Foi um tesouro que ajudou, mais que qualquer outro jogador, a transformar o Brasil no país do futebol
A monarquia no Brasil chegou ao fim na tarde de uma chuvosa quinta-feira, 29 de dezembro de 2022. Cento e trinta e três anos depois de proclamada a República, partiu o Rei Pelé, primeiro e único, reconhecido aqui e mundo afora — Roberto Carlos, rei para nós, seus fãs, não é universal. Aos 53 anos, não carrego memória de assistir ao vivo Edson Arantes do Nascimento em campo, tampouco contestei sua realeza. Inequívoca.
Jornalista, tive por ofício a possibilidade de viajar para alguns países. Em todos, ao me saberem brasileira, as pessoas faziam referência ao Rei do Futebol. Quando não acontecia, citava eu mesma o ilustre monarca. Pelé, para brasileiros no exterior, era cartão de visita, visto, passaporte. Era a senha para escancarar sorrisos, abrir portas. Ainda é. Será.
Por ser compatriota de Pelé, mais de uma vez recebi pedido ou recomendação de levar na bagagem camisas da seleção brasileira, as amarelas, para ofertar a estrangeiros, dos Estados Unidos à África. Em 1969, ano em que nasci, Pelé viajou com o Santos para jogar um amistoso contra uma seleção do Centro-Oeste da Nigéria. A História conta que a região, em conflito, parou a guerra para lotar o estádio e assistir à partida, que terminou 2 a 1 para o time do Rei. Soberano do futebol, o mineiro de Três Corações fez do uniforme instrumento de diplomacia.
Nas últimas semanas, o agravamento do estado de saúde de Pelé me fez visitar sua trajetória. Aydano André Motta, meu marido, comentarista no SporTV, enfileirou em nossa TV um punhado de rankings dos dez gols mais bonitos do homem que sacralizou a camisa 10. Inacreditável nem sempre serem coincidentes. Impossível para mim montar uma lista própria; quase todos a que assisti poderiam estar no topo.
Pelé não foi só o único jogador de futebol a vencer três Copas do Mundo, a primeira com 17 anos, em 1958. Marcou 1.282 gols — o milésimo, por sinal, contra o nosso (dele e meu) Vasco da Gama. Anotou tudo isso num tempo de bola e uniformes sem o mínimo de tecnologia para melhorar desempenho, como sublinhou Ruy Castro em coluna na Folha de S.Paulo. Era um fenômeno. Aos 21 anos, já tinha acumulado 479, quase o triplo dos 167 de Ronaldo, o segundo que mais marcou até a maioridade. Lionel Messi, protagonista do terceiro título da Argentina no Catar 2022, fez um décimo (51); Neymar, 140.
Pelé fez do esporte arte. Ciente do próprio valor, tornou-se marca e abriu caminho para jogadores de futebol fazerem fortuna, não apenas com a bola, mas com a imagem. Não mais de um terço de sua carreira foi registrado em vídeo. E virou rei. Tivesse todas as partidas documentadas, não haveria título de nobreza para classificá-lo.
Pelé era perfeito na profissão, o melhor, o maior. Foi um tesouro que ajudou, mais que qualquer outro jogador, a fazer do Brasil o país do futebol. Foi o atacante dos sonhos, o atleta do século XX. Há quem o considere o maior brasileiro de todos.
Fez-se, por mérito — não por nascimento, que tinha por sobrenome —, o rei negro de uma nação forjada na escravidão, profundamente racista.
Pelé foi de outro mundo no futebol. E humano, com as qualidades e os defeitos inerentes a todas as pessoas. Exibiu como ninguém a potência dos pretos brasileiros, mas não foi o ativista que o movimento negro desejava. Preocupou-se com as criancinhas brasileiras, mas não foi o pai que filhos e filhas de um país de mães solo sonhavam. Não foi o ministro, o cantor nem o comentarista que tantos outros gostariam. Foi Pelé. Não era imune a críