quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

A FUGA

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Blindagem excessiva impede responsabilização de presidentes

A essa altura, ou Bolsonaro já deixou o país ou está na iminência de fazê-lo. Ele não entregará a faixa presidencial a Lula. É uma questão interessante determinar se se trata de um último ataque simbólico à democracia, um problema de berço (má educação), uma fuga ou uma combinação dos três. Interessa-me hoje a hipótese da fuga.

Uma coisa mal resolvida pelas democracias é a extensão da blindagem judicial concedida a chefes de governo ou de Estado.

Por mais que consideremos a igualdade de todos diante da lei como princípio fundamental, algum nível de proteção precisa haver. De outra forma, seria fácil inviabilizar um governo desferindo contra o presidente uma campanha de assédio judicial (fazê-lo responder a dezenas ou até centenas de processos semelhantes em diferentes comarcas).

No momento, porém, vivemos o problema oposto. A blindagem que a Constituição dá ao presidente me parece exagerada. O titular do Executivo goza de imunidade total contra "atos estranhos ao exercício de suas funções" (art. 86). Na interpretação que vem sendo dada a esse dispositivo, isso significa que, se o presidente assassinasse um comborço diante dos olhos de todos (um ato estranho às funções), ele só responderia pelo delito após o término de seu mandato.

Caso os crimes imputados não sejam "estranhos" —corrupção ou prevaricação, por exemplo—, o mandatário pode responder por eles tanto diante do Senado (impeachment) como do STF (infrações penais comuns), mas apenas se a Câmara dos Deputados, pelo voto de 2/3 de seus membros, autorizar a abertura dos processos. O que já seria difícil fica quase impossível se o presidente mantiver relações amistosas com o presidente da Câmara e o procurador-geral da República, peças importantes para fazer as coisas andarem.

Como o caso Bolsonaro bem o ilustra, precisamos rever essas regras. A presidência não pode converter-se numa licença para delinquir.

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