sábado, 27 de fevereiro de 2021

A HORA MAIS AMARGA

Marco Aurélio Nogueira, O Estado de S.Paulo

Não há por que esconder que o ano de 2021 seguirá em marcha de desastre e tragédia.

Já seria complicado se tivéssemos um bom governo e um estoque generoso de vacinas. Seria um alívio, uma injeção de ânimo. Mas o Programa Nacional de Imunizações e o SUS estão soterrados por falhas e incúria, funcionam a duras penas, sem coordenação do Ministério da Saúde e tendo muitas vezes de se contrapor a ele. O “apagão” de vacinas é parte disso.

Não temos vacinas porque os responsáveis pela aquisição simplesmente viraram as costas para a pandemia, trataram-na como coisa sem importância e não se preocuparam em agir quando os imunizantes se tornaram disponíveis. Por essa desfaçatez criminosa e pelos exemplos e atitudes que adotou desde março de 2020, o governo impulsionou a disseminação do vírus e a contaminação serial. Convidou parte da população a não seguir protocolos sanitários básicos. Continua a fazer isso, em que pesem os discursos oficiais que, agora, no auge do desespero, soam em tom apaziguador. Chegamos a 250 mil mortos e tudo indica que o número continuará crescendo.

Há um cortejo de sócios dessa tragédia. Não perdemos o controle da pandemia só porque o governo não soube e não quis agir. Houve a colaboração de médicos que endossaram (ou não condenaram) a prescrição de tratamentos ineficazes. Os militares coonestaram tudo, desonrando a farda que envergam. A ignorância geral, a desvalorização da ciência e de seus instrumentos de pesquisa, a má consciência cívica de parcela da população, a falta de condições sociais para o distanciamento formaram um circuito que foi sufocando o País.

O governo federal barbarizou, mostrou-se mais interessado em “defender a economia” e fazer campanha do que em preservar vidas. Manipulou o auxílio emergencial. Hospitais lotaram e entraram em colapso sem que a irresponsabilidade retrocedesse. As deficiências do sistema de saúde ficaram expostas. O respeito à ciência foi substituído pela agitação ideológica. Não se compreendeu que o vírus veio para ficar, que teremos de reforçar nossas defesas daqui para a frente, mudar atitudes, prioridades e valores.

Hoje, na hora mais amarga, é como se o País tivesse entregado os pontos. O governo anda de costas, seguindo a mesma rota cínica, fomentando confusão, jogando uns contra os outros. Anseia-se pela volta da “vida normal” sem que se tenha monitorado o vírus. O caos se instalou, não há liderança, não há uma política. Nenhum tema é mais importante do que este: como fazer para que a desgraça não se apodere do País, o medo, a angústia e a insegurança não corroam a sensatez e a esperança?

Há indícios de que se está a esboçar um novo “pacto” entre os Poderes: em nome da representação democrática, da legalidade e do “enquadramento” da Lava Jato, Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF) se disporiam a conter a Presidência e a fazer o que ela não faz, abrindo caminho para a adoção de medidas sanitárias emergenciais e que iniciem a reativação da economia, por exemplo. O presidente manteria suas bizarrices e seu teatro nas redes. Continuaria com a caneta na mão, nomeando e demitindo segundo critérios obscuros. Protegeria a família e ficaria livre para se entregar à reeleição. Permaneceria burilando sua mente paranoica, afrontando a Constituição e atiçando sua turma.

Mas nada está dado. Com a “PEC da impunidade” a Câmara quer blindar os parlamentares, o que atrita o STF. Este, por sua vez, está em pleno realinhamento de suas vertentes. E o presidente, bem, o presidente é Bolsonaro…

Os ataques do deputado Daniel Silveira ao STF repuseram em cena a sombra do autoritarismo regressista. A Câmara agiu com rapidez, receosa de sua própria desmoralização. Mostrou que o governo pode muito, mas não pode tudo. Como observou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Casa, o bolsonarismo extremo precisa ser contido porque atrapalha o funcionamento regular dos Poderes constituídos e impede que haja governo no País. Se a Câmara seguirá essa pauta é uma incógnita.

Numa democracia, não há cooperação sem conflito e competição. É de crer que os principais partidos democráticos desejem colaborar para resguardar a democracia e forçar o governo a governar. Mas não é por isso que deixarão de brigar pelas próprias causas e ideias. Ganham quando cooperam entre si e também ganham quando demarcam suas diferenças. Para eles, há mais coisas em jogo do que a formação de uma “frente” contra o governo.

Pontes que facilitem a adoção de uma “competitividade cooperativa” passam pela formulação de programas com consensos mínimos consistentes, que dialoguem com o desastre em que estamos. Passam, também, por uma “fulanização” bem compreendida: em torno de quem, afinal, o programa acordado poderá ganhar materialização?

É na hora mais amarga que despontam as grandes lideranças, os estadistas, os talentos emergentes. É nela que as zonas de conforto são substituídas pela entrega à comunidade política, com suas causas e suas exigências.

Que assim seja.

*Professor titular de teoria política da Unesp

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