quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

FELIZ 2021 !

Caros leitores, amigos, mais um ano termina. 2020 foi um ano de muitas conquistas e recordes para o blog Sou Chocolate e Não Desisto, resultado de muito trabalho nestes 15 anos de existência. 

A cada ano, ganhamos mais repercussão na internet, entre blogs e sites que reproduzem nossas postagens. Nas redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram, o Blog tem se destacado.

A todos leitores, amigos e parceiros, muito obrigado! Desejo um Ano Novo de realizações, saúde, muito amor, paz e esperança. Feliz 2021!. Abraço, Valério Sobral.

Em 2021 vem novidades aí nos 16 anos do Sou Chocolate e Não Desisto.

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OS FATORES QUE EVITARAM O MAIOR DESASTRE EM 2020

Celso Ming, O Estado de S. Paulo

E o pior não aconteceu. No segundo trimestre, em plena pandemia, as projeções para o desempenho da economia do Brasil foram terríveis. Algumas chegavam a indicar um mergulho do Produto Interno Bruto (PIB) de quase 10% para todo o ano.

As novas previsões falam de uma queda de 4,4% (veja o gráfico). Essa é a última projeção do Banco Central, que coincide com a do mercado, como consta no Boletim Focus desta semana.

São quatro as explicações para esse tombo menos acentuado.

A primeira delas é a de que o Tesouro despejou R$ 322 bilhões em auxílios emergenciais para a população (66 milhões de pessoas), recursos que permitiram uma sustentação da demanda de bens essenciais – especialmente alimentos, medicamentos e moradia – durante o isolamento social necessário para combater a covid-19. Foi uma demanda que permitiu que a atividade econômica não entrasse em colapso. O efeito colateral foi o avanço inesperado da inflação, que, no entanto, tende a ser limitado.

O segundo grande fator de sustentação da economia foi o excelente desempenho do agronegócio. Como mostram as últimas projeções do IBGE e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção física de grãos na safra de 2020/21 deverá ter um aumento de 3,5%, para alguma coisa em torno dos 266 milhões de toneladas. Os preços também ajudaram, seja pelo aumento da demanda interna de alimentos, como mencionado acima, seja pela forte importação da China. 

A alta do dólar em reais também trabalhou na mesma direção. O impacto desses resultados no PIB ainda é relativamente baixo porque a agropecuária pesa apenas 5,6% na renda nacional.

O maior estrago aconteceu no setor de serviços (mais de 70% do PIB), especialmente nas viagens, no turismo, nos grandes eventos, no ensino, na saúde, no ramo dos bares e restaurantes e em grande parte no comércio varejista. Salvaram-se as vendas pela internet e os escritórios, graças aos serviços prestados em casa, o home office.

As avarias macroeconômicas foram enormes: investimentos adiados, obras paralisadas, um desemprego de 14,3% da força de trabalho e de outros 5,5% no desalento (desistiram de procurar emprego) e, mais que tudo, o alastramento do rombo fiscal e o avanço da dívida pública. Até agora, o governo não mostrou como vai enfrentar as exigências da lei do teto dos gastos nem como vai reequilibrar as contas públicas em 2021. Nem mesmo o Orçamento de 2021 foi aprovado.

As apostas se concentram agora na recuperação da atividade econômica, que já começou a mostrar as caras no último trimestre deste ano. O maior trunfo está na aplicação da vacina. 

Cinco instituições internacionais já mostraram que superaram a terceira e decisiva fase de testes. O Instituto Butantã espera começar a vacinar ainda em janeiro e a Fiocruz tem planos para iniciar a aplicação das doses no fim de fevereiro. É provável que, já no primeiro semestre de 2021, boa parcela da população tenha sido atendida. Mas não será preciso esperar até que a maior parte da população tenha sido imunizada contra o novo coronavírus para contar com avanços na economia.

E há, também, sinais de excelente recuperação da economia mundial, especialmente da China e da Europa, também fortemente influenciados pela distribuição das vacinas. São fatores que indicam bons resultados na balança comercial do Brasil, especialmente ancorados pelo novo recorde de produção de commodities agrícolas.

A perspectiva de que a vacina esteja próxima e o afastamento da ameaça de novas ondas da pandemia, no Brasil e no resto do mundo, podem mudar corações e mentes. E esse novo ânimo tende a ser a melhor energia para revitalizar a atividade econômica.

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JÁ NÃO ERA SEM TEMPO

Cora Rónai, O GLOBO

31 de dezembro de 2020: enfim, o último dia do ano mais longo que já vivemos, o ano que nos enganou no começo com a linda ressonância dos seus números dobrados, vinte-vinte, mas logo se revelou mais angustiante, divisivo e mortal do que qualquer outro na nossa memória recente. O que mais dói é que não precisava ter sido assim.

Em circunstância nenhuma teríamos escapado da Covid-19, mas não precisávamos ter enfrentado tantas epidemias ao mesmo tempo — de obscurantismo, de arrogância e de politicagem, de descaso e de deboche, de incompetência e de estupidez.

O ano leva a assinatura de Jair Messias Bolsonaro de ponta a ponta.

Teria sido bastante ruim enfrentar tantas mortes e tanta devastação em circunstâncias “normais”, se é que se pode falar em normalidade numa hora dessas, mas foi medonho viver tudo isso tendo no mais alto cargo da nação esse homem inculto e mau, esse ignorante absoluto da própria ignorância, incapaz de entender o pouco que se pedia dele diante da pandemia: calar a boca, seguir os especialistas, dar o exemplo.

Teria sido tão mais simples, tão menos devastador.

Nem precisava ser uma Jacinda Arden ou uma Angela Merkel. Bastava ter um mínimo de inteligência — um pouquinho, não muito, o suficiente apenas para perceber que vírus não tem ideologia e não se combate no grito.

Teria sido tão mais fácil atravessar o ano ouvindo palavras de consolo e de encorajamento; ou, pelo menos, não ouvindo nada.

Mas foram tantos absurdos, tantas ofensas e desaforos, que chegamos a esse fim de ano exaustos, sem energia sequer para manifestar indignação — a tal ponto que o capitão foi para a televisão fazer pronunciamento na noite de Natal e, salvo raras exceções, as panelas permaneceram mudas na cozinha.

Além da Covid-19, tivemos que nos proteger de idiotas negacionistas e de gente grosseira em geral que se sente respaldada por atitudes irresponsáveis vindas de cima. Se o presidente não tem compostura, por que o cidadão precisa ter? Se o presidente não usa máscara, por que o desembargador vai usar?

Ainda assim, amanhã vai ser outro dia, outro ano. Já estamos adultos, sabemos que nada muda de verdade — mas, se a gente não tiver alguma esperança no dia 31 de dezembro, quando vai ter?

Tenho repetido como um mantra que, ainda que haja muita gente má à nossa volta, a quantidade de gente boa continua sendo maior. Gente má faz mais barulho, se faz notar melhor, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de gentileza e a educação invisível, que nos parecem apenas naturais.

Pois não são.

Eles brotaram ano a ano, século a século, milênio a milênio. São fruto de um longo processo civilizatório, foram cultivados, adubados, cuidados. Às vezes temos recaídas coletivas e regredimos, mas a tendência é nos tornarmos mais atentos e melhores com o passar do tempo. Percebemos o mal porque já conhecemos o bem, e isso faz diferença.

Você acredita mesmo nisso, Cora Rónai?

Acredito, muito. O problema é que nem sempre me lembro de que penso assim. Felicidade — ou, vá lá, fé na Humanidade — é, também, um exercício de memória.

Tenham um bom Ano Novo, pessoas queridas.

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VACINA, CORONAVOUCHER E A NOVA DÉCADA

José Pastore, O Estado de S. Paulo

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defende apoiar a vacinação em lugar de prorrogar o auxílio emergencial. Para ele, a retomada em V da economia permitirá a absorção no mercado de trabalho dos brasileiros que estão parados. Dali para a frente eles poderão viver da renda do trabalho, e não da renda do coronavoucher.

Tudo indica, porém, que a tão desejada sincronia vai demorar algum tempo. Mais de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de 2021?

Grande parte da retomada em V deveu-se ao sucesso dos programas de redução de jornada e suspensão do contrato de trabalho que manteve 10 milhões de empregos formais e propiciou dados positivos no Caged. Outra parte deveu-se ao próprio auxílio emergencial de R$ 600 e, depois, de R$ 300.

Mas esses programas terminam hoje. Noticia-se a possível prorrogação da redução de jornada e suspensão dos contratos, o que é animador. Mas, até o fechamento deste artigo, nada se falou sobre a prorrogação do coronavoucher. Lembremos que para cerca de 23 milhões dos beneficiados sua única renda é a do auxílio emergencial.

Na ausência do coronavoucher e com o fechamento de muitas atividades econômicas em razão da segunda onda da pandemia, antecipa-se um vácuo de renda para milhões de famílias exatamente na hora em que a inflação castiga os mais pobres.

Outra preocupação refere-se ao retardamento da vacinação dessas pessoas. Para cumprir a escala de prioridades – idosos, pessoas com comorbidades, profissionais da saúde, professores e indígenas –, será grande o número dos que ficarão sem vacina, sem trabalho e sem auxílio emergencial por um bom tempo. É um cenário muito preocupante.

Sei que o problema fiscal é gravíssimo. Mas quem tem coragem de deixar idosos, adultos e crianças passando fome? O governo terá de agir, como de resto vem sendo feito em vários países que já prorrogaram ajudas às empresas e às famílias em vista da renitência da pandemia. Os estragos no equilíbrio fiscal terão de ser consertados ao longo da década que hoje se inicia.

