Escândalo dos pastores-lobistas é mais um capítulo na série de crimes de Bolsonaro
Há dois anos e dois meses, a Polícia Federal era arrastada para a crise do governo Bolsonaro enquanto Sergio Moro anunciava que estava de saída do Ministério da Justiça devido a tentativas de interferência de Jair Bolsonaro na corporação. A denúncia não intimidou o presidente. O efeito, na realidade, foi o inverso. O capitão, que se gaba de ter a caneta Bic, ampliou os tentáculos sobre a instituição e não pestanejou em retaliar delegados que avançaram sobre os protegidos do Planalto, com a exoneração de diversos profissionais de cargos de chefia. Agora, a ingerência política ganhou contornos ainda mais graves na investigação do balcão de negócios do Ministério da Educação — o grampo telefônico em que Milton Ribeiro afirma ter sido alertado por Bolsonaro sobre a possibilidade de ser alvo de mandados de busca e apreensão é a mais contundente prova já revelada sobre o aparelhamento da PF.
A gravação aumentou os apuros de Bolsonaro, que está acuado por múltiplos escândalos a três meses das eleições. De um lado, a oposição ganhou o impulso necessário para a abertura de uma CPI no Senado para apurar crimes na pasta, o que deve fazer o presidente sangrar durante toda a campanha eleitoral. Ela pode demonstrar que o governo está, sim, contaminado pela corrupção sistêmica. Em alerta pelos prováveis danos ao projeto de reeleição, o Planalto reagiu: abriu os cofres para o pagamento de emendas do orçamento secreto, em um total de R$ 4,3 bilhões nos cinco dias posteriores à prisão de Ribeiro, segundo a ONG Contas Abertas, e movimentou a base para cobrar respeito à ordem cronológica de requerimentos na instalação de CPIs pendentes, com base em uma regra que nem sequer é prevista no regimento interno.
Interferência na PF pode levar Bolsonaro a responder por crimes comuns e de responsabilidade
As duas estratégias falharam. Rodrigo Pacheco sinalizou que vai instaurar na semana que vem, ao mesmo tempo, todas as comissões. Ele avalia ampliar o escopo da CPI do MEC para incluir a apuração sobre obras inacabadas nas gestões do PT, como pediu a base do governo. Isso representa uma colher de chá para Bolsonaro, mas ainda assim é uma péssima notícia: seus adversários políticos serão maioria na comissão. Para eles, o desafio será evitar que o canto da sereia governista seduza congressistas durante o funcionamento da comissão e bloqueie as investigações. “A oposição no Senado está ciente de que, até agosto, quando a CPI for aberta, Bolsonaro vai operar. O governo tem muito poder e pode fazer promessas com o orçamento secreto. Todos sabemos que o assédio é constante”, avalia o deputado Israel Batista, autor de uma das quatro notícias-crime que chegaram ao STF pela interferência na PF.
A oposição acionou a Corte pedindo a inclusão do presidente entre os investigados do inquérito que mira o esquema de cobrança de propina dos pastores-lobistas em troca da liberação de recursos do FNDE — os religiosos, vale lembrar, eram ouvidos por Ribeiro a pedido de Bolsonaro, segundo o próprio ex-ministro. A tática de recorrer ao STF foi usada para obrigar a Procuradoria-Geral da República a se manifestar, já que ela permanece em silêncio e tem blindado o presidente de todos os crimes pelos quais é investigado. Deu certo. Em despachos de praxe, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes, relatores dos pedidos de investigação, mandaram o órgão comandado por Augusto Aras a se posicionar. Cármen, aliás, ressaltou a “gravidade” do quadro narrado. Se comprovada a interferência na PF, Bolsonaro pode ser sentenciado por crimes comuns (como obstrução à justiça e favorecimento pessoal) e de responsabilidade.
Há evidências de que Bolsonaro comete crimes de forma contumaz. Para começar, na famosa reunião ministerial de maio de 2020, ele diz claramente que iria interferir na corporação. Foi o estopim para a demissão de Moro. O presidente tentou nomear o diretor do órgão no Rio de Janeiro, sua base eleitoral e onde havia as investigações da rachadinha de Flávio Bolsonaro. Quando o ex-ministro Ricardo Salles foi denunciado pelo envolvimento com madeireiros ilegais, o delegado responsável, Alexandre Saraiva, foi afastado. E as práticas delituosas não se restringem ao órgão. Só a CPI da Covid atribuiu nove crimes ao presidente. No superpedido de impeachment entregue em outubro passado a Arthur Lira (e que permanece na gaveta do presidente da Câmara) são listados 11 crimes atribuídos ao chefe do Executivo. O ex-presidente da Petrobras Roberto Castello Branco, afastado por não aceitar interferências do Planalto na política de preços da estatal, disse que seu celular corporativo tinha mensagens e áudios que também poderiam incriminar Bolsonaro (o senador Randolfe Rodrigues pediu à PF que os aparelhos sejam apreendidos e periciados).
No escândalo do MEC, a conversa que indica o acesso de Bolsonaro a informações sigilosas de inquéritos da PF ocorreu no último dia 9 entre Ribeiro e a filha dele. No telefonema, o ex-ministro diz que o presidente havia ligado mais cedo para externar um “pressentimento”. “Ele acha que vão fazer uma busca e apreensão em casa.” Naquele dia, Bolsonaro cumpria agenda nos EUA, na Cúpula das Américas. Não estava só. Sua comitiva incluía o titular da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, que ascendeu ao cargo graças à proximidade com o clã Bolsonaro e tem a PF sob seu guarda-chuva. O ministro usou as redes para negar que tenha vazado detalhes da operação Acesso Pago. Um detalhe, porém, chama atenção. A chefia da pasta soube com antecedência das buscas, mas não da prisão de Ribeiro e dos pastores — ou seja, o nível de informações repassadas a Torres equivale ao “pressentimento” de Bolsonaro.
A história vai além. A ligação que Ribeiro declara ter recebido do presidente não consta no histórico telefônico dele. Para o delegado que preside o inquérito, Bruno Calandrini, o telefonema pode ter ocorrido por meio de um aplicativo de mensagens — a tática é usada pelos poderosos de Brasília para blindar conversas de grampos telefônicos e protegê-las por um sistema de criptografia. “Os indícios de vazamento são verossímeis”, anotou o delegado. Além de ter ficado em alerta sobre o acesso privilegiado à PF, Calandrini viu uma interferência direta no cumprimento de diligências da operação. O delegado reclamou de uma decisão “superior”, repassada à sua chefia, que vetou a transferência do ex-ministro de São Paulo para Brasília. Pela hierarquia da PF, estão acima da Coordenação de Inquéritos Especiais, onde Calandrini ficava lotado, somente a Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado (Dicor), a diretoria-geral e o ministério. “Manterei a postura de que a investigação foi obstaculizada”, escreveu Calandrini a colegas. Ele ainda relatou que o ex-ministro foi recebido com “honrarias não existentes na lei”. Milton Ribeiro reconheceu os afagos em uma ligação à mulher, Myriam. “Muito bem tratado, com muita cortesia até”, contou. Ribeiro e os outros presos foram liberados no dia 23, um dia depois da prisão, pelo desembargador Ney Bello, do TRF-1, um dos cotados para assumir uma vaga de ministro no STJ – a indicação cabe a Bolsonaro.
Comprovando a pressão sobre as investigações, o juiz Renato Borelli, da 15ª Vara Federal de Brasília, que havia determinado as prisões, recebeu centenas de ameaças de grupos de apoio a Ribeiro, que é um dos nomes ideológicos mais identificados com Bolsonaro. Calandrini deixou na última terça-feira o grupo da corporação em Brasília responsável pelas investigações contra políticos com foro privilegiado para assumir a coordenação da Unidade de Crimes Cibernéticos. Embora a confirmação da mudança tenha coincidido com a acusação de interferência em seu trabalho, o delegado esclareceu a aliados que já havia pedido a transferência previamente. Mesmo com a transferência, Calandrini seguirá à frente da investigação do gabinete paralelo do MEC. Ele está debruçado sobre centenas de páginas com provas da relação entre Ribeiro, o ex-gerente de projetos do MEC Luciano Musse e os pastores-lobistas Arilton Moura e Gilmar Santos. Com base no material, a PF descobriu, por exemplo, que os religiosos e Musse estiveram no mesmo hotel, em Brasília, em pelo menos dez ocasiões entre 2021 e 2022.
