sábado, 2 de julho de 2022

VALE-TUDO

Editorial Folha de S.Paulo

O aumento excepcional e inesperado da arrecadação do governo provocou em Brasília uma enganosa sensação de tranquilidade. O Ministério da Economia dissemina a ideia de que é possível "devolver recursos à sociedade" por meio de gasto e renúncia de impostos.

A propaganda desse equívoco foi recebida com satisfação pelo sistema político. Desde fins do ano passado, explora-se esse ilusório excesso de caixa. O desempenho sofrível de Jair Bolsonaro (PL) nas pesquisas, a revolta com os preços dos combustíveis e a inflação alta são estímulos adicionais à investida sobre as contas públicas.

É real a necessidade de enfrentar os impactos sociais dramáticos da pandemia e da guerra na Ucrânia. Mas medidas justificáveis, como a ampliação do amparo aos mais pobres, misturam-se a subsídios indiscriminados e perdulários, sem preocupação que não seja um impacto imediato nas intenções de voto.

Na quinta-feira (30) deu-se o lance mais desvairado dessa escalada, com a aprovação pelo Senado de proposta de emenda constitucional que inventa um estado de emergência e permite nova rodada de despesas, estimadas em mais de R$ 40 bilhões neste ano.

O texto contou com o apoio oportunista de todas as forças da Casa, contra o voto solitário de José Serra (PSDB-SP), e o mesmo deve se dar na Câmara dos Deputados, onde a conta pode se tornar maior.

As consequências serão funestas. A medida, além de exigir do próximo governo um esforço maior de contenção da dívida pública, desmoraliza normas legais de controle das contas do Tesouro. Tal descrédito encarece o financiamento do governo e eleva as taxas de juros para o conjunto da economia, que assim crescerá menos.

A arrecadação de fato aumenta muito desde 2021. Em especial, tal crescimento se deveu à alta de preços de commodities (alimentos, petróleo, minérios) e do bom desempenho das empresas ligadas a tais setores. A inflação, pois, está na base do fenômeno.

Entretanto não se espera que o IPCA continue a galopar ou que as cotações de commodities subam ainda mais, até porque a economia mundial deve desacelerar. A bonança tende a ser passageira.

Em relação a 2019, último ano de relativa normalidade, a receita da União teve expansão real de 17%. Dado que a economia cresceu muito menos, a carga tributária federal elevou-se para 23,2% do Produto interno Bruto, patamar só comparável aos de fins do governo Luiz Inácio Lula da Silva e início de mandato de Dilma Rousseff (PT).

Observe-se, porém, que na transição de 2010 para 2011 o governo federal obtinha superávit primário (receitas acima das despesas, excluídos encargos com juros) equivalente a 2% do PIB. Hoje não há superávit, e a redução de impostos e o aumento de gastos ameaçam provocar novo déficit primário.

Não há, pois, sobra de recursos a devolver à sociedade. O governo federal terá de se endividar mais a fim de cumprir seus compromissos cotidianos. O setor público como um todo (União, estados, municípios e estatais) deve ter déficit também, pois o Congresso reduziu alíquotas do ICMS.

O superávit primário do setor público no ano passado foi de 0,75% do PIB. Neste ano, depois das medidas de emergência eleitoreira, prevê-se déficit que pode ir a 0,5%.

Isso, repita-se, sem contar os encargos da dívida pública. As taxas de juros devem permanecer altas até boa parte de 2023. O descrédito das contas públicas vai adiar o recuo da Selic. A despesa financeira crescerá, mas não apenas.

Há gastos represados, como algum reajuste dos salários dos servidores. O aumento da despesa com o Auxílio Brasil será politicamente muito difícil de reverter. Outros compromissos obrigatórios avançam de modo vegetativo.

O Congresso, animado pela demagogia eleitoreira e com a colaboração de oposicionistas da esquerda à direita, contribui desde fins do ano passado para a farra.

Primeiro, fragilizou o teto de gastos. Agora mostrou que, numa penada, pode invalidar todas as normas de controle de gastos e de endividamento: as leis eleitoral, de responsabilidade fiscal, de diretrizes orçamentárias, o teto de gastos e a regra de ouro, que proíbe o aumento de dívida com o fim de pagar despesas correntes.

Dados o histórico fiscal do país e a dimensão extraordinária da dívida pública, será difícil restaurar a crença na possibilidade de um ajuste orçamentário gradual —isto é, menos danoso para o crescimento econômico e para a despesa social e de investimento.

Eleva-se o risco de descontrole, com endividamento elevado e inflação. O país estará fragilizado em um ambiente global hostil.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário