domingo, 30 de janeiro de 2022

O TREM-BALA MORREU, MAS SUA ESTATAL VIVE

Elio Gaspari, O GLOBO

A repórter Amanda Pupo revelou que a Valec e a Empresa de Planejamento e Logística, a EPL, deverão sobreviver à tentativa do ministro Paulo Guedes de fechá-las. Ambas nasceram em torno do Trem-Bala que ligaria o Rio a São Paulo, um sonho de Lula e de Dilma Rousseff, que estaria rodando para atender às torcidas da Copa de 2014. Uma, a Valec, abrigava o projeto; a outra, a EPL, abrigou seus destroços.

A sobrevivência dessas estatais mostra que, como o Fantasma das Selvas, elas são imortais. Do Trem-Bala já não se fala, mas a Valec e a EPL seriam necessárias, para ajudar, como consultoras, no desenho da política de transportes nacional. Em tese, reeditariam o falecido Grupo Executivo de Integração da Política de Transporte, o Geipot, criado em 1965 e extinto em 2008. Na prática, corre-se o risco de criar uma porta giratória.

O Geipot definiu a política de transportes nacional numa época em que predominava a balbúrdia. O czar da economia, Roberto Campos, pôs lá cabeças de primeira que arrumaram a casa, ocupando poucos andares no Centro do Rio. A partir de 1967, ele começou a desandar e, quando acabou, não houve choro nem vela. Em 2022, a máquina federal tem (ou deveria ter) instrumentos para cuidar do planejamento de rodovias, ferrovias e portos. Não precisa de mais uma camada burocrática.

O Trem-Bala foi uma boa ideia. Ligaria o Rio a São Paulo em poucas horas. Ela foi destruída pela inépcia e por malandragens. Não teve estudo de viabilidade nem projeto, sequer grandes empreiteiros interessados. Poderia custar US$ 15 bilhões. A Valec tornou-se um feudo do eterno Valdemar Costa Neto. Seu presidente, conhecido como Doutor Juquinha, passou uns dias na cadeia, e o sonho resultou apenas num litígio com um empresário italiano. Graças ao BNDES e ao Tribunal de Contas da União, a maluquice foi travada em 2011.

Em julho de 2012 o “Doutor Juquinha” (José Francisco das Neves) passou alguns dias na cadeia. Costa Neto patrocinou seu sucessor, no governo de Michel Temer.

A ideia do Trem-Bala já havia produzido uma estatal, a Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade, a ETAV. Arquivado o trem, ela transmutou-se na Empresa de Planejamento e Logística, a EPL. Desde o início, ela pretendia ser um novo Geipot.

O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, conhece essa história. Auditor da Controladoria-Geral da União, ele comandou a faxina de 2012 como interventor no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Na ocasião, referindo-se à situação do DNIT, ele disse: “O que fazem com ele é uma covardia”. Tinha menos servidores do que precisava, para se dizer o mínimo. Tarcísio assumiu o ministério supondo que fecharia a Valec e a EPL. Passaram-se três anos, não conseguiu fechá-las e voltou ao ponto de partida, com o “novo Geipot”. Isso num governo que tem um ministério da Infraestrutura e o DNIT. Haveria covardia maior?

Transformar a EPL em algo parecido com uma empresa prestadora de serviços de consultoria de transportes cria o risco de se criar uma porta giratória que nada herda do Geipot do tempo de Roberto Campos.

Paulo Guedes perdeu mais uma, na qual tinha razão.

Cassações impróprias

Prosseguindo uma caça às bruxas disseminada no mundo acadêmico, o procurador dos Direitos do Cidadão do Rio Grande do Sul, Enrico Rodrigues de Freitas, recomendou à reitoria da Universidade Federal que casse os títulos de doutores honoris causa concedidos no século passado aos presidentes Costa e Silva e Emílio Médici.

Noves fora uma provável interferência na autonomia universitária, trata-se de uma vindita histórica de gritante parcialidade. Nenhum dos dois generais pediu à universidade que lhes desse o título. Eles foram concedidos por professores titulares, interessados em bajular os presidentes. A bem da verdade, tanto Costa e Silva como Médici nem vaidosos eram.

(Meses depois de um evento na Federal do Rio Grande do Sul, durante o qual discursou sobre a relatividade da democracia, “suicidou-se” no hospital da base aérea de Canoas o estudante de engenharia da UFRS Ary Abreu Lima da Rosa.)

Os dois generais governaram o país durante a ditadura e nenhum dos dois moveu uma palha para abrir o regime. Os títulos não deveriam ter sido dados, mas ao cassá-los, nada mais justo do que divulgar os nomes dos professores que votaram pela concessão do mimo.

Cassações semelhantes já ocorreram na Federal do Rio de Janeiro e na Unicamp, sempre livrando a cara dos bajuladores. Expondo-se a memória de quem usou a universidade para bajular poderosos talvez se evite a repetição das palhaçadas.

Metas ambientais

Comprometendo-se com a OCDE a reduzir o desmatamento, Jair Bolsonaro criará a primeira meta do governo de seu sucessor.

Caso ele consiga a reeleição, contará outra história.

Etiqueta

Magistrados que compõem corpos colegiados e participam de sessões virtuais devem fazer uma caridade aos advogados que defendem suas causas. Basta que prestem atenção a quem fala ou, pelo menos, finjam que estão atentos.

A pandemia disseminou a conduta de doutores que ligam seus computadores e ficam lendo, sabe-se lá o quê.

Fiesp

Depois de oito anos consecutivos de Paulo Skaf na presidência da Fiesp, o mineiro Josué Gomes da Silva está na cadeira sem disposição de repetir a marca.

Por temperamento e experiência empresarial, olhará mais para o chão das fábricas do que para os tapetes do poder.

Boate Kiss

A defesa de um dos condenados pelas mortes de 242 pessoas no incêndio da Boate Kiss, em 2013, achou boa ideia recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a decisão do ministro Luiz Fux que determinou o imediato cumprimento da sentença de primeira instância.

Gesto bonito para a plateia que discordou da decisão de Fux. No mundo das coisas reais (como o incêndio), a iniciativa poderá, em tese, resultar numa recomendação para que os condenados possam recorrer em liberdade, sem qualquer efeito prático. A corte interamericana não tem poder para obrigar o Judiciário brasileiro a soltar os presos, ainda bem.

Botticelli patrulhado

O pequeno quadro de Cristo pintado por Sandro Botticelli em torno de 1500 foi vendido por US$ 45,4 milhões, um décimo do que valeu o Salvator Mundi de Leonardo da Vinci e um quarto do que um bilionário pagou pelo Retrato de Adele Bauer, de Gustav Klimt.

Esses preços refletem a bizarrice do mercado de arte, mas um Botticelli que parece barato é um grande exemplo do efeito das patrulhas. Depois de ter pintado maravilhas pagãs, Botticelli foi influenciado pela patrulhagem moralista do frei Girolamo Savonarola. Chegou a queimar algumas de suas pinturas e nunca mais foi o mesmo.

Quanto ao frei, foi excomungado, enforcado e queimado em 1498.

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