terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

PRIORIDADE PERVERSA

Editorial Folha de S.Paulo

Avolumam-se as evidências de que o governo Jair Bolsonaro deturpou de modo deliberado o enfrentamento da pandemia. Não bastassem seguidas as manifestações minimizando riscos da infecção e a sabotagem da vacinação, o presidente deixou várias digitais na promoção de uma terapia inexistente contra o ataque viral.

Bolsonaro seguiu perversamente Donald Trump ao adotar como prioridade a cloroquina do famigerado tratamento precoce. O republicano abandonou a panaceia antes de seu fiasco eleitoral, mas o imitador sul-americano a manteve, impávido, mesmo com estudo após estudo a negar-lhe eficácia.

Acossados por investigações e questionamentos da Procuradoria-Geral da República e do Tribunal de Contas da União, o presidente e um tragicômico ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, agora se apressam a recontar a história: o governo só teria respeitado a autonomia de médicos.

Não há carência de imagens do mandatário e do general posando com caixinhas do remédio, porém. Tampouco faltam registros oficiais da mobilização de ministérios, Forças Armadas e outros órgãos da máquina federal na prática de charlatanismo, como mostrou reportagem publicada pela Folha.

Cinco pastas se viram convocadas para a operação diversionista: Saúde, Defesa, Economia, Relações Exteriores e Ciência e Tecnologia.

Quase 6 milhões de comprimidos da droga inócua foram enviados ao Nordeste e ao Norte, seguidos de admoestações a autoridades amazonenses por não os usarem no trágico surto em Manaus, onde o que faltava era oxigênio.

O Exército se pôs a fabricar 3,2 milhões de drágeas, e a Aeronáutica, a transportá-las, a pedido da Defesa; isenções de impostos foram baixadas pela Economia; a Saúde lançou guias e aplicativos prescrevendo a cloroquina; o Itamaraty obteve 2 milhões de doses dos EUA; o Ministério da Ciência e Tecnologia patrocinou estudos.

Todo esse empenho governamental para viabilizar a ficção ignorante de Bolsonaro contrasta com o desvio da obrigação de financiar, propagar e coordenar prioridades efetivas como distanciamento social, testagem em massa, rastreamento de contaminados, aquisição de vacinas e vigilância genômica (com sequenciamento dos vírus em circulação).

Em vez disso temos vacinação atrasada, aglomerações em alta, milhões de testes a perder a validade, rastreamento pífio e falta de insumos para geneticistas monitorarem as variedades do vírus.

É desastre que não se explica somente por incompetência, mesmo uma de dimensões incomuns.

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