Não passou indiferente, muito menos ileso, mais um ato de deplorável oportunismo eleitoral e maldade mesmo: o episódio no qual Bolsonaro e sua trupe vão atrás de uma criança com registro de parada cardíaca, tentando associar o caso à vacinação infantil – algo que se mostrou, mais uma vez, para variar, infundado. Não é fácil sequer digerir a ideia de um mandatário sendo capaz de tamanha ignomínia, quase na torcida pela morte da suposta vítima. Mas estamos falando de Jair Messias Bolsonaro, aquele que já deu provas em abundância do quão baixo pode chegar para alcançar seus intentos. Bolsonaro, Queiroga e Damares queriam o “troféu” de um pequeno vacinado, com efeitos graves devido à imunização, para fazer valer seus argumentos, falaciosos e repugnantes, contra a aplicação de doses nessa faixa etária. Pior: para eles, o ideal seria um cadáver imberbe, capaz de chocar a turba e, assim, com força para interromper a campanha vacinal dos menores – campanha essa com a qual o capitão nunca esteve de acordo.
A troco do quê? Da mais pura e ignóbil ideologia, sem qualquer fundamentação científica. O pensamento retrógrado, tacanho e obscurantista que essa turma vem tentando fazer prevalente no País desde que assumiu o poder. Pois bem, o presidente, que após quase 630 mil mortos da Covid-19 não foi capaz de um mínimo gesto de solidariedade, uma demonstração sequer de compaixão ou apoio aos familiares das vítimas da mais terrível pandemia que se abateu sobre nós, decidiu ligar para a casa justamente da menina que, na teoria, tinha tido um ataque de arritmia devido ao imunizante. Seu interesse não era quanto a mortes pela doença, e sim pela aplicação da vacina — a mesma responsável por baixar, consideravelmente, as taxas de óbito em todo o mundo e que tem barrado casos críticos. Bolsonaro fez mais. Despachou diretamente para Lençóis Paulista, onde mora a família, os ministros da Saúde, Marcelo Queiroga, e dos Direitos Humanos, Damares Alves, a bordo de um jatinho, em uma mobilização jamais vista até aqui para tentar confirmar os prognósticos. Ato contínuo, espalhou nas redes sociais que havia falado com o pai da criança, “um cabo da PM”, e insinuou mistérios no ar.
“Conversei com o cabo, pai da menina de Lençóis. Não vou revelar a conversa, nem gravei, mas o que ele disse para gente é preocupante. Agora, foi em função da vacina ou não foi?”, trombeteou o mandatário. O próprio Ministério da Saúde, por pressão da comunidade médica, viu-se obrigado a dirimir as “dúvidas”, negando qualquer relação com a vacina, frustrando o presidente e descredenciando mais essa tentativa de sabotagem. O prazer mórbido de Bolsonaro é facilmente evidenciado em muitas ocasiões. Quando o Brasil cravou dez mil mortos pela Covid, ele foi passear (talvez comemorar?) de jet ski no aprazível Lago Paranoá, em Brasília, aos risos e gestos de diversão. Quando a estatística alcançou 100 mil óbitos, indagado por repórteres a respeito, respondeu com um desprezível “e daí? Todo mundo vai morrer um dia. É da vida!”.
Nos 200 mil, não conteve a ira diante do quanto aquilo atrapalhava os seus planos e esbravejou: “Vamos deixar de frescura, de mimimi! Vão ficar chorando até quando?”. Os brasileiros continuaram a chorar por muito mais tempo e ainda não pararam, ante a indiferença cruel do mandatário – o mesmo que, deliberadamente, deixou faltar oxigênio em Manaus, levando ao fim por asfixia criminosa alguns milhares de contaminados. Ele não se importa, nunca se importou mesmo, com o que pejorativamente chama de “gripezinha”. A busca da vítima/troféu antivaxx é mais uma prova. No gesto do telefonema, nada de empatia. Ligou movido pela mera utilidade que o caso lhe suscitava. Depois poderia aparecer em uma das lives, lamentáveis na maioria, com o típico “eu não disse? olha o que aconteceu!”. Plano abortado, a menina, graças a Deus, passa bem.
Mas a ópera bufa não acabou por aqui. No que refere-se à sistemática cruzada do governo contra toda e qualquer imunização, o céu parece ser mesmo o limite. Dias mais tarde, uma aberração maior, ou, no mínimo, do mesmo tamanho, entrou em curso. Uma nota técnica, assinada pelo segundo da hierarquia da pasta de Queiroga, o secretário Hélio Angotti, chocava o Brasil ao apontar, explicitamente, que a Hidroxicloroquina funcionava e a vacina não. Era o apogeu do negacionismo, documentado e lavrado no âmbito do Ministério da Saúde. Nada poderia ser mais absurdo, contrariando a própria Anvisa, Conitec, autoridades sanitárias e institutos de pesquisas em todo o mundo. E essa era a diretriz a ser encaminhada ao Sistema do SUS, reiterando a pregação do capitão Cloroquina.
Para Angotti, as vacinas “não possuem efetividade, nem segurança”. O contrário do que ocorre, no seu entender, com o medicamento-estrela do malfadado kit Covid do governo. O espetáculo circense estava completo. A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Food and Drug Administration (FDA) e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) protestaram. Associações médicas e legais pediram o impeachment tanto de Queiroga como do subordinado, Hélio Angotti. Em vão. O governo passou pano na história. A pasta retirou o documento, publicou nova versão (embora com a conclusão permanecendo praticamente igual) e deu por encerrado o assunto. A mentira, não é de hoje, passou a ser instrumento de gestão na era Bolsonaro. Também nessa área vital. Não bastasse o fato de que, em dois anos de pandemia, ele pouco ou nada fez em prol da segurança dos pacientes e promoção de tratamentos eficazes contra o vírus, ainda se mostra capaz de boicotar a única e eficiente arma existente para debelar o pesadelo da Covid.
É um governo repugnante, certamente o pior que passou por aqui em muitas décadas. Quiçá, em toda a história, desde o Descobrimento. É de um fundamentalismo que vai além dos simples conceitos conservadores e encontra parâmetros em seitas suicidas ou regimes autoritários. Não existem ali políticas públicas concretas, estruturadas, de saúde. Apenas amadorismo, com a venda de drogas inócuas, em sintonia às determinações de um mandatário que nada sabe sobre o assunto e que se baseia nos achismos. Em pleno pico da nova variante Ômicron, Jair Bolsonaro segue reclamando da “pressa” por vacinas. A Covid-19 voltou a liderar causas de morte no País e ele parece considerar pouco. Na logística de transporte das doses para a vacinação infantil, o caos inicial foi enorme. Veio a se descobrir depois que o ministro Queiroga dispensou licitações e escolheu um fornecedor sem nenhuma experiência no ramo. Motivo para investigação? Difícil, com os organismos de controle dominados pelo capitão do Estado. Não há como sublimar as evidências: a imunização vem sendo abertamente sabotada desde a primeira hora pelo presidente. Ele atua como adversário dos esforços para conter o avanço da doença. Faz de tudo um pouco e reitera a ideia de caos, cada vez que é contrariado por medidas de controle da enfermidade. Para um governo abominável, aliar-se ao vírus sempre foi a sua melhor opção. Ao menos deixa entender isso.
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