quarta-feira, 4 de novembro de 2020

DISPARATE CONSTITUCIONAL

Editorial Folha de S.Paulo

O líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), tangenciou a ironia ao dizer que o presidente Jair Bolsonaro se apoia agora no chamado centrão movido por bom senso.

Mais parece que o faz por necessidade, acossado no front jurídico-policial; ademais, o bom senso é escasso em Brasília —e o próprio parlamentar dá prova disso.

Barros somou disparate novo ao fluxo que jorra do Planalto e da Esplanada. Saiu-se com a proposta de realizar um plebiscito sobre a convocação de uma Constituinte para substituir a Carta de 1988.

Na falta de ideias razoáveis, inspirou-se na recente consulta chilena —inspirada, de fato, por uma demanda da sociedade— para lançar o que anos atrás se chamava de factoide. Vale dizer, acender discussão que não leva a lugar nenhum.

A tese é antiga, tendo sido aventada à esquerda, à direita e ao centro nos últimos anos. Ampara-se, no formato mais benigno, na ilusão de que uma reformulação completa da Constituição resultará em uma peça de amplo consenso e capaz de acelerar o desenvolvimento do país. Nas piores versões, embute intentos autoritários.

O texto de 1988 já garantiu 32 anos de estabilidade democrática ao país. Tem seus defeitos, como a prolixidade legiferante e a multiplicação de privilégios corporativistas que esgarçam as amarras da prudência orçamentária, mas carrega provisões suficientes para reforma e atualização.

Nessas três décadas, a Carta já recebeu 108 emendas (fora as 6 da revisão de 1993-94), 9 delas só na administração Bolsonaro.

É o preço a pagar por uma Constituição tão detalhista; o lado positivo, por assim dizer, reside nessa condição flexível, que permite sua adequação a novas configurações políticas e econômicas sem passar por conflagrações de alto custo.

Um líder de governo numa Casa do Congresso, para fazer jus ao título e ao privilégio, deveria concentrar-se em fazer avançar emendas constitucionais propiciadoras das reformas imprescindíveis que o Planalto não consegue tirar da inércia. Aventar um plebiscito, na atual paralisia, equivale a uma confissão de incompetência política.

Se a antes tão abominada aliança com os partidos do centrão não servir para o avanço de uma agenda de governo, o presidente Jair Bolsonaro deixará evidente que a buscou apenas e tão somente para proteger-se de eventuais consequências de seus desatinos.

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