É estarrecedor que o presidente dos Estados Unidos acuse
adversários e o próprio sistema eleitoral de fraude e corrupção,
atiçando seus apoiadores para uma guerra campal e achincalhando a maior
democracia do planeta. Mas Donald
Trump é Donald Trump, sai da Casa Branca como entrou e leva o raro
troféu de presidente que perde a reeleição, pensando sempre nele, só nele.
Biden prega união nacional, Trump mente, agride e é cortado
do ar pelas três maiores redes de TV dos EUA, aprofundando a polarização do
País e a divisão no Partido Republicano, que começou quando ele impôs sua
candidatura no grito. Cara a cara com a derrota, ele expõe desespero e atrai
críticas dos próprios republicanos e parte da direita americana que não é
belicosa, mentirosa, autoritária e ignorante. Mas ele tem mais de 70 milhões de
votos...
No Brasil, o voto é
obrigatório com o sistema de um cidadão, um voto, seja ele banqueiro ou
pedreiro. Nos EUA, é opcional e o candidato com mais voto popular pode perder a eleição no
colégio eleitoral, como os democratas Al Gore e Hillary Clinton. Se o
candidato republicano tem 51% em Iowa, todos os votos do Estado vão para o
republicano. Se você votou no democrata, seu voto vai para o lixo.
Quanto à votação, o Brasil tem coordenação nacional e regras
do TSE e, desde 1996, a urna eletrônica, segura, fácil, rápida, que permite o
anúncio do novo presidente no dia do pleito. Já nos EUA cada estado tem suas
regras e as cédulas são de papel, do século passado. A apuração é manual, voto
a voto, envolve milhões de pessoas, gera incertezas, disputas judiciais e o resultado
pode demorar semanas.
Bolsonaro, porém, insiste na volta da cédula impressa, depois de criar
uma figura inédita no mundo: a do eleito que denuncia fraude na própria eleição
– sem prova nenhuma, aliás, como o Trump real nos EUA. E as semelhanças não
param aí. Trump se nega a coordenar a reação nacional à pandemia, diz que é só
uma gripe, desdenha de máscaras e isolamento social e fez propaganda da
cloroquina. Você já viu esse filme aqui? Mas isso não é brincadeira, é brincar
com a vida.
Trump lá e Bolsonaro cá vivem numa realidade paralela, como
velhos populistas convencidos de que podem falar e fazer qualquer coisa,
espancar a China, aliar-se ao que há de pior e promover retrocessos em gênero,
direitos humanos e meio ambiente na ONU. Bolsonaro só não saiu do Acordo de
Paris, como fez Trump no dia da eleição, por falta de condições políticas.
Há, porém, diferenças entre o “mito” Bolsonaro e o “Deus”
Trump, que não rasga dinheiro e manteve o slogan “America First” com o Brasil.
Ganhou todas, inclusive ao derrubar um brasileiro em favor de um americano no
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ao impor cotas de aço, alumínio
e etanol para o Brasil. Logo, usou os produtores brasileiros para comprar votos
desses setores nos EUA.
Apesar da ridícula convocação de manifestações pró Trump em
cidades brasileiras, até o mercado financeiro avalia como positiva a vitória de
Joe Biden, que defende princípios, não é dado a maluquices e vai manter o
decantado pragmatismo da política externa americana. Os dois presidentes podem
se bicar, mas Brasil e EUA manterão acordos comerciais, programas de cooperação
e a negociação em prol dos interesses de cada um. E quem discorda da pressão em
defesa da Amazônia?
A troca de Trump por Biden é saudável para o mundo, os EUA e
o Brasil, mas Bolsonaro tem razão em estar abatido. Ele perde o
único grande parceiro internacional e seus candidatos às eleições municipais
afundam como Trump. Com derrota externa e interna e a obsessão por 2022, será
cada vez mais engolido pelo Centrão, quicando de um palanque a outro e falando
besteira.
*COMENTARISTA DA RÁDIO ELDORADO, DA RÁDIO JORNAL E DO
TELEJORNAL GLOBONEWS EM PAUTA
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