domingo, 24 de outubro de 2021

O PRONTUÁRIO DE MALDADES

Carlos José Marques, ISTOÉ

Vergado em lágrimas, destroçado por uma dor dilacerante que não cessa, apelando por compaixão frente ao sofrimento que lhe rasgou a alma, o taxista Marcio Antônio Nascimento expunha a razão do desespero, pela primeira vez em público diante das câmeras, na segunda-feira 18, ante a CPI da Covid que concluía os trabalhos: “o último momento que eu tive com meu filho, que eu fui reconhecer, ele estava dentro do saco. Eu não pude dar um abraço, não pude dar o último beijo. Cheguei a levar uma roupa para vesti-lo. Não consegui. A minha dor não é mimimi”. Não havia como não se condoer com a cena. A própria tradutora de libras, presente ao momento, travou, teve de parar o trabalho para se recompor diante do que assistia. Ninguém, em pleno controle das faculdades mentais, normal e civilizado, ficaria impassível ao ouvir tão angustiante depoimento. 

O filho de Márcio, Hugo Dutra Nascimento, de 25 anos, entrou para o rol das mais de 600 mil vítimas da pandemia no Brasil. E o pai, Márcio, visivelmente atordoado, alquebrado pela saudade sem fim, reclamava do deboche presidencial com os óbitos e exigia um pedido de desculpas do mandatário Bolsonaro. Algo simples, absolutamente justificável, mas que não encontraria eco ou resposta nos salões envidraçados do Planalto, logo ali perto, a poucos metros de onde relatava seu calvário. Foram seguidos e inúmeros os apelos no mesmo sentido, proferidos nos testemunhos de parentes órfãos convidados à sessão. Em vão. O inquilino do Palácio, que em dado momento fora capaz de imitar moribundos em agonia com falta de ar, nunca manifestou qualquer gesto de empatia ou amparo por aqueles que não resistiram à doença. Ao contrário.

Em tom de irritação com as cobranças, o “mito” Bolsonaro, em determinada ocasião, chegou mesmo a tripudiar de viva voz, aos berros no microfone, criticando sem dó os tomados por essa tragédia em escala. “Vocês não ficaram em casa? Não se acovardaram? Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”. Em que grau de maldade pode ser classificada uma declaração como essa diante do imenso martírio e aflição que destruíram famílias, lares, amigos, conhecidos, objetivos de vida? A dimensão da patologia implícita no comportamento do mandatário é típica dos loucos inconsequentes internados em manicômios. Jamais de um chefe de Nação. Jair Bolsonaro, todos sabem e acompanharam, fez ainda mais e pior. Patrocinou mortes em escala, não apenas com o seu negacionismo, mas com ações efetivas de incitação ao tumulto, de promoção de drogas ineficazes (fatais em muitos casos), de pregação contra o uso de máscaras, de inconsequência e descaso na compra atrasada de vacinas, de pouco caso e demora deliberada no fornecimento de oxigênio em resposta à tragédia de Manaus, que também redundou em óbitos (milhares deles) e com toda sorte de irresponsabilidades, natas de quem jamais esteve preocupado com o assunto. 

Kits de exames de covid apodreceram até o vencimento nos galpões do governo, sem distribuição, apesar da necessidade vital de seu uso nas unidades de emergência. Equipamentos e medicamentos também deixaram de ser fornecidos em escala suficiente na rede do SUS, e mesmo a verba de bilhões de reais, aprovada e reservada no orçamento pelo Congresso para o combate à doença, sequer foi destinada para esse fim. Tamanha coletânea de imprudências evidencia o pendor do presidente para o morticínio. Devido a uma filigrana jurídica, os responsáveis pela Comissão de Inquérito do Congresso, que apura as práticas irregulares durante a pandemia e pediu o indiciamento do mandatário e de mais 60 envolvidos, resolveram de última hora retirar do relatório as acusações de genocídio e homicídio que lhe eram originalmente atribuídas. O acordão político nesse sentido tomava por base o fato de os tribunais raramente aceitarem condenações por genocídio, dada a difícil tipificação dele. 

O termo surgiu pela primeira vez no Tribunal de Nuremberg, que julgou nazistas pelas atrocidades do Holocausto durante a 2ª Grande Guerra e, na ocasião, mesmo frente aos evidentes fatos, os acusados foram punidos apenas por crimes contra a humanidade. Na convenção das Nações Unidas de 1948 – também subscrita pelo Brasil –, o genocídio é caracterizado como “uma série de atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. O conjunto da obra de destruição do “mito” Messias, ao menos aos olhos da imensa maioria da população brasileira, parece apontar nessa direção. A parvoíce e absoluta petulância do presidente não podem lhe reservar o direito de sair impune após as conclusões da Comissão. Pelo código penal, as denúncias imputadas a Bolsonaro somariam, caso referendadas no campo jurídico, ao menos 40 anos de prisão. Seu filho e senador, Flávio Bolsonaro, diante do resultado e da leitura do relatório final, debochou insolentemente e disse que o pai daria gargalhadas quando comunicado das conclusões. 

Dito e feito. O capitão, movido pela empáfia e prepotência que lhes são peculiares, reagiu jocosamente. Perguntado a respeito, disparou: “você acha que vou me preocupar com CPI? Tá de brincadeira”. São cenas repugnantes de um governo errático. A orfandade em massa de famílias brasileiras merece mais respeito e a devida responsabilização legal pelas imprudências cometidas. O presidente que afrontou à Constituição, prevaricou descaradamente e vilipendiou as tarefas que eram natas do seu cargo terá de responder pelos erros. No fundo sabe dos riscos que lhe pesam sobre a cabeça daqui por diante. Mesmo em Cortes internacionais ele já foi arrolado em processos como homicida. Um predador abjeto, que vê cada cidadão como mero eleitor para lhe garantir mandato, pode não ter qualquer complacência para com os semelhantes, mas, cedo ou tarde, pagará o preço por tanto desaforo. 

Márcio, o taxista inconformado, que em seu pungente depoimento representou a angústia de milhões, lembrou a razão dessa luta: “a gente está falando de vidas, de pessoas que morreram, sabe? Quem fala que é circo é porque não se importa com as pessoas que morreram. Então, eles são os verdadeiros palhaços, não somos nós. Desculpem. A dor continua por tudo que veio depois. Por cada deboche, cada sorriso, cada ironia”. Como Márcio, tantos outros brasileiros dão rosto a essa tenebrosa catástrofe. Não são meros números, estatísticas. Não deveriam ouvir simplesmente o “E daí? Morreu? É da vida”. Agride, machuca, dilacera, barbariza. Apenas monstros agem assim.

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