deux Sexes (Sobre a igualdade dos
dois sexos), escrito pelo padre e filósofo François Poulain de La Barre, em
1673. Avançando na investigação, constatei que Nísia Floresta havia traduzido
não o clássico de Wollstonecraft, mas um tratado mais radical de 1739,
intitulado Woman Not Inferior to Man, escrito por uma pessoa (nunca
devidamente identificada) que se escondera sob o pseudônimo de “Sophia, a
Person of Quality”.[1]
Nísia Floresta fizera uma tradução ipsis litteris do
tratado de Sophia, que por sua vez continha longos trechos do livro de La
Barre, sem mencioná-lo, mas dele diferia por ser mais sintético e apaixonado.
Longe de desmerecer a brasileira (ou Sophia), interpretei esse
“plágio-tradução” como uma brilhante “travessura literária”, uma astúcia utilizada
para romper com as regras do mundo intelectual a fim de lutar por uma causa
nobre, para cuja defesa muitos meios se justificavam.
Ao conferir a Wollstonecraft a autoria do texto por ela
traduzido (sem mencionar Sophia, a verdadeira autora), Nísia Floresta teria
atingido dois objetivos, no meu entender. O primeiro seria prestar homenagem à
feminista inglesa – cuja devoção a grandes causas provavelmente conhecia e
admirava. O segundo, introduzir no Brasil, sob o nome dela, as ideias mais
subversivas de Sophia, para quem, por exemplo, os valores do casamento e da
maternidade não eram tão centrais como eram para Wollstonecraft. Sophia
empenhou-se em conscientizar as mulheres da sua capacidade – igual ou até
superior à dos homens – e do direito delas de exercer papéis tradicionalmente
atribuídos ao outro gênero.
Eis uma amostra da argumentação de Sophia, na tradução
literal de Nísia: “Se os homens fossem filósofos […] descobririam facilmente
que a Natureza constituiu uma perfeita igualdade entre os dois sexos […] a
diferença dos sexos só é relativa ao corpo e não existe mais que nas partes
propagadoras da espécie humana […] Todas as indagações da anatomia não têm
ainda podido descobrir a menor diferença nesta parte [a estrutura da cabeça]
entre os homens e as mulheres: nosso cérebro é perfeitamente igual ao deles
[…]”
Minha descoberta veio a público em um artigo publicado
na Folha de S.Paulo, em 10 de setembro de 1995 (posteriormente
expandido em meu livro Nísia Floresta, O Carapuceiro e Outros Ensaios
de Tradução Cultural). A reação provou, de imediato, que minha expectativa
de um debate de alto nível era ilusória.
O Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Norte,
apoiado por Constância Lima Duarte, especialista em Nísia Floresta, deu início
a uma “guerra” contra a verdade histórica. O presidente do conselho chegou a
enviar uma carta à Folha (noticiada em 15 de outubro de 1995)
acusando meu texto de ofensivo “à memória da pioneira do feminismo no Brasil”.
Minhas palavras foram desvirtuadas e transformadas numa ofensa à idoneidade de
Nísia Floresta e num descaso para com seu papel na história do feminismo
brasileiro.
Acusada de não compreender “a genialidade de nossa autora”,
eu fora incapaz, segundo Duarte, de reconhecer que a “astúcia criadora” de
Nísia Floresta se antecipara à antropofagia de Oswald de Andrade, à
desconstrução de Jacques Derrida e até a Karl Marx.[2] Como se cada um tivesse direito aos
seus próprios fatos, as evidências apresentadas sobre o verdadeiro texto
traduzido foram simplesmente omitidas e jamais confrontadas.
Impossível saber se Duarte optou por não cotejar os textos –
como os colegas de Galileu, que se recusaram a olhar os astros pelo telescópio
para não questionarem suas convicções – ou se, tendo-os cotejado, optou por
ignorar a veracidade inelutável. Foi assim infringido um dos preceitos centrais
do trabalho histórico: o que postula que o exame escrupuloso das evidências
encontradas nas fontes primárias é fundamental, e tanto mais quando colocam
potencialmente em xeque as hipóteses do historiador.
Ao invés disso, com as informações que obteve no meu texto,
Duarte passou a incluir “Poulain de la Barre e Sophie” (sic) entre os autores
que a brasileira teria devorado e deglutido em seu pioneiro ato de
“antropofagia libertária”. Com isso, como insistiu Duarte, Nísia Floresta
devolveu “ao seu público um outro produto, muito bem marcado por sua
experiência feminina e brasileira” e que se impõe como “uma resposta da
periferia ao centro produtor de discursos”.
É compreensível a sedução dessas ideias que acalentam o
orgulho nacional e regional. No entanto, elas não se sustentam por qualquer
evidência. Em todo o texto de Sophia não há uma só menção ao Brasil, a Portugal
ou às Américas, que possa justificar a alegação de Duarte de que Nísia Floresta
adaptou “à realidade brasileira as muitas ideias que circulavam sobre a mulher
na Europa”. As referências no texto de Sophia/Nísia Floresta dizem respeito, em
sua maioria, a personalidades britânicas, como a rainha Elizabeth I, a
personagens de Shakespeare, como Falstaff, a generais, como Marlborough, ao
hospital para veteranos em Chelsea. São muitas também as referências à “nossa
Pátria” ou a “esta Nação” – não havendo qualquer dúvida de que esteja se
referindo à Inglaterra.
O historiador Marc Bloch, executado pela Gestapo em 1944,
escreveu que certas épocas estão especialmente propensas ao mal das “mentiras”,
e estas vêm “aos cachos”. Como ele diz, uma “mentira” – proposital ou não –
desencadeia “quase forçosamente” outras, que proporcionam “ao menos
aparentemente um mútuo apoio”. Pois, à negação do fato de que Nísia Floresta
traduzira Sophia, somou-se a alegação de que seu texto era informado pela
experiência de vida num país marcado pela “dominação portuguesa” – sem que haja
no livro um argumento ou uma citação sequer que confirme essa ideia. A partir
daí, muitos estudiosos e divulgadores de Nísia Floresta foram simplesmente
reforçando e aumentando o “cacho”, repetindo a falsificação contida no
prestigiado “discurso de autoridade”.
Apesar da descoberta sobre o livro, a negação do fato
histórico se impôs – com um sucesso impressionante. Blogs, artigos,
documentários, teses, vídeos, podcasts e até espetáculos teatrais
continuam difundido a tese inverídica, a ficção falsificadora de que Direitos
das Mulheres e Injustiça dos Homens é uma versão livre e abrasileirada
de A Vindication of the Rights of Woman, de Wollstonecraft. Para
ilustrar a “genialidade” de Nísia Floresta, o trecho mais usado é o da página
27 da edição original de Sophia: “Por que a ciência nos é inútil? Porque somos
excluídas dos cargos públicos; e por que somos excluídas dos cargos públicos?
Porque não temos ciência.”
É evidente que nós, historiadores, para avançarmos nas
pesquisas, temos de nos valer do trabalho de colegas que reputamos confiável e
nem sempre voltamos às fontes primárias. No caso de Nísia Floresta, entretanto,
essa prática teve consequências lamentáveis. Com raras exceções, acabou por
prevalecer no establishment acadêmico brasileiro uma ficção sobre a primeira
obra da feminista brasileira e uma espécie de “conspiração de silêncio” sobre
sua verdadeira façanha literária. Até mesmo o Dicionário Mulheres do
Brasil (editado por Schuma Schumaher e Vital Brazil em 2000 e já na
segunda edição), não conseguiu ultrapassar a barreira da fantasia criada ao
redor de Nísia Floresta e continua a apresentá-la como a autora da “tradução
livre […] da feminista inglesa Mary Wollstonecraft”.
Três anos após a publicação de meu artigo, fiz uma segunda
descoberta sobre Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, que
optei por não divulgar: a tradução literal de Nísia Floresta tinha a forte
marca de uma versão literal para o francês do livro de Sophia, publicada em
1826, sob o título Les Droits des Femmes et l’Injustice des Hommes par
Mistriss Godwin (Os direitos das mulheres e a injustiça dos homens,
por Mistriss Godwin, sobrenome adotado por Wollstonecraft, como vimos). O
desapontamento que me causara a reação no Brasil à primeira revelação me fez
crer que não era hora de trazer mais dados para restaurar a verdade histórica.
O livro francês era apresentado como uma tradução livre da
obra de Wollstonecraft por “M. César Gardeton”, mas, na verdade, era uma
reimpressão da versão francesa publicada em 1750 e 1751 do tratado Woman
Not Inferior to Man, de Sophia, que omitira o nome da autora. Gardeton, que
era o reimpressor e não o tradutor, simplesmente acrescentou na edição de 1826
um novo título à obra, que atribuiu a “Mistriss Godwin”, com a falsa informação
de que era uma tradução livre feita por ele.[3]
Em 2014, as pesquisadoras Eileen H. Botting e Charlotte H.
Matthews chegaram, de maneira independente, à mesma descoberta, que tornaram
pública num artigo no volume 26 da publicação Gender & History,
“Overthrowing the Floresta-Wollstonecraft Myth for Latin American Feminism”
(Derrubando o Mito Floresta-Wollstonecraft para o Feminismo Latino-Americano),
que também pouco repercutiu entre os pesquisadores brasileiros da educadora.
Confrontando o texto de Gardeton com o de Nísia Floresta
fica evidente que, contrariamente ao que diz Duarte, o título Direitos
das Mulheres e Injustiça dos Homens não foi fruto de um ato pioneiro
de “antropofagia libertária”. Nísia Floresta simplesmente copiou o título e a
autoria dados ao texto de Sophia por Gardeton, a quem também seguiu ao
adicionar a informação errônea “traduzido livremente do francês para o
português” – quando a tradução que ela fizera, seja apenas via Gardeton, seja
com a ajuda do texto original em inglês de Sophia, era literal.
Fica evidente, ainda, que as poucas alterações no texto de
Sophia, que eu inicialmente atribuíra à criatividade de Nísia Floresta, eram da
tradução francesa. Dela mesmo, pode-se agora seguramente afirmar, não há quase
nada no texto traduzido, salvo mínimas modificações causadas por erros. Um
exemplo: ela traduziu os “aveugles sectateurs de Descartes” da versão francesa
(“blind followers of Descartes”, no original em inglês de Sophia) como
“secretários de Descartes”.
Com essa revelação, como é comum acontecer, algumas
dúvidas foram esclarecidas, mas novas surgiram. Sobre o motivo que levou Nísia
Floresta a, aparentemente, fingir que traduzia um texto quando traduzia outro,
há uma resposta simples e outra complexa. A simples é que ela não fingiu, mas
descobriu o texto de Sophia por meio de Gardeton e aceitou a afirmação falsa de
que era uma tradução livre de um tratado de Mistriss Godwin (ou seja, de
Wollstonecraft). Nesse caso, é a alegação de Gardeton que precisaria ser
explicada e, provavelmente, ele deve ter achado que atribuir o livro traduzido
à célebre feminista inglesa traria à obra mais lucro do que se a verdadeira
autora fosse identificada – a desconhecida Sophia.
A explicação mais complexa leva em conta a sofisticação de
Nísia Floresta e a supõe trabalhando com o texto de Sophia em duas línguas,
inglês e francês, possivelmente à venda nas muitas livrarias de
Recife e Olinda que dispunham de obras importadas. Alternativamente, seu
companheiro, Manuel Augusto de Faria Rocha, pode ter tirado esses livros
da biblioteca (fundada em 1830) da Faculdade de Direito. Vivendo
num ambiente profundamente marcado pela presença britânica, em que aulas particulares
de inglês eram fartamente oferecidas, Nísia Floresta provavelmente teria
adquirido algum domínio dessa língua, ao lado do francês, em que foi
fluente. Outra hipótese é que ela tenha conscientemente adotado a mesma
tática de Gardeton de atribuir o texto a Mistriss Godwin, mas por razões
diferentes – não para vendê-lo mais, mas para melhor servir à causa das
mulheres no Brasil.
As evidências são insuficientes (e talvez sempre serão) para
que possamos escolher, com alto grau de certeza, entre essas alternativas, mas
saber que elas existem ajuda a evitar simplificações toscas. De qualquer modo,
o que eu disse em 1995 sobre a “façanha” de Nísia Floresta continuo a sustentar
hoje: o próprio ato de traduzir Sophia – quer via Gardeton, quer via Sophia e Gardeton
juntos – representou, “por si só, um ato revolucionário”, pois significou
combater corajosamente um sistema patriarcal opressor com valores alternativos
e subversivos.
A “travessura literária” de Nísia Floresta foi, pois,
responsável por uma daquelas felizes ironias da história. O tratado
subversivo Woman Not Inferior to Man, publicado por Sophia em 1739
(com uma segunda edição em 1743), só seria reeditado na Europa em 1975. Mas na
primeira metade do século XIX já podia ser lido pelas sinhazinhas supostamente
dengosas e indolentes no Brasil – um país atrasado, aos olhos do europeu
civilizado.
[1] https://digital.library.lse.ac.uk/objects/lse:huc485foq/read/single#page/4/mode/2up
[2] “Nísia Floresta: Incompreensão em
relação à sua genialidade”, Ciência & Trópico, v. 26, 1998.
[3] https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k3230031?rk=21459;2
MARIA
LÚCIA GARCIA PALLARES-BURKE
Historiadora, pesquisadora do Centre of Latin American
Studies (Universidade de Cambridge).
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