A papelada ainda contém a transcrição de depoimentos em que testemunhas relatam assédios de Arilton e Gilmar pelo pagamento de propina em troca de visitas de funcionários do MEC e do próprio ministro a cidades. O empresário José Evaldo Brito foi um dos ouvidos. Em conversa com a ISTOÉ, ele conta que buscou de boa fé o contato dos religiosos e marcou um encontro, em um hotel, para intermediar uma visita do ex-ministro a Nova Odessa (SP). Com a viagem agendada para agosto de 2021, Arilton ligou para pedir uma “oferta missionária” de R$ 100 mil. “Consegui o dinheiro com um amigo, porque somos cristãos e estamos acostumados a fazer contribuições deste tipo.” A desconfiança veio depois, quando Arilton voltou a entrar em contato com Brito e, desta vez, exigiu o custeio de passagens de avião para oito pessoas. Por meio de uma vaquinha, lideranças levantaram R$ 23,9 mil. “A esse ponto, ele já estava sendo muito ignorante, falando entre xingamentos. Nesse momento, percebi que, de pastor, Arilton não tinha nada. Era um picareta.” Brito denunciou o episódio à chefe da assessoria do cerimonial do ministério. A equipe de Ribeiro o convidou a viajar a Brasília. O empresário embarcou em 16 de setembro. Reiterou as denúncias em uma reunião com o então ministro, o presidente do FNDE, Marcelo Ponte, e representantes da CGU. Hoje, Brito circula acompanhado de dois seguranças.
Ribeiro teria demonstrado surpresa com os relatos de Brito, mas pode ser um jogo de cena. Há indícios de que o ex-ministro agia em coordenação com os pastores-lobistas, que continuaram a encontrá-lo após as denúncias, inclusive na residência oficial. Funcionários do MEC revelaram que Ribeiro tentou conseguir um cargo para o próprio Arilton. Primeiro, ofereceu um posto com remuneração mensal de R$ 6 mil. Diante do descontentamento do pastor, buscou emplacá-lo como gerente de projetos na Secretaria-Executiva, vaga com salário-base de R$ 10 mil. A investida acabou barrada pela Casa Civil. No seu lugar assumiu Luciano Musse, também preso na operação da PF.
Os indícios de crime no MEC (corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência) tornam as justificativas apresentadas pelos acusados um deboche. Há denúncias gravadas de prefeitos de que foram pressionados a entregar barras de ouro, além de propinas, para obter recursos à educação. Um ex-funcionário do FNDE, João Elício Nogueira Terto, era um dos responsáveis por receber prefeitos e organizar eventos. Foi demitido após receber uma motocicleta elétrica do pastor Arilton que chega a custar R$ 25 mil. O FNDE é investigado pela CGU em pelo menos mais três escândalos: a tentativa de superfaturamento na compra de ônibus escolares, a compra de carros de luxo por diretores (que têm salário incompatível com os bens) e o caso de um consultor do fundo que atuava irregularmente em nome de prefeituras do Maranhão para obter recursos.
Mesmo diante das provas, Bolsonaro disse não ter visto indício de irregularidades
A despreocupação com as denúncias é tamanha que, em fevereiro deste ano, Milton Ribeiro vendeu um carro para a filha do pastor Arilton (ao menos essa é a justificativa da defesa) numa transação suspeita de R$ 60 mil, valor que foi depositado na sua conta. Mesmo diante de todas as provas colhidas na apuração, Bolsonaro afirmou não ter visto “o mínimo indício” de práticas irregulares por parte do antigo aliado e classificou a prisão como injusta. A declaração soa como piada. Tapar os olhos para a corrupção não significa que ela não exista. É com essa atitude que o mandatário conseguiu chegar ao final de seu governo à deriva e em meio a um mar de suspeitas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário