sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A MISSÃO DE LULA

Pedro Doria, O Globo

Se queremos uma chance daqui a dez ou 20 anos, precisamos resolver o problema da educação básica de massas neste governo

O pesadelo nacional durou quatro anos e se encerra neste domingo com a posse de um novo presidente. Um presidente que, pouco importam seus defeitos, construiu sua carreira política a partir da democracia. Estivemos muito próximos de perdê-la, mais próximos do que muitos se dão conta. Muitos não se dão conta, tampouco, de que Jair Bolsonaro recebeu, neste último segundo turno, mais votos do que teve para elegê-lo em 2018. O eleitorado de Bolsonaro não diminuiu, aumentou ao longo de seu mandato destrutivo, iliberal, anti-iluminista. Daí nasceu o principal desafio para o governo que entra: lidar com a angústia que leva à busca pelo populismo autoritário.

Porque é fácil gritar “fascista”, fazer troça de quem acredita nas mentiras do zap, simplesmente tratar de ignorante quem recusa a vacina, bruto quem compra armas ou com desdém a massa que fez da camisa da seleção a versão contemporânea do uniforme verde-escuro com a braçadeira do Sigma. Por trás de todo esse comportamento que arrasta não só dezenas de milhões de brasileiros, mas também outros tantos americanos que votaram em Donald Trump ou os italianos que elegeram Giorgia Meloni, está a angústia com um mundo em rápida transformação.

Não vivemos mais na Era Industrial. Não são mais as mãos de operários que produzem a riqueza do mundo, como nos últimos dois séculos e meio. Num planeta em que as grandes empresas não são mais petroleiras, bancos ou a GE — que dominaram o século XX —, a origem da riqueza é outra. São cérebros educados com alta sofisticação. E nunca matemática foi tão importante.

Não é a política industrial que será capaz de tirar o Brasil deste lugar menor que ocupamos na economia do planeta. A política industrial poderá ser boa ou ruim, mais ou menos intervencionista, mas dependerá fundamentalmente de quantidade de gente, aqui, apta a trabalhar com o meio digital, com genética ou com energia. Tudo é matemática.

Mais de um estudo sugere que algo como 20% da proficiência em matemática depende da genética que herdamos. É um rolar de dados. Eu, filho de matemático, suo frio de fazer uma conta de somar de três dígitos sem o auxílio de papel ou calculadora. A genética não me foi generosa, mas há outra coisa que sabemos a respeito dela. Não escolhe CEP, cor de pele ou profissão do pai. Os outros 80% da capacidade matemática dependem de expor a criança ao conhecimento desde cedo, desafiá-la a aprender, incitá-la a descobrir prazer no cálculo.

Como não fazemos isso com a massa de brasileiros que nascem nas periferias urbanas, jogamos gente fora todos os anos. Gente é riqueza no século XXI.

Os governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer avançaram, mas nem de perto o suficiente. Bolsonaro nem sequer tentou. Se queremos uma chance daqui a dez ou 20 anos, precisamos resolver o problema da educação básica de massas neste governo. É a coisa mais importante que Lula 3 precisará fazer — e, isso, numa lista não pequena de tarefas importantes.

Todo mundo sabe que sua profissão mudou muito nos últimos 20 anos. Que as habilidades antes necessárias hoje são outras. Vale para o advogado e para o eletricista. Para nós, jornalistas, ou para entregadores de aplicativo. Todos somos tocados toda hora por mudanças, mudanças que não param, que geram uma profunda incerteza sobre o futuro. E, sem alguém que desenhe que futuro será esse, que aponte tranquilo para as possibilidades do que virá e mostre como diminuir as dores, os impactos da transformação contínua, sem esse alguém estamos lascados.

O autoritarismo reacionário, nostálgico com um passado que não mais retornará, seguirá vivo enquanto tivermos motivos para temer o futuro.

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