sábado, 2 de julho de 2022

GOLPE CONTRA O JUDICIÁRIO

Miguel Reale Júnior, O Estado de S.Paulo

Em junho de 2011, pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 33, de iniciativa do deputado Nazareno Fonteles, do PT do Piauí, impunha-se grave restrição ao poder jurisdicional do Supremo Tribunal Federal (STF), como forma de combater o “ativismo judicial”. Na justificativa da emenda, afirmava-se que o STF, sem legitimidade eleitoral, passou a ser um legislador ativo, criando normas.

Conforme a PEC, a decretação da inconstitucionalidade de lei só teria eficácia se decidida por quatro quintos dos ministros do STF. Assim, se 9 dos 11 ministros entenderem estar a lei eivada de inconstitucionalidade, o vício, então, será reconhecido. No entanto, se apenas oito ministros considerarem a lei inconstitucional, esta permanecerá eficaz, por ter a inconstitucionalidade sido acolhida, “tão só”, por três quartos dos ministros.

A proposta de emenda, “generosamente”, também permite ao STF criar súmula, por decisão de quatro quintos dos seus membros. Mas a súmula só terá força vinculante se tal efeito for outorgado pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta.

A decisão técnico-jurídica do STF, fruto de decisão de quatro quintos de seus membros, ficará, portanto, sujeita ao crivo do Congresso Nacional, o único que, em sua suprema onisciência, poderá ou não dar força vinculante a uma súmula!

Em outro dispositivo, chega-se a maior absurdo: se o STF reconhecer a inconstitucionalidade de uma Emenda Constitucional, a decisão não terá efeitos imediatos, mas dependerá de apreciação do Congresso, que julga o julgamento do STF. Se o Congresso rejeitar a decisão do STF, a matéria será objeto de consulta popular, referendo, para que o povo diretamente avalie se a emenda é constitucional ou não.

A proposta de emenda ficou em banho-maria por mais de ano e meio, mas foi agilizada quando o STF declarou, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) n.º 4.430, relatada pelo ministro Dias Toffoli, serem inconstitucionais dois artigos da Lei das Eleições, impeditivos de o recém-criado Partido Social Democrático (PSD) usufruir dos recursos e comunicação compatíveis com sua representatividade, pois se impunha que o critério para esses acessos fosse a composição parlamentar da última eleição, da qual o PSD não participara.

O STF entendeu que, se a criação de partido político autoriza a migração de deputado para a novel legenda, sem que se possa falar em infidelidade partidária ou em perda do mandato, essa mudança resulta, de igual forma, na validade atual da representação política, contando-se os novos membros.

Tão logo emitido esse julgamento, declarando a inconstitucionalidade dos preceitos impeditivos da mudança de parlamentares para novos partidos, foi apresentado pelo deputado do PT Edinho Silva o Projeto de Lei Complementar (PLC) 14/2013, em clara oposição ao decidido na referida Adin 4.430, retirando-lhe eficácia.

Por esse projeto de lei (PLC 14/2013), já então aprovado na Câmara dos Deputados, tornava-se impossível a transferência dos recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão aos novos partidos.

O STF reconheceu, em liminar, a ilegitimidade desse projeto. Foi o bastante para a revolta de parlamentares governistas invocar o “espírito de corpo” e chamar às falas a “honra” do Congresso, por ter o STF interferido na apreciação de projeto ainda em votação, intrometendo-se no curso do processo legislativo.

Em face desses eventos, ressuscitou-se, em 2014, a Emenda Constitucional 33 de 2011, anteriormente aqui lembrada, como represália, mas por bem ela não vingou.

Agora, ressurge a tentativa de limitar a liberdade decisória do STF, por emenda constitucional apresentada por deputado bolsonarista, Domingos Sávio, segundo a qual o Congresso Nacional pode sustar, por maioria absoluta, decisão do STF, não unânime, transitada em julgado, por extrapolar “limites constitucionais”!

Qualquer decisão não unânime do STF, portanto, pode ser anulada pelo Congresso, pois ao Judiciário cabe apenas assegurar o pleno respeito à lei, e não a sua interpretação, na crença de ser o juiz a boca da lei elaborada, em nome do povo, pelo Congresso Nacional. Na justificativa, explica-se dever o Congresso rever decisões não unânimes que afrontam a vontade da maioria do povo, a lembrar o critério nazista do “são sentimento do povo”.

Ora, se por vezes, exageradamente, na aplicação de princípios o juiz cria soluções inovadoras em face do ordenamento, nem por isso a decisão judicial deve ser a automática incidência estrita da lei, pois o direito é o que a interpretação for e muito além do contido na norma.

O STF, como guardião da Constituição, incomoda. Tanto deputados do PT, há dez anos, como hoje deputados bolsonaristas propuseram fazer do Congresso Nacional órgão revisional da nossa Suprema Corte. Há que resistir a este golpe contra a democracia, que pressupõe um Judiciário independente nas suas decisões e livre intérprete da Constituição, repudiando que se elejam, como se quer agora, o STF e o TSE como inimigos, para justificar a afronta a seus membros e aos seus comandos.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

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