31 de dezembro de 2020: enfim, o último dia do ano mais longo que já vivemos, o ano que nos enganou no começo com a linda ressonância dos seus números dobrados, vinte-vinte, mas logo se revelou mais angustiante, divisivo e mortal do que qualquer outro na nossa memória recente. O que mais dói é que não precisava ter sido assim.
Em circunstância nenhuma teríamos escapado da Covid-19, mas não precisávamos ter enfrentado tantas epidemias ao mesmo tempo — de obscurantismo, de arrogância e de politicagem, de descaso e de deboche, de incompetência e de estupidez.
O ano leva a assinatura de Jair Messias Bolsonaro de ponta a ponta.
Teria sido bastante ruim enfrentar tantas mortes e tanta devastação em circunstâncias “normais”, se é que se pode falar em normalidade numa hora dessas, mas foi medonho viver tudo isso tendo no mais alto cargo da nação esse homem inculto e mau, esse ignorante absoluto da própria ignorância, incapaz de entender o pouco que se pedia dele diante da pandemia: calar a boca, seguir os especialistas, dar o exemplo.
Teria sido tão mais simples, tão menos devastador.
Nem precisava ser uma Jacinda Arden ou uma Angela Merkel. Bastava ter um mínimo de inteligência — um pouquinho, não muito, o suficiente apenas para perceber que vírus não tem ideologia e não se combate no grito.
Teria sido tão mais fácil atravessar o ano ouvindo palavras de consolo e de encorajamento; ou, pelo menos, não ouvindo nada.
Mas foram tantos absurdos, tantas ofensas e desaforos, que chegamos a esse fim de ano exaustos, sem energia sequer para manifestar indignação — a tal ponto que o capitão foi para a televisão fazer pronunciamento na noite de Natal e, salvo raras exceções, as panelas permaneceram mudas na cozinha.
Além da Covid-19, tivemos que nos proteger de idiotas negacionistas e de gente grosseira em geral que se sente respaldada por atitudes irresponsáveis vindas de cima. Se o presidente não tem compostura, por que o cidadão precisa ter? Se o presidente não usa máscara, por que o desembargador vai usar?
Ainda assim, amanhã vai ser outro dia, outro ano. Já estamos adultos, sabemos que nada muda de verdade — mas, se a gente não tiver alguma esperança no dia 31 de dezembro, quando vai ter?
Tenho repetido como um mantra que, ainda que haja muita gente má à nossa volta, a quantidade de gente boa continua sendo maior. Gente má faz mais barulho, se faz notar melhor, mas precisamos aprender a apreciar os pequenos gestos de gentileza e a educação invisível, que nos parecem apenas naturais.
Pois não são.
Eles brotaram ano a ano, século a século, milênio a milênio. São fruto de um longo processo civilizatório, foram cultivados, adubados, cuidados. Às vezes temos recaídas coletivas e regredimos, mas a tendência é nos tornarmos mais atentos e melhores com o passar do tempo. Percebemos o mal porque já conhecemos o bem, e isso faz diferença.
Você acredita mesmo nisso, Cora Rónai?
Acredito, muito. O problema é que nem sempre me lembro de que penso assim. Felicidade — ou, vá lá, fé na Humanidade — é, também, um exercício de memória.
Tenham um bom Ano Novo, pessoas queridas.
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