Para o médio prazo, há sinais alentadores de geração de emprego e renda. A reativação da construção de casas populares é um deles. No campo da energia, a implantação de 2 mil quilômetros de linhas de transmissão e subestações até aqui concedidas vai demandar muito trabalho, sem falar na expansão das fontes de energia eólica. As concessões já aprovadas pelo Ministério da Infraestrutura (várias rodovias, ferroviárias da Malha Oeste e Sul, incentivo à cabotagem, privatização de 16 aeroportos e das Docas de Santos e outras) implicarão muitas obras que têm grande potencial de empregos por vários anos. A pujança do agro, apesar de bastante mecanizado, gera muito emprego no comércio e nos serviços locais – e as perspectivas são de crescimento. A melhoria da mobilidade urbana e a reestruturação dos locais de trabalho nas zonas suburbanas após o alastramento do home office são ricas fontes de emprego. As necessidades nos campos da educação e da saúde são imensas, incluindo aqui o atendimento de idosos.

Enfim, quando se observam o quanto está para ser feito e o gigantesco potencial deste enorme país, o Brasil pode se transformar numa grande usina de empregos ao longo desta nova década. Para chegar lá, é claro, teremos de promover as benditas reformas e nem pensar em nova década perdida!

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GOVERNO EM QUARENTENA

Zeina Latif, O Estado de S. Paulo

Repetitivo lembrar que o plano nacional de imunização não tem vacinas ou mesmo seringas. E ainda aguardamos as deliberações do comitê de crise, sob comando da Casa Civil.

Do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, nada se ouve falar, apesar do estresse vivido pelas famílias por conta da crise no mercado de trabalho, do confinamento social em moradias precárias, dos problemas de saúde e das escolas fechadas.

Não podemos nos enganar com os números de queda expressiva na violência doméstica (-27%), na ameaça contra a mulher (-33%) e na violência contra vulneráveis (-50%), entre março e maio em relação ao ano passado. Há grande subnotificação de casos por conta do isolamento social combinado à falta de acesso digital aos canais de denúncia.

Provavelmente, o problema é maior no Brasil, a julgar pela experiência mundial. Por exemplo, a Colômbia, com boletins semanais, registrou aumento de 92% nas chamadas de denúncia de violência contra a mulher entre abril e início de dezembro. Na Argentina, o aumento foi de 25% entre abril e outubro. A propósito, o cuidado em coletar e divulgar as estatísticas atualizadas já diz muito dos governos.

A elevada subnotificação aqui revela não apenas problemas de exclusão digital, mas certamente a falta de empenho para ampliar os canais de denúncia, como fizeram outros países. Os canais criados para encontrar os “invisíveis” e conceder o auxílio emergencial poderiam ter sido utilizados também para esse fim.

Os países lidaram com o problema do aumento da violência contra mulheres e vulneráveis, durante a pandemia, ampliando tempestivamente os serviços públicos em várias frentes, como o reforço no disque-denúncia, atendimento pelo WhatsApp em tempo integral, garantia de renda para mulheres em vulnerabilidade, campanhas de conscientização, ampliação de vagas em abrigo e parcerias com a sociedade civil. Argentina, Uruguai, Colômbia e Chile adotaram políticas dessa natureza. Não faltou esforço. Na Argentina, onde já começou a vacinação, foi feito o programa Barbijo Rojo, em que atendentes de farmácias, ao ouvirem o pedido por “máscara vermelha”, ajudam a vítima, colocando-a em contato com o disque-ajuda.

Não faltaram alertas de especialistas e recursos financeiros. Mesmo assim, o MMFDH é inoperante. A lista de medidas é extensa, mas inócua. O silêncio da ministra em meio aos casos recentes de feminicídio diz tudo.

Na Educação, o ministro Milton Ribeiro se exime de qualquer responsabilidade pelo desastre do ano letivo perdido, que, para ele, é assunto de Estados e municípios. Em entrevista ao Estadão, afirmou que a pasta deve apenas repassar recursos e divulgar protocolo de segurança. Se a família não tem acesso à internet, isso é “para um outro departamento”.

A crise na educação amplia o abismo entre os estudantes pobres e ricos, enquanto a interrupção de atividades que dependem de fluxo de pessoas aumentou a desigualdade, por conta do desemprego dos trabalhadores pouco qualificados, principalmente os jovens que têm nessas atividades a porta de entrada no mercado de trabalho.

Mesmo passada a pandemia, haverá provavelmente aumento da evasão escolar, com graves consequências no desenvolvimento e empregabilidade desses indivíduos. Pode-se esperar também um aumento do número de jovens “nem-nem” (nem trabalha, nem estuda). Eram 22% das pessoas entre 15 e 29 anos em 2019; 32% para mulheres pretas ou pardas. Quase 72% deste grupo estavam nos 40% mais pobre da população.

A falta de perspectivas dos jovens alimenta a maternidade prematura e a entrada no mundo do crime. O desalento de jovens não parece preocupar Ribeiro e Damares.

Uma triste lição desta crise é que a máquina pública, com poucas e importantes exceções, funcionou mal. A estabilidade do funcionalismo não blindou o País do governo inepto e omisso. 

Vamos encarar nossas fraquezas para construirmos um futuro melhor.

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A PROPAGANDA, A CIÊNCIA, O IMBRÓGLIO E O ANO NOVO

Eugênio Bucci, O Estado de S. Paulo

No gran finale de 2020, o governo paulista deu um jeito de aumentar os recursos para fazer propaganda de si mesmo e, na outra ponta, deu outro jeito para, em plena pandemia, ameaçar o orçamento da ciência. O ano que começou mal termina muito pior.

Nos derradeiros ajustes da Lei Orçamentária Anual (LOA), na Assembleia Legislativa, o Palácio dos Bandeirantes conseguiu incluir uma elevação de 69% na sua verba publicitária (como noticiou este jornal na primeira página, dia 20, com reportagem de Brenda Zacharias). O montante, que ficou na casa dos R$ 90,7 milhões em 2020, saltará para R$ 153,2 milhões no exercício de 2021.

Na mesma LOA aparece um corte de 30% na receita da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A entidade tradicionalmente conta com 1% da receita tributária do Estado. Em 2021 poderá ficar com apenas 0,7%. Traduzindo em graúdos, estamos falando de meio bilhão de reais a menos.

Por enquanto, dinheiro ainda não foi retirado, de fato, mas a Fapesp corre o risco de perdê-lo. O corte aparece no texto final da LOA (publicado no Diário Oficial de ontem), com todos os números e vírgulas, mas talvez não venha a ser efetivado. Mas como assim?, há de se perguntar o improvável leitor. Se a lei manda cortar, como é que podemos ter a expectativa de que o corte talvez não se consume?

Para entender o capcioso imbróglio, pelo qual o malfeito se insinua enquanto finge não ser o que é, precisamos conhecer um pouco mais desse novo gênero artístico-orçamentário de dissimulação, tão em voga na política: a técnica legislativa de ordenar uma coisa e, ato contínuo, ordenar o seu contrário.

A mesma LOA que corta “descorta”. Numa das inumeráveis tabelas que a acompanham, consta um valor para o orçamento da Fapesp que equivale claramente à redução de 30% de suas receitas. Para isso a LOA se apoia lógica que prevaleceu nas emendas à Constituição federal que preveem a Desvinculação de Receitas da União (conhecida pela sigla de DRU) e a Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios (Drem). Essas desvinculações constitucionais permitiram que as chamadas “receitas vinculadas”, tanto na União como nos Estados e nos municípios, fossem diminuídas. Logo, se a Drem valer para a Fapesp, ela perderá um terço do tamanho que tem hoje.

Acontece que o destino ainda não está selado, pois, como já foi dito, a mesma LOA que corta “descorta”. Em seu artigo 11, ela manda cumprir o que está escrito no artigo 271 da Constituição estadual de São Paulo – e esse artigo, o 271, determina de forma expressa, inequívoca, a destinação de 1% da receita tributária do Estado à Fapesp.

Em resumo, a LOA paulista para o ano de 2021 é uma contradição em termos, um oxímoro legislativo. Em suas previsões numéricas, impõe o corte da Fapesp. Em seu artigo 11, impede o corte da Fapesp.

O que vai acontecer? As apreensões estão lançadas. Há juristas que entendem que o orçamento da Fapesp não provém de uma receita “vinculada”, como as outras, e, portanto, a Drem não se aplica a ela. Mas há os que dizem que a Drem, um dispositivo da Constituição federal, deve prevalecer sobre as Constituições estaduais.

Não vai ser fácil. Só o que se sabe até agora, com segurança, é que o futuro da ciência paulista, que já era ruim, piorou um pouco mais. É a primeira vez que um ataque tão frontal contra os recursos da Fapesp ganha forma de lei. As forças tecnocráticas que, no curso de vários governos tucanos paulistas, vêm se articulando contra a pesquisa e contra a universidade pública marcaram seu tento, desfecharam sua pirraça e instalaram no horizonte próximo essa incerteza cabulosa.

A integridade da Fapesp nunca esteve tão vulnerável. Para o ano que vem, a manutenção de seu orçamento normal vai depender da assinatura do governador do Estado, a quem cabe expedir, por decreto, os termos da execução orçamentária. Quando for pagar as pesquisas que financia, muitas delas sobre tratamentos contra a covid-19, no Instituto Butantan e em outras instituições, precisará contar com a boa vontade do chefe do Executivo – que assegurou, publicamente, mais de uma vez, que não implementará corte algum.

Podemos acreditar nele? Em nota divulgada agora em dezembro, a instituição diz que sim: “A Drem não será aplicada à Fapesp em 2021 e há um compromisso claro do Governador João Doria e do Vice-governador Rodrigo Garcia, que também não será aplicada nos próximos anos”. Ao que se sabe, essa confiança na palavra do político em questão não tem bases científicas, mas é o que temos para o réveillon. Se cortes vierem, só vai restar aos dirigentes da Fapesp entrar na Justiça, o que trará mais desgastes e mais incertezas.

De sua parte, o mesmo Palácio dos Bandeirantes, que alega falta de recursos para fragilizar o financiamento da ciência e do conhecimento, não vê obstáculos para majorar em 70% a sua verba publicitária. É que estamos em tempos de pandemia e, você sabe, o poder acredita que a propaganda salvará vidas – de governantes.

Feliz ano novo.

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O BRASIL MATA SEUS NEGROS E NEGRAS

Givânia Silva, Folha de S.Paulo

Givânia Silva é professora e pesquisadora quilombola, membro da ABPN, cofundadora e integrante dos coletivos de mulheres e educação da Conaq e professora substituta da FUP/UnB

Formado a partir de invasão e extermínio dos povos originários e de captura e tráfico de africanos, um dos atos mais violentos da humanidade, o Brasil mantém os os privilégios sociais, econômicos, políticos e culturais gerados para os brancos e as elites nestes 500 anos.

É como se o fato de não ter exterminado os povos originários —305 atualmente— e as 274 línguas faladas e não ter impedido que negros/as sejam 54% em 2020 causasse pânico às elites dominantes e um medo generalizado de que, em algum momento, possa haver uma mudança no jogo do poder. O Brasil investe cada vez mais no projeto de extermínio, mantando crianças, jovens, mulheres negras e indígenas nas cidades e no campo. O Estado mata biológica, psicológica e culturalmente aqueles que, por sua pertença étnico-racial, já estão na condição de culpados e devedores. A conta, impagável, é cobrada de uma única forma: com as vidas.

No contexto da pandemia, os mesmos grupos são deixados para morrer pelo Estado, pois não acessam políticas básicas de saúde, educação e saneamento e não recebem a mesma oportunidade de trabalho que os brancos. Sem isso, e marcados pelo projeto genocida, os mais de 5.000 quilombos, em mais de 1.700 municípios, por exemplo, sofrem danos ainda maiores pelas desigualdades, que se aprofundam sem nenhuma ação de proteção ou prevenção.

A Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) criou um sistema próprio para registrar os estragos da pandemia nos quilombos. Tal ação não seria dever do Estado, por meio de uma política pública? A pandemia mata mais negros/as no Brasil, pois são esses que se encontram em terrenos mais férteis, aonde o Estado, quando chega, vem para matar ou desterritorializar. E, assim, seguem em curso os projetos genocidas liderados pelo mesmo Brasil que, quando não mata os negros e negras, deixa que morram.

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ABORTO LEGAL NO BRASIL

Mariliz Pereira Jorge, Folha de S. Paulo

Gol da Argentina. Na madrugada desta quarta (30), o Senado aprovou a descriminalização do aborto, que passa a ser legal até a 14ª semana de gestação e depende exclusivamente da decisão da mulher, como acontece em quase 70 países. Momento histórico. Marca mais um capítulo de um longo caminho percorrido pelas mulheres desde que a Rússia legalizou a prática há cem anos, ainda antes de se tornar União Soviética.

Enquanto isso no Brasil… A nossa legislação é mais parecida com a de países como o Afeganistão, o Irã e a Síria, o que nos dá a dimensão do atraso em que vivemos. Os direitos reprodutivos de nós, mulheres, não nos pertence, mas ao Estado, infestado de gente feito Jair Bolsonaro.

Em outubro, o presidente assinou um decreto para estabelecer, como estratégia nacional de longo prazo, a defesa da vida “desde a concepção” e dos “direitos do nascituro”. A medida foi considerada por defensores dos direitos reprodutivos mais um passo contra as possibilidades de interrupção de gravidez previstas em lei.

Nosso Congresso não fica atrás. Já escrevi que o Portal da Câmara registra 574 projetos em que o aborto é mencionado. Só em 2020 foram 64, muitos apenas pioram a vida da mulher, com aumento de pena, imprescritibilidade dos “crimes contra a vida”. No ano passado, o Senado desengavetou uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe o aborto desde o início da gestação.

Falta a sociedade e aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema: questões médicas, legais, direitos individuais, empatia. O aborto não pode ser criminalizado. As mulheres não devem ser tratadas como assassinas por defenderem tal bandeira, como quer Jair Bolsonaro, ao insinuar nas redes sociais que esta colunista seja uma genocida. A história vai contar quem é o genocida.

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IRMÃ DA 'VACINA DO DORIA' TEM 79% DE EFICÁCIA, MAS FALTAM MUITOS DADOS

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Uma das vacinas da estatal chinesa Sinopharm teria 79,34% de eficácia, segundo afirmou a empresa nesta quarta-feira (30) em uma nota de escassas e frustrantes vinte linhas. O produto é irmão da Coronavac, comprada pelo governo paulista e que já está sendo produzida pelo Instituto Butantan.

As vacinas são muito semelhantes; é possível esperar resultado similar da Coronavac, em uma especulação esperançosa, mas razoável, dizem dois imunologistas brasileiros ouvidos por este jornalista. As duas irmãs chinesas são feitas da mesma maneira, com vírus inativados.

O vírus é multiplicado em uma cultura de células, na mesma linhagem de células originadas do rim do macaco-verde africano e usadas faz quase 60 anos em pesquisa biotecnológica. O vírus depois é inativado (perde o poder de se replicar e causar doença) com a mesma substância, beta-propriolactona, mas mantém sua estrutura e, assim, ainda pode suscitar uma reação do sistema de defesa (imunológico). Os vírus inativados são misturados ao mesmo tipo de adjuvante, algum composto de alumínio, que facilita a ação da vacina. A diferença entre as duas pode ser a dosagem e o tempo entre as duas injeções necessárias.

Estudos sobre as fases 1 e 2 dessas duas chinesas foram publicados em duas revistas científicas de peso (“Jama” e “The Lancet”), mas nada que preste saiu sobre a fase 3.

Os Emirados Árabes Unidos disseram que seu teste fase 3 da Sinopharm deu 86% de eficácia. Aprovaram a vacina e começaram a aplicá-la no povo, assim como o Bahrain. Mas apenas nesta quarta-feira a Sinopharm pediu a aprovação da Anvisa deles, embora a China já tenha aplicado o imunizante em centenas de milhares de pessoas sob alto risco de infecção.

A Turquia abriu resultados preliminares e precários da fase 3 da Coronavac, que teria tido por lá eficácia de 91,75%. No Brasil, como soubemos pelo anúncio do governo paulista, a eficácia teria sido de mais de 50% e menos de 90%, uma distância amazônica. Por “eficácia” entenda-se por ora a capacidade de evitar doença sintomática. Não sabemos ainda se qualquer vacina para Covid-19 impede que um vacinado e doente assintomático transmita a doença.

A vacina americana da Moderna tem 94% de eficácia; a anglo-turco-alemã da Pfizer/BioNTech, 95%. São imunizantes feitos com tecnologia inédita. As chinesas usam técnicas testadas com sucesso faz pelo menos 70 anos, como na vacina da pólio, por exemplo.

Apesar de fabricadas da mesma maneira, faltam informações básicas sobre as duas chinesas. Por que os dados de eficácia da Coronavac e da vacina da Sinopharm são diferentes em cada país? Pode ser por causa do número de pessoas que participaram do teste, do tamanho da epidemia em cada país, do período de observação (duração) do experimento. Não sabemos.

Como os dados sobre a Coronavac e do produto da Sinopharm devem ser publicados em revistas científicas, não é razoável esperar mutreta no estudo técnico ou que os dados divulgados agora tenham sido turbinados. Mas vimos como foram bagunçados os dados da vacina da AstraZeneca/ Oxford. É o produto comprado pelo governo federal e aprovado também nesta quarta-feira pelo governo britânico, o que é bom sinal, embora até agora não saibamos também da eficácia precisa desse imunizante.

Isso quer dizer que as vacinas são ruins? Não. Quer dizer que ainda não temos os resultados finais. Quando tivermos os dados e as injeções, ainda teremos de enfrentar o governo e os generais da morte.

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GOVERNO TEVE PRESSA COM CLOROQUINA, MAS NEGA AO PAÍS EMPENHO NA VACINAÇÃO

Bruno Boghossian, Folha de S. Paulo

Em março, Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro da Defesa e ordenou que o Exército ampliasse imediatamente sua produção de cloroquina. A equipe técnica do governo dizia que o remédio não funcionava contra a Covid-19, mas a ordem foi cumprida em tempo recorde: em três semanas, os militares fabricaram 2 milhões de comprimidos.

A obediência inspirou Bolsonaro. Meses depois, ele escolheu um general para comandar o Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seguiu as vontades do chefe e moveu as engrenagens da máquina pública para distribuir um medicamento ineficaz. Com a cloroquina, o presidente teve uma pressa que foi negada ao país no planejamento da vacinação.

O governo assinou no início de junho a adesão do Brasil a um consórcio internacional para a fabricação de imunizantes contra o coronavírus. No mesmo mês, a equipe econômica perguntou ao Ministério da Saúde se havia previsão de importar material para vacinação. A pasta levou quase seis meses para publicar um edital para a compra de seringas.

Bolsonaro foi mais ágil na campanha do curandeirismo. Ainda em abril, o presidente conversou com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e pediu matéria-prima para a fabricação de cloroquina. Um carregamento chegou ao Brasil em menos de uma semana. No mês seguinte, os Estados Unidos enviaram mais 2 milhões de doses do medicamento.

O estoque de comprimidos está garantido, mas o país corre risco de ficar sem seringas e agulhas para a vacinação contra a Covid-19. O pregão aberto pelo governo para comprar 331 milhões de kits fracassou e só deve atingir 2,4% da demanda.

Quando o TCU pediu explicações ao Exército sobre a fabricação de cloroquina a preços acima do normal, os militares disseram que o objetivo era “produzir esperança para corações aflitos”. Sobre as cobranças públicas por um plano de vacinação, o ministro da Saúde fez pouco caso: “Para quê essa ansiedade, essa angústia?”. Entre a angústia e a esperança, há um governo incompetente.

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2020, O ANO EM QUE A RELIGIÃO ENCONTROU A RELIGIÃO

Cicero Urban, O Estado de S.Paulo

Na primeira vez que a religião se deparou com a ciência, o encontro foi amigável. Afinal, a revolução científica no século 17 foi realizada por cristãos devotos, que diziam estudar a obra de Deus. Cem anos depois, os cientistas da época acreditavam num Deus que havia planejado o universo, mas não se envolvia ativamente no mundo e nas suas criaturas. No século passado, algumas descobertas científicas entraram em conflito com ideias religiosas tradicionais. E agora, no mundo ainda dominado pela covid-19, como se encontram a ciência e a religião: são inimigas, estranhas ou parceiras?

Para Ian Barbour, a ciência preocupa-se com as relações causais entre os fatos, enquanto a religião se preocupa com o propósito de nossa vida. Os dois tipos de perspectivas de mundo são complementares, mas separados por alguns espaços vazios e zonas de conflito. Cientistas, por meio do resultado de suas pesquisas, levantam questões que muitas vezes a ciência não é capaz de responder, e eles estão cientes disso. Alguns teólogos, por seu lado, vêm reformulando ideias tradicionais de Deus, levando em conta as descobertas científicas. Essa postura de ambos estimula um diálogo inteligente e construtivo, já que cada um estaria consciente de suas limitações, longe de uma atitude belicosa de quem tem a posse de todas as repostas.

O que aconteceu, então, em 2020? Que zonas de conflito entre a ciência e a religião vieram à tona e como poderemos delinear um futuro melhor para todos em 2021? A fé ajudou ou atrapalhou a vida das pessoas? E a ciência, como ela se comportou? E, sobretudo, como as duas interagiram e como isso interferiu nas medidas para controlar a pandemia?

Se, de um lado, a pandemia trouxe à tona uma série de injustiças sociais, desemprego, falências em todos os setores e, o mais doloroso de tudo, perdas humanas, irreparáveis, ela também serviu de motor para a inovação e para que diversas áreas sofressem verdadeiras revoluções em poucos meses. Foi neste ano que a ciência mostrou uma capacidade notável de trabalho e de transformação. Em 11 meses, dezenas de candidatas potenciais à vacina foram criadas e algumas delas, depois de passarem por todas as fases dos estudos clínicos, já foram aprovadas para uso em seres humanos. Centenas de milhares de voluntários, milhares de cientistas, parcerias entre a academia, a indústria farmacêutica e a sociedade, milhares de publicações em todas as áreas. Bilhões de dólares foram gastos, num esforço sem precedentes.

Santo Agostinho dizia que, quando havia um conflito entre o conhecimento provado e a leitura ao pé da letra da Bíblia, as Escrituras deveriam ser interpretadas metaforicamente. Alguns, infelizmente, esqueceram-se disso. Fundamentalismos, com interpretações teológicas errôneas e perigosas, põem todos em risco numa pandemia. A religião, quando mal utilizada, quando se espera que Deus nos torne invulneráveis e, por isso, deixamos de tomar cuidados fundamentais, se esquecem dois de seus princípios mais importantes: tratar o próximo como a si mesmo e respeitar cada vida humana. Na pandemia, nos momentos mais cruciais e graves, muitas vezes o que se viu foi a ética da escolha de Sofia: o desespero de profissionais de saúde que tiveram de escolher quem iria viver ou sucumbir ao vírus.

A religião “boa”, bem utilizada, em contrapartida, trouxe conforto e amparo a tantas pessoas. Força para enfrentarmos um período em que a vida, mais do que nunca, precisa ser celebrada todos os dias. Seja ela de origem divina ou fruto da evolução, fruto do acaso ou de um planejamento superior. O papa João Paulo II dizia que a ciência pode purificar a religião do erro e das superstições. A religião pode purificar a ciência da idolatria e dos falsos absolutos. A ciência mal conduzida pode levar a um materialismo dogmático e a reducionismos com implicações éticas sérias. Galileu, em sua defesa, citou um cardeal de sua época, dizendo que “a intenção do Espírito Santo é ensinarmos como se vai para o céu, e não como vai o céu”. Ambos bons exemplos de atitudes de independência entre os postulados científicos e teológicos.

A ciência faz previsões quantitativas, que podem ser testadas experimentalmente. A religião usa linguagem simbólica e se baseia em pressupostos que não podem ser testados pelo método científico. Uma aceita os limites do método científico, a outra transcende o método. O diálogo e o entendimento entre elas torna a vida humana mais ampla e também mais confortável, na medida em que cada uma respeite seu espaço e seus limites. É preciso lembrar que mesmo os cientistas, quando saem dos seus laboratórios e fazem especulações fora das suas especialidades, não são mais sábios do que qualquer outra pessoa.

Em 2020 ciência e religião se encontraram em vários momentos, com conflitos eventuais, mas também como amigas. Ao final, elas não são nem inimigas, nem estranhas morais. Precisam ser parceiras num mundo com tantas divisões e tantos conflitos, e com grandes desafios para 2021.

MÉDICO MASTOLOGISTA, PROFESSOR DE BIOÉTICA E METODOLOGIA CIENTÍFICA, É VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA E FÉ, EM CURITIBA

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O ÚLTIMO GENERAL DA ATIVA NO GOVERNO ESTÁ COM OS DIAS CONTADOS

Do Blog do Noblat, VEJA 

 Cabeças rolarão rolar dentro do governo para marcar a passagem de um ano infernal para outro capaz de renovar a esperança dos brasileiros em dias melhores. É sempre assim que agem os presidentes da República ao se verem em apuros uma vez que querem manter a própria cabeça no lugar.

Especialista em logística, ministro da Saúde que sucedeu a dois médicos que insistiam em dizer a Bolsonaro o que ele não queria ouvir, Eduardo Pazuello, posto ali para obedecer sem discutir às ordens que viessem do alto, é uma das cabeças que deverão rolar. É também o último general da ativa no governo.

A cobiça por seu cargo só faz crescer entre os políticos mais fisiológicos, aqueles corriqueiramente dispostos a socorrer governos enfraquecidos em troca de sinecuras. 2021 antecede 2022, ano de eleições gerais. Um ano assim serve para que os políticos façam caixa para financiar despesas futuras.

Pazuello será degolado, mas não só por isso. Seu desempenho como ministro foi um desastre monumental. E não importa que tenha sido um desastre por culpa, em primeiro lugar, de quem o escolheu, mais interessado em quem lhe dissesse amém do que em quem desse conta de enfrentar uma pandemia.

O Brasil está cada vez mais próximo de ultrapassar a marca dos 200 mil mortos pelo vírus, e dos 8 milhões de infectados. São números que lhe garantem um lugar no pódio dos países mais flagelados pela doença. Não tem vacina, nem seringas e agulhas para aplicá-la, e o orçamento da Saúde para 2021 é deficitário.

A coleção de erros cometidos por Pazuello e a equipe de militares carregada por ele para o ministério detonou a fantasia de que só os oficiais com sólida formação alcançavam o generalato. O que dele se esperava como especialista em logística é que pelo menos disso soubesse cuidar muito bem. Como se vê, não soube.

Poderia ter poupado do vexame seus colegas de farda, curvando-se às pressões para que pedisse a passagem para a reserva, mas não pediu. Fez questão de manter-se ao mesmo tempo como ministro de Estado e membro do Estado Maior do Exército. Um pé de cada lado do balcão. Emporcalhou a farda.

Teve pelo menos uma oportunidade de sair por cima. Foi quando, depois de autorizado por Bolsonaro, anunciou que o governo compraria a vacina chinesa Coronavac. Desautorizado pelo chefe no dia seguinte, ao invés de pedir demissão, humilhou-se: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Ali, enterrou-se como ministro, e enterrou sua carreira dentro do Exército. Ninguém premia um oficial derrotado.

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OS OÁSIS EM UM ANO ÁSPERO

Míriam Leitão, O GLOBO

Pareceu, em certos dias, que o deserto não acabaria. Mas houve pontos de refresco na caminhada. Quero falar deles nos derradeiros instantes de 2020. Na crise, as empresas fizeram doações em volumes nunca vistos. Diante da escalada da ameaça ao meio ambiente, empresas e bancos formaram coalizões com organizações sociais e anunciaram compromissos em defesa dos biomas brasileiros. Fundos internacionais avisaram que ou o Brasil protege a floresta, ou ficará fora da rota do capital.

A sociedade fez movimentos na direção certa, num ano torto. Médicos e enfermeiros foram à exaustão, mas fizeram a diferença entre vida e morte. A ciência venceu a sua luta mais difícil, enfrentando o vírus e o negacionismo. Saiu vitoriosa. Nunca tantos cientistas nos ilustraram tanto. Em tempo recorde, a ciência está entregando ao mundo as vacinas que abrem a janela para a esperança.

Emicida é parte das boas notícias do ano. É o futuro. Ver tantos negros no Theatro Municipal de São Paulo deu uma sensação de alívio a quem não se conforma com a partição da sociedade brasileira. Ver o jovem Leandro, como a mãe ainda o chama, levar todos a um passeio pela História para constatar que os negros estiveram presentes — o tempo todo presentes — nas grandes conquistas do país foi muito bom. Esse “reescrever” da História para corrigi-la é um deslumbramento. “AmarElo” foi um ponto de virada. A ideia de que se pode matar o mal de ontem com a pedra lançada hoje é tranquilizadora. Então nós podemos ainda corrigir o mal feito antes? Sim. Podemos começar de novo.

As empresas iniciaram o combate à desigualdade racial em seus quadros de funcionários, que ainda mantêm os negros nas funções com menor remuneração e nenhum poder, e os brancos no comando. Essa paisagem corporativa começou a mudar. O recrutamento ativo passou a ser levado a sério. Não por benemerência, mas por necessidade algumas empresas corrigem sua forma de pensar e de recrutar pessoas. Foi um avanço num ano distópico. Eu sei que muitos podem pensar: foi um avanço mas pessoas morreram por isso. George Floyd e João Alberto Freitas. É verdade. Mas no passado houve mortes que foram esquecidas sem mover a roda emperrada da História.

Donald Trump perdeu a eleição e isso foi muito bom. Sua escalada de desmonte da democracia americana, sua negação da mudança climática, seu estímulo aos supremacistas e governantes autoritários estão acabando. Joe Biden está compondo um governo com diversidade. A vice Kamala Harris reforça essa esperança. Na área ambiental e climática, Biden fez uma equipe que convenceu, segundo editorial do New York Times. O veterano John Kerry vai organizar a volta ao Acordo de Paris. A primeira indígena no governo, Deb Haaland, será a secretária do Interior. Terá poder sobre parques e florestas nacionais que antes estavam entregues a um lobista do petróleo. O setor de energia ficará com Jennifer Granholm. Como governadora de Michigan ela liderou a implantação de energia renovável. A lista dos acertos é longa.

Foi o ano em que as famílias, as empresas, os eventos, o jornalismo testaram o fim da distância. Não era mais preciso estar presente, para estar presente. Houve um salto digital enorme. Era possível antes, mas não era tentado nessa escala. Seminários, encontros, reuniões, entrevistas, festivais tudo feito pelas plataformas que nos agregam em pontos diferentes do país, e do mundo. Esse salto tecnológico deixará um legado. O mundo ficou mais estreito, entre quatro paredes e, ao mesmo tempo, ampliou-se.

O ano foi farto de eventos ruins, mas quero falar dos bons e me lembro dos aniversariantes. Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto teriam feito 100 anos. O centenário do nascimento desses dois gênios nos ajudou em 2020. As leituras ou releituras apontaram caminhos. Clarice ensinou em “Paixão segundo G.H.” que “a atualidade não tem esperança, a atualidade não tem futuro”, e isso nos dá esperança de que essa atualidade não se perpetue. E escreveu, como se intuísse a grande aflição que vivemos este ano. “Se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca parasse de gritar. (…) nós que guardamos o grito em segredo inviolável”. João Cabral foi ofendido no ano de seu centenário, no Itamaraty, local de seu trabalho como diplomata. Quem o ofendeu não será lembrado na história, mas o poeta sim, esse ficará. Estará nos rios que ele seguiu, nas pedras que ele amou, nos brasileiros desvalidos que ele homenageou com seus versos. “E ainda se me permite mais uma vez indagar: é boa essa profissão na qual a comadre ora está?” Se a mim fosse dirigida a pergunta, e não à rezadeira, diria que sim, o jornalismo viveu um grande ano, dando boas informações, num tempo confuso.

Cada pessoa sabe o que viveu, e houve perdas irreparáveis. Foi difícil sim, mas os oásis nos ajudaram na travessia. O calendário marca o recomeço daqui a algumas horas. Feliz Ano Novo.

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A NAÇÃO, REFÉM DO DESCASO

Editorial O Estado de S.Paulo

A Nação está refém do inconcebível descaso de Jair Bolsonaro pela vida e pela saúde pública, quando, como ocorre em qualquer país normal, deveria ser bem liderada por seu presidente no curso da mais letal emergência sanitária que se abateu sobre o Brasil desde 1918.

Nesta hora grave, a postura insultuosa de Bolsonaro diante das aflições dos brasileiros deve ser vista como uma traição ao juramento por ele prestado sobre a Constituição ao tomar posse como presidente da República. Aquele que deveria ser o líder de todos os esforços nacionais para acabar com um flagelo que há dez longos meses exaure o espírito de milhões de seus compatriotas, ao contrário, é o primeiro de uma penca de sabotadores desses esforços. E com indisfarçável satisfação.

O País chega a 2021 perto da marca de 195 mil mortos pela covid-19. Jamais tantos brasileiros morreram em tão pouco tempo devido a uma só causa. Angustiada, a Nação assiste ao início da campanha de vacinação contra o novo coronavírus em cerca de 50 países, alguns dos quais em condições econômicas mais adversas que as do Brasil, sem saber quando e como será vacinada. É como se aos que aqui vivem não bastassem as provações já impostas pela pandemia, agregando-se um presidente mequetrefe ao longo rol de infortúnios.

No sábado passado, ao ser questionado por um jornalista se sentia a pressão de ver outros países iniciarem a vacinação de seus nacionais, Bolsonaro reagiu dizendo “não dar bola para isso”, pois “ninguém o pressiona para nada”. É este presidente à prova de “pressões” – até mesmo a pressão para salvar vidas – que, como se não tivesse múltiplas crises para debelar, encontrou tempo para jogar futebol, debochar de adversários políticos, criticar os laboratórios que fabricam as vacinas e ofender a ex-presidente Dilma Rousseff, entre outros absurdos. Parece claro que Jair Bolsonaro está mais preocupado em desviar as atenções do País de sua irremediável incompetência do que em viabilizar o início de uma campanha de vacinação sem a qual mais brasileiros vão morrer e mais preso a este pesadelo estará o País.

Bolsonaro é um presidente sui generis. Em sua cruzada antivacina, destoa até mesmo de líderes aos quais sempre demonstrou ter profunda admiração, como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu. Ambos não foram tão longe a ponto de questionar a segurança das vacinas e mobilizaram seus governos para conseguir o maior número de doses para seus nacionais no menor tempo possível. Líderes de direita e de extrema direita com os quais o presidente brasileiro mantém afinidades ideológicas – como os primeiros-ministros do Reino Unido, Boris Johnson, e da Hungria, Viktor Orbán, também fizeram planos para adquirir vacinas.

No início da segunda metade de seu mandato, Jair Bolsonaro ainda não tem um plano para amparar os desvalidos que deixarão de receber o auxílio emergencial, não tem um plano para destravar a economia e gerar empregos e, não menos importante, não tem um plano para vacinar toda a população. Não há saída possível para a crise que paralisa o Brasil que não passe por uma rápida e eficaz imunização contra a covid-19.

A Nação vê-se perdida em meio à falta de informações ou à comunicação vacilante das ditas autoridades. As duas vacinas mais próximas dos brasileiros, a Coronavac, fruto da parceria entre o Instituto Butantan e a chinesa Sinovac Life Science, e o imunizante da AstraZeneca e da Universidade de Oxford, que será produzido no Brasil pela Fiocruz, ainda são meras promessas. Até o momento, não se sabe exatamente qual a eficácia da primeira. E erros metodológicos atrasaram a conclusão dos testes de fase 3 da segunda.

Não se esperava que o Brasil fosse um dos primeiros países a vacinar seus cidadãos. Afinal, havia países mais desenvolvidos com condições de sair na frente em suas campanhas de vacinação. Tampouco condiz com a grandeza do País não haver sequer previsão segura do início da imunização por aqui. E não há porque Bolsonaro nunca quis que houvesse.

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A DEFESA DA CIDADANIA

Merval Pereira, O GLOBO

O que os bolsonaristas estão chamando de “ativismo judicial” descontrolado nada mais é do que a defesa de uma política sanitária que nos permita ter vacinas mais rapidamente. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, acolhendo um pedido do partido político Rede, estendeu a validade de medidas de combate à pandemia, cujo prazo terminaria hoje, 31 de dezembro.

A mais importante delas é a autorização para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em caráter “excepcional e temporária”, em até 72 horas, libere a importação e distribuição de vacinas contra a Covid-19 já aprovadas em agências equivalentes dos Estados Unidos, Europa, China ou Japão.

Com a aprovação, no Reino Unido, da vacina da AstraZeneca/Oxford, que já estamos fabricando aqui na Fiocruz, o governo, que apostou nesse imunizante, poderia iniciar imediatamente a vacinação a nível nacional. Claro que temos um problema a mais, ainda não temos seringas nem agulhas. Para infelicidade de Bolsonaro, o governador João Doria foi precavido e já comprou seringas e agulhas suficientes para vacinar a população do estado.

Como a quantidade de doses ainda será pequena, o sistema que os ingleses adotarão pode ser uma solução inicial: dar a todos a primeira dose, e só a partir da maior produção, começar a vacinação com a segunda dose. Seria um início emergencial para um problema que se transformou em calamidade pública, embora o presidente Bolsonaro e seus mais próximos assessores não levem em conta suas responsabilidades.

Nas festas de fim de ano no litoral paulista, Bolsonaro, como de hábito, não está usando máscara, e provoca aglomeração. O governo, no entanto, confirmando sua incapacidade de atuação, estava disposto a deixar passar o prazo, o que atrasaria muito a vacinação já atrasada no país. O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, também já havia se antecipado à previsível lassidão do governo, autorizando a compra de vacinas já aprovadas em outras agências internacionais, dentro do espírito da lei que agora o STF prorrogou em boa hora.

A atitude particularmente perversa do presidente Bolsonaro, que ganha prêmios internacionais por seus atos ligados à corrupção, e se tornou motivo de piadas pelo mundo, revelou-se mais uma vez no comentário que fez sobre a aprovação do aborto na Argentina: “Lamento profundamente pelas vidas das crianças argentinas”.

Não se ouviu, a não ser superficial e tardiamente, palavras de pesar do presidente pelos quase 200 mil mortos no Brasil, inclusive crianças, pela incúria do governo no combate à COVID-19, mas Bolsonaro é capaz de, por motivação político-religiosa, se intrometer nas decisões do país vizinho. Barbárie, como classificou o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, é defender a tortura.

A legalização do aborto até a 14º semana de gravidez, como aprovado agora na Argentina, pode ser considerada uma política de saúde pública e um avanço no direito das mulheres pois, segundo a Organização Mundial da Saúde, só um em cada quatro abortos feitos na América Latina ocorre de maneira segura. Claro que é assunto delicado, e que comporta várias visões de mundo, mas o fanatismo religioso não pode estar à frente da emancipação dos cidadãos.

O que aconteceu recentemente entre nós, quando uma criança de dez anos, abusada seguidamente pelo tio, teve que chegar ao hospital escondida na mala de um carro para poder fazer o aborto legal, não é aceitável. Os fanáticos que se postaram à frente do hospital tentando impedir a realização da cirurgia autorizada pela Justiça tiveram o incentivo de bolsonaristas seguidores da ministra Damares, cujos funcionários foram acusados de vazar a informação de onde seria feita a operação, o que levou os fanáticos religiosos a fazerem suas manifestações, com ataques morais e até físicos contra os médicos envolvidos na operação.

Esse mesmo fanatismo faz com que o presidente Jair Bolsonaro insinue que quem tomar vacina contra a COVID-19 pode virar jacaré. Nas redes sociais, há até mesmo loucuras como a afirmação que a vacina interferirá no DNA das pessoas. Todas essas aberrações e o fanatismo religioso acontecem não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo. O que não acontece é um presidente da República dar vazão à divulgação delas.

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O VÍRUS TAMBÉM ATACA OS DIREITOS HUMANOS

Cecilia Ballesteros, EL PAÍS 

Michelle Bachelet já alertou. A alta-comissária de Direitos Humanos da ONU identificou o perigo em abril e acaba de insistir no final deste ano: a crise sanitária desatada pela covid-19 pode acabar infectando o organismo da democracia e das liberdades. E não há vacina contra esse vírus, “exceto mais direitos humanos”, como disse a ex-presidenta chilena. Desde que a pandemia foi declarada, em março passado, deixando quase dois milhões de mortos, aproximadamente 82 milhões de contagiados e o planeta em polvorosa, alguns regimes autoritários aproveitaram o medo de suas sociedades para transformar as máscaras em focinheiras e o confinamento em estados de exceção encobertos.

Vários especialistas em direitos humanos consultados por este jornal salientam que entre os males trazidos pela pandemia, além da crise sanitária e econômica, será preciso incluir um retrocesso das liberdades, inclusive nas democracias. O último estudo do Idea (Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral, na sigla em inglês), um organismo intergovernamental com sede na Suécia e em parte financiado pela União Europeia, informa que quase a metade dos países democráticos (43%) e a maioria dos não democráticos (90%) adotaram medidas “ilegais, desproporcionais, indefinidas ou desnecessárias” desde o início da pandemia. Em seu relatório sobre o estado da democracia no mundo, o organismo enquadra 162 dos 195 em uma das três seguintes categorias: democracias (99), regimes híbridos (33) e regimes autoritários (30). Os critérios para isso são parâmetros como a existência de eleições confiáveis, o respeito aos direitos humanos e a igualdade entre os sexos.

O relatório afirma que neste ano houve uma erosão do Estado de direito sem igual nas últimas décadas. Por exemplo, em termos de liberdade de expressão, uma das restrições mais comuns, pela primeira vez desde 1975 há mais países em retrocesso do que em ascensão, uma tendência que já vinha sendo vista desde 2014. “Os elementos mais preocupantes se dão no que chamamos de regimes híbridos, como a Rússia, Turquia, Marrocos, Afeganistão e Paquistão, e nas democracias frágeis ou de baixa qualidade, como Polônia, Hungria, Índia, Filipinas e Sérvia, onde as ações do Executivo estão minando os princípios democráticos, uma tendência que, se não for revertida, poderia ter chegado para ficar”, afirma Alberto Fernández, um dos autores do relatório do Ideia, falando por telefone de Estocolmo.

“Embora ainda seja cedo para calibrar o impacto da pandemia e seja complicado tirar conclusões, foram aprovadas medidas que poderiam se manter no tempo, como as restrições à liberdade de imprensa ou de informação, que inclusive se tornaram leis em alguns países, enquanto outras, como as limitações de movimento ou de reunião, ninguém espera razoavelmente que se mantenham além da emergência sanitária”, acrescenta Fernández. Os Estados que se orgulham de terem enfrentado o vírus de maneira mais eficaz e com menor perda de vidas, segundo o cômputo da Universidade Johns Hopkins, conseguiram isso, argumenta o estudo, à custa de ignorar os direitos humanos, como ocorreu por exemplo na China, onde os médicos que alertaram para os primeiros sinais de epidemia em Wuhan foram silenciados e muitos jornalistas estrangeiros foram expulsos, ou em Cuba.

Em países como Islândia, Finlândia, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Taiwan e Uruguai, as medidas adotadas contra o vírus, segundo o relatório, em geral não violaram os direitos fundamentais, embora em muitas partes da Europa e nos Estados Unidos, com uma grande tradição democrática, os decibéis da polarização política tenham subido. “Reagiram de maneira eficaz à pandemia sem solapar as liberdades”, diz Fernández. Não foi assim, porém, na Hungria, Polônia, Ucrânia, Rússia, Eslováquia, Eslovênia, Belarus e Azerbaijão, onde a covid-19 serviu como pretexto para cercear liberdades básicas e para adiar eleições – uma medida eventualmente justificada pelo risco de contágio, mas muito bem aproveitada pelos regimes não democráticos ou autoritários, já que, das 185 votações previstas neste ano até outubro, 93 haviam sido adiadas, e só 92 aconteceram de fato – ou para silenciar críticos, quando não diretamente para esmagar a oposição, como em Bangladesh ou no Camboja.

Em outras zonas do mundo, como a América Latina e a África ―que tem o pior comportamento, com 76% de países com as liberdades em semáforo vermelho, só atrás do Oriente Médio―, a crise sanitária agravou a corrupção, a fragilidade das instituições, a pobreza, a desigualdade e a exclusão dos grupos mais vulneráveis, entre eles as mulheres, os imigrantes e as minorias raciais. Além disso, em oito países, entre eles o México e o Chile, coube às Forças Armadas controlar a pandemia e a segurança. Regimes como os da Venezuela, Cuba e Nicarágua se tornaram ainda mais autoritários, segundo o documento.

“Desde que a pandemia estourou, a democracia e os direitos humanos se deterioraram em 80 países”, adverte por email Amy Slipowitz, coautora do último estudo da organização Freedom House, intitulado Democracia sob confinamento. Segundo ela, “esta deterioração é particularmente preocupante nas democracias incipientes e nos Estados altamente repressivos”. Segundo o relatório dessa organização norte-americana, feito com a participação de mais de 400 jornalistas, trabalhadores sociais, ativistas e especialistas sobre 192 países, a lista inclui tanto ditaduras como democracias que rebaixaram os seus padrões.

Para a Freedom House, a pandemia acentuou a desconfiança na democracia, uma tendência latente que se exacerbou a partir da Grande Recessão de 2008. Embora a emergência sanitária diminua com a difusão de vacinas nos próximos anos, Slipowitz acredita que esse padrão será mantido. Ou seja, que continuará a propagação das chamadas fake news ou desinformação, tão bem manejadas neste ano por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro; será mais fácil para os Governos autoritários controlarem a população alimentando o pânico, ou crescerá o controle dos Estados através da videovigilância, como ilustra o caso da China. “No momento, todos os Governos deveriam assegurar-se de que as medidas de emergência são proporcionais e temporárias. Também deveriam garantir que a população tenha acesso a informação confiável sobre a pandemia, permitir a realização de eleições livres e confiáveis com medidas sanitárias adequadas, identificar e punir as violações de direitos humanos e combater a corrupção”, conclui Slipowitz.

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A ANOMALIA

Editorial Folha de S.Paulo

O regime constitucional de 1988 procurou corrigir o desequilíbrio que levou os sistemas que o precederam a oscilarem entre o impasse e o autoritarismo. O presidente da República não poderia ser fraco a ponto de tornar-se refém do humor circunstancial do Congresso. O chefe do governo tampouco deveria flanar acima das instituições.

A solução, engenhosa, foi dotar a Presidência de prerrogativas mais que suficientes para o seu incumbente liderar a agenda pública nacional, mas de empoderar em paralelo os organismos de Estado dedicados a controlar o Poder Executivo. Vem daí a saliência acumulada nas últimas décadas de órgãos como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal.

O pressuposto do sistema era que a sua mecânica estimularia o presidente a atuar em nome de consensos, com responsabilidade e moderação. Se no Legislativo poderia vigorar a lógica fragmentária, no Executivo os vetores tenderiam a privilegiar a visão do conjunto.

Em relação a esse enquadramento, a eleição e a primeira metade do mandato de Jair Bolsonaro são uma anomalia. O chefe de Estado agiu como líder sectário, investiu contra a aspiração majoritária de minimizar e abreviar o sofrimento com a pandemia, atacou Legislativo e Judiciário com mensagens e atitudes golpistas e atirou à lama o decoro exigido no cargo.

A atuação diante da crise sanitária talvez seja o maior fracasso do espírito constitucional de 1988 no caso do atual mandatário. Enquanto praticamente todos os homólogos de Bolsonaro pelo mundo entenderam a dimensão do desafio e agiram para aumentar a proteção dos seus cidadãos, o governante brasileiro tornou-se um patrocinador de atitudes de risco.

Também na contramão do que se faz no planeta, Bolsonaro saiu a alardear tratamentos sem eficácia comprovada e empregou recursos públicos em sua ideia fixa. Perseverou na demissão de ministros da Saúde até achar alguém lisonjeado com genuflexões diante do chefe.

Sabotou o governador de São Paulo —chegou a comemorar a morte de um voluntário nos testes da vacina paulista—, enquanto o Executivo federal oferecia nada a 212 milhões de pessoas. O Brasil não tem data para começar a campanha de vacinação, não tem imunizantes nem seringas e assiste a outras nações latino-americanas vacinarem os seus cidadãos.

Para Jair Bolsonaro, no entanto, a irresponsabilidade não se limita à incompetência que compromete a saúde —e por essa via a renda— dos brasileiros. O exemplo que vem do presidente também desestimula a vacinação, seja ao difundir idiotices biológicas análogas ao terraplanismo geográfico, seja ao declarar que não pretende se vacinar.

Na frente institucional, o balanço não foi melhor. O mandatário tornou-se agitador de motins contra o Supremo e o Congresso. Quis trazer as Forças Armadas para o seu balé subversivo ao participar de protestos de lunáticos diante da caserna e ao ameaçar descumprir ordens judiciais. A percepção de que insistir no delírio conduziria ao impeachment o fez recuar.

Numa inversão de papéis em relação ao esperado pelo traçado constitucional, o presidente da Câmara dos Deputados acabou assumindo o papel de zelador da moderação e da racionalidade, barrando sandices que vinham do Planalto e propiciando legislações importantes para o futuro, como o Fundeb e a reforma previdenciária.

A desídia pela costura parlamentar do chefe do Executivo —aliada a seu instinto corporativista a favor da gastança e dos privilégios estamentais— impede hoje uma alternativa fiscalmente viável para o fim do auxílio emergencial.

A ideia de remanejar políticas públicas para custear a expansão do socorro aos mais pobres necessita de um presidente responsável, além de politicamente hábil, para ser executada. Não é Bolsonaro.

Este nem mesmo entendeu que inexiste solução para a economia que não passe, necessariamente, pela vacinação em massa. Não percebe que ao trabalhar contra a imunização trai seus próprios interesses, que dirá os da sociedade.

O 2020 de Bolsonaro

18.fev - Faz ofensa de cunho sexual a Patrícia Campos Mello, da Folha

4.mar - Ironiza mau desempenho da economia: "O que é PIB?"

20. mar - Chama a Covid-19 de "gripezinha"

24. mar - Critica fechamento de escolas e comércio, ataca governadores e culpa imprensa

31. mar - No aniversário do golpe militar, diz que "hoje é o dia da liberdade"

16.abr – Troca Luiz enrique Mandetta por por Nelson Teich na Saúde

19.abr - Em frente ao QG do Exército, discursa em manifestação onde se defendia golpe militar

24.abr – É acusado de tentar interferir na PF por Sergio Moro, que deixa o governo

15.mai – Leva Teich a deixar a Saúde

7.jul - Anuncia ter contraído a Covid-19

23.ago - "A vontade é encher tua boca de porrada", diz a um jornalista que o questionou sobre depósitos para a primeira-dama

22.set - Faz discurso negacionista na ONU

21.out - Desautoriza ministro Eduardo Pazuello e suspende compra da Coronavac

10.nov - Celebra suspensão dos estudos da Coronavac motivada pela morte de um voluntário

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"DIRETAS JÁ !"

Almir Pazzianotto, OS DIVERGENTES

Entre as campanhas cívicas que presenciei ou das quais participei, a mais vibrante foi a das “Diretas já!” capitaneada por Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Nelson Carneiro, Humberto Lucena e lideranças do PT, PDT, PTB.

O regime militar (1964-1985) retirou do povo a prerrogativa da escolha dos representantes políticos e se deu o direito de eventualmente decretar o recesso do Poder Legislativo. O presidente da República assumiu o perfil de ditador. Baixava Atos Institucionais e Atos Complementares. Pertencem ao lado cinzento da história o Ato Institucional (AI) de 9/4/1964, que atropelou a Constituição de 1946; o AI-2, de 27/10/1965, que extinguiu os partidos políticos e instituiu a eleição indireta do presidente e do vice-presidente da República; o AI-3, de 25/5/1966, que conferiu às Assembleias Legislativas a prerrogativa de elegerem governadores de Estado; o AI-4, de 7/12/1966, mediante o qual o presidente Castelo Branco converteu o Congresso em Assembleia Nacional “para se reunir extraordinariamente no período compreendido entre 12/12/1966 e 24/1/1967”, a fim de aprovar a nova lei constitucional do Brasil; o AI-5, de 13/12/1968 que excluiu da apreciação judicial  os atos praticados de acordo com o próprio AI-5 e suspendeu o habeas corpus nas acusações de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

A Constituição de 17/10/1969, editada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica com o nome de Emenda nº 1 à Constituição de 24/1/1967, manteve o regime de exceção e preservou a eleição indireta do presidente da República pelo Colégio Eleitoral, composto por integrantes do Congresso Nacional e Delegados das Assembleias Legislativas dos Estados.

Em 1983, comandada pelo PMDB, PT, PDT e PTB, com apoio dos governadores Franco Montoro, Tancredo Neves, Leonel Brizola, José Richa a campanha pelas diretas ganhou amplitude nacional. Na sessão de 24/4/1984, entretanto, a Emenda Dante de Oliveira, deputado federal pelo Mato Grosso, foi derrotada na Câmara dos Deputados.

A Constituição de 5/10/1988 garantiu eleições diretas como cláusula pétrea. A partir da promulgação a soberania popular voltou a ser exercida “pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos”. Foi também assegurada a liberdade de criação, incorporação e extinção dos partidos políticos. O restabelecimento do regime democrático, entretanto, provocou o aparecimento de novos problemas como revela a história dos últimos 32 anos.

Concentremo-nos no caso teratológico do Rio de Janeiro, cuja capital foi a bússola política, intelectual e artística do País. Afinal, o que se passa com o Estado que governou o Brasil até 1961? Financeiramente está arruinado. A segurança sucumbiu diante do crime organizado. A assistência pública à saúde desapareceu. Alarmante quantidade de favelas denuncia gravíssimos problemas humanos e habitacionais. Pior de tudo, porém, é a corrupção institucionalizada.

Dos oito governadores eleitos desde 1982, Leonel Brizola, Moreira Franco, Marcelo Alencar, Anthony e Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral, Luís Fernando Pesão, Wilson Witzel, seis estão envolvidos com a Justiça Criminal, dos quais tiveram o mandato cassado. Deputados e vereadores são acusados da prática da “rachadinha” e de associação com milicianos e o PCC. Por último, temos o caso do prefeito Marcelo Crivella, preso pela Justiça do Estado nove dias antes do encerramento do mandato, colocado em regime de prisão domiciliar graças a leniente despacho do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O erro não está no direito de o povo eleger diretamente os representantes nos poderes Legislativo e Executivo. Surge da multiplicação de partidos fisiológicos e da designação de candidatos pela cúpula partidária, quando a preferência recai, quase sempre, sobre corruptos e quem melhor exercita a demagogia e o populismo. Não temos aquilo a que Ortega y Gasset deu o nome de “memória dos erros”. Daí a insistência das massas em reincidirem nos erros do passado.

A saúde das democracias, escreveu o filósofo espanhol, “depende de mísero detalhe técnico: o processo eleitoral”. Como o processo eleitoral está corrompido e contaminado, a democracia fica doente e corre o risco de morrer.

— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do TST

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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

NOJO, HORROR, INCIVILIDADE

Marco Aurélio Nogueira, O Estado de S.Paulo

Jair Bolsonaro perdeu uma oportunidade de ouro para ficar de boca fechada. Na segunda-feira 28/12, ao debochar da tortura sofrida pela ex-presidente Dilma Rousseff durante os anos da ditadura, ele não só agrediu uma mulher digna e combativa, como também fez papel de paspalho, insensível aos horrores do mundo.

O presidente mostrou ser pessoa perigosa, perversa, cruel, vazia de grandeza. Sem compostura, hostil aos ritos do cargo que ocupa, sem honradez e decência.

Pode ter desejado erguer mais uma cortina de fumaça para ocultar sua incompetência como governante, sua insensibilidade a cada dia mais ostensiva, sua incapacidade de dar atenção a qualquer coisa que diga respeito à humanidade de seus semelhantes e ultrapasse a defesa encarniçada de seus filhos enlameados na corrupção. A ideia deve ter sido desviar o foco daquilo que realmente importa, a vacinação, para a qual o governo não toma nenhuma providência. Nem seringas consegue comprar.

Pode ter desejado fazer isso, como se fosse o malandro-agulha de prontidão. Mas nada justifica suas palavras carregadas de ódio e desprezo, que ferem a decência de qualquer brasileiro em cujo peito pulse um coração.

Cometeu um crime contra o Estado democrático, contra a Constituição, a ética, a moral comum. Impossível fazer vistas grossas para tamanha prova de desfaçatez. Até quando ele seguirá desfilando pelo País esse estilo grosseiro que só faz excitar seus seguidores fanáticos e atiçar o lado mais sombrio da alma brasileira?

Nojo, asco e ojeriza definem bem o sentimento que muitos brasileiros sentiram ao presenciar aquela performance.

Incivilidade e indiferença

Enquanto isso, multiplicam-se pelo País as festas de massa. A desculpa é o réveillon, como antes foi o Natal, os feriados em ponte, a chegada do verão. Tenta-se justificar as aglomerações com a alegação de que as pessoas estão “cansadas da quarentena”. É incompreensível, injustificável, assustador.

Neymar organiza em Mangaratiba uma megafesta de 5 dias para algo em torno de 150-200 convidados. Consta que comprou um antigo haras para abrigar a multidão. Cego para as agruras do mundo, de costas para as pessoas, atrai “influencers”, artistas, youtubers,  os “parças”, a galera amiga de sempre. Um Narciso engolfado em sua egolatria, que ignora os problemas da sociedade.

Ainda no estrato de cima, milionários voam em seus jatinhos para fazer o mesmo em recantos paradisíacos do litoral.

Há bares, boates, galpões que reúnem centenas de pessoas nas grandes e médias cidades. Dançam, bebem, beijam, se abraçam, como se não houvesse amanhã. Há tentativas de interdição, a justiça e a polícia são chamadas, mas nada parece frear as festas macabras. Como escreveu o jornal londrino The Guardian. Nas periferias, a farra também corre solta, no ritmo do fluxo cotidiano.

A negação do vírus entroniza a ignorância, é um reflexo dela.

É duro admitir, mas muitos brasileiros entregaram os pontos. Não conseguem visualizar os efeitos em cadeia daquilo que fazem em público. Pouco se importam com o risco a que se submetem e a que submeterão os que os cercam. Não há neles qualquer senso de responsabilidade coletiva. Sentem-se acima dos mortais. Agem como aquele bárbaro que de repente aparece em plena civilização: apropria-se parcialmente do que há de progresso técnico e desenvolvimento sem compreender o mundo em que vive, com seus perigos e exigências.

É estarrecedor.

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TERRA ARRASADA

Editorial Folha de S,Paulo

Não se pode alegar surpresa diante da sanha destruidora do governo Jair Bolsonaro em áreas naturais e rurais do país. Trata-se quase de compromisso de campanha.

Bolsonaro investe contra políticas de preservação ambiental escorado na doutrina ultrapassada de que a regulação impede o desenvolvimento econômico. Não extinguiu o Ministério do Meio Ambiente, como pretendia, mas acabou por entregá-lo a um sabotador.

Ricardo Salles, mantido no cargo, ao que parece, por pirraça do presidente, realiza a missão de implodir a pasta com a empáfia dos que não conhecem limites. De mais grave, manietou o Ibama, principal órgão de controle capaz de estancar o desmatamento —e responsável, no passado, pela aplicação de multa a Bolsonaro por pesca ilegal.

Em 2021 a agência ambiental combalida terá orçamento 4% menor. Penúria de recursos e assédio de fiscais por chefias aliadas ao ministro fizeram despencar 60%, de 2019 para 2020, os termos de embargo de propriedades que perderam vegetação natural sem autorização, repetindo retrocesso do primeiro ano do atual governo.

Política de devastação bem-sucedida: 11.088 km² de floresta amazônica desapareceram pelas mãos de grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais, princípio da cadeia que ao final beneficia pecuaristas e fazendeiros. Caíram ainda 7.340 km² de cerrado, que tem menos da metade da área da Amazônia e, por isso, sucumbe a ímpeto destruidor ainda mais grave.

As queimadas avançaram 12% no ano, concentrando-se no Pantanal, onde o incremento foi de 120% (de 10 mil focos, em 2019, para 22 mil). No conjunto dos seis biomas do país, os mais de 222 mil incêndios detectados por satélite ainda não alcançaram a média anual tenebrosa da década 2001-2010 (287 mil), porém seguem firme nessa direção.

Não admira que o Ministério Público Federal tenha oficiado já cinco vezes para defenestrar Salles, investidas até aqui rejeitadas pelo Judiciário. A parcela mais moderna do agronegócio, algo tardiamente, se mobiliza contra a gestão ecocida que corrói a imagem do país exportador de commodities.

A condição de pária internacional se agrava com a recusa presidencial em implementar políticas fundiárias. Não houve terra indígena identificada, declarada ou homologada; os recursos para reconhecimento e indenização de territórios quilombolas praticamente foram eliminados.

São direitos e obrigações constitucionais que Bolsonaro teima em descumprir à vista do mundo todo, começando pelos brasileiros.

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BOLSONARISMO É UM MÉTODO DE FRACASSO, NA ECONOMIA DE GUEDES OU NA VACINA

Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo

Jair Bolsonaro anda inquieto. É assim quando seu poder ou sua popularidade estão ameaçados; quando aumenta o risco de que sua família acabe na cadeia. Então passa a dizer mais atrocidades do que de costume contra a democracia, a razão, a decência e a humanidade.

Nos últimos dias tenta arrumar um bode expiatório para justificar a inexistência de vacinas e escamotear o desastre com uma cortina de fumaça, com o bafo fumegante da besta fera. Disse que quer facilitar o acesso a armas de fogo com o objetivo de facilitar insurreições armadas, por exemplo contra João Doria. Debochou, rindo como um psicopata, da tortura de Dilma Rousseff. Etc.

Cerca de três quartos dos brasileiros querem se vacinar. É difícil enganar tanta gente com fantasias lunáticas e propaganda criminosa. Há o risco de a incompetência e os crimes ficarem muito evidentes.

Desde meados do ano entrou em pane o “parlamentarismo branco”, um improviso que fez as vezes de governo no lugar de Bolsonaro. Se essa geringonça política estivesse funcionando, talvez até se pudesse inventar uma gambiarra parlamentar para a compra de vacinas, uma atribuição clara do ministério da Saúde, que, porém, não passa de um almoxarifado a cargo de uma ordenança incapaz. Agora não temos nem a geringonça nem ministério. Sobra então o bolsonarismo puro no poder.

Já vimos isso antes. Paulo Guedes é o bolsonarismo econômico. Não é uma doutrina, claro. Para resumir, é variante, na Economia, da propaganda de fantasias desvairadas associada à incompetência de ressentidos reacionários.

Quando bateu o pânico da epidemia, na segunda semana de março, Guedes dizia que “se promovermos as reformas, abriremos espaço para um ataque direto ao coronavírus. Com 3 bilhões, 4 bilhões ou 5 bilhões de reais a gente aniquila o coronavírus”. Ou “o mundo está em desaceleração sincronizada e o Brasil em plena decolagem [na economia]”. No início de abril, disse que conversara “com um amigo na Inglaterra que criou o passaporte de imunidade. Ele faz 40 milhões de testes. Ele coloca disponíveis para nós, brasileiros, 40 milhões de testes por mês”.

O Congresso e pressões da sociedade enfim fizeram o auxílio emergencial de R$ 600, o que evitou fome, quebradeira catastrófica de empresas, saques, convulsão social e deve ter salvo o mandato de Bolsonaro. O programa teve problemas, até porque não foi organizado por um governo capaz, mas era o que tínhamos. Agora, houve um movimento de governadores e do STF para fazer com que o capacho da Saúde e seu chefe se movessem um tico. Não basta.

Guedes passou o resto do ano no delírio e na inoperância habituais. Volta e meia vinha com sua ideia de CPMF para reduzir impostos sobre folha de salários. Ou com as suas “privatizações de Nostradamus”, aquelas que, não se sabe bem quais, acontecerão em algum dia de algum século. Em julho, como em tantos meses antes e depois, Guedes dissera que o Brasil iria “surpreender o mundo” e que faria “quatro grandes privatizações nos próximos 30, 60, 90 dias”.

Talvez daqui a pouco, algumas centenas de ricos possam pegar seus jatinhos e se vacinar no “Primeiro Mundo”. Não vai resolver, já devem saber, porque a epidemia persistente trava a economia, assim como muitos já sabem que queimar a Amazônia e o Cerrado é problema. Qual ilusão ou cinismo pode restar? Não há governo, apenas propaganda lunática, planos de golpe, quiçá de algum tipo de guerra civil. A cumplicidade vai custar caro.

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CENA INTERNACIONAL MUDOU, POLÍTICA TERÁ DE SE AJUSTAR

Sergio Amaral, O Estado de S. Paulo

As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.

Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.

Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.

Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.

Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.

O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.

A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:

1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.

2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potencias. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.

3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.

4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.

No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.

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O GRANDE ESPETÁCULO DE TRUMP

Elio Gaspari, O GLOBO

Faltam três semanas para o dia em que Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. Com a pandemia e Donald Trump, não se sabe direito como as coisas funcionarão. Não se sabe sequer se ele irá à cerimônia.

Numa época tomada pela Covid-19, pelas vacinas e por Jair Bolsonaro, junta-se um espetáculo histórico: o comportamento de Trump nos últimos dias de seu governo.

Recusando-se a aceitar o resultado das urnas, o atual presidente entrou na moldura de desespero e desequilíbrio de Richard Nixon nos dias que antecederam sua renúncia, em agosto de 1974. Ele estava bebendo demais, brigava com a mulher e chamou o secretário de Estado para rezar. O chefe de seu gabinete temeu que ele se matasse. Estava entendido que Nixon destrambelhara. Temeu-se que, num surto, ele resolvesse usar armas nucleares contra algum inimigo. Por isso, se ele tentasse mexer nas bombas, a ordem precisaria ser confirmada pelo secretário da Defesa. Ela nunca foi dada. Esses fatos, contudo, começaram a sair dos bastidores aos poucos. Para consumo geral, ficou a imagem do presidente deixando a Casa Branca com um grande sorriso e os braços erguidos.

Trump está oferecendo um espetáculo público. Depois de contestar o resultado das urnas, passa o tempo trancado, jogando golfe, anistiando comparsas e delirando. Nesse ambiente, surgiu até a ideia de colocar a maior democracia do mundo sob lei marcial. Como não poderia deixar de ser, aporrinhou a mulher porque teria aparecido pouco nas revistas de moda. Desde novembro, estava claro que Trump destrambelhara num patamar inédito. Acompanhá-lo até o dia 20 de janeiro, seguindo cada detalhe de sua partida, será um grande espetáculo. Algo como um seriado de televisão.

Os Estados Unidos ralaram em duas décadas com dois dos três piores presidentes de sua história: Trump e George W. Bush. O terceiro foi James Buchanan (1857-1861), que deixou para Abraham Lincoln a encrenca que resultaria na Guerra Civil.

Dos três, o único que se conduziu como um desequilibrado foi Trump. E daí vem a boa notícia: as instituições americanas sobreviveram a um tatarana na Casa Branca. Prova disso está no fato de que, ao contrário do que supunham seus adoradores, a judicialização do resultado eleitoral jamais dependeu de uma decisão dos nove juízes da Corte Suprema. Seus pleitos atolaram antes.

Noves fora Buchanan, a competição pelo título de pior presidente fica entre Bush II e Trump. Essa é uma boa discussão. Como pessoa física, Trump ganha com larga vantagem. Como a blindagem das instituições impediu muitos de seus estragos, é possível que Bush II, com sua guerra no Iraque e a recessão do fim de mandato, tenha causado mais danos à nação. Registre-se que Bush, como seu pai, é um ex-presidente exemplar, coisa que não há a menor possibilidade de acontecer com Trump. (Está aí a procuradora-geral do Estado de Nova York, encarregada de olhar para as finanças do doutor.)

Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, valendo-se de um provérbio português, “ninguém se livra de pedrada de doido nem de coice de burro”. Nem os Estados Unidos. Dificilmente o mundo terá oportunidade de acompanhar um espetáculo como o que vem por aí.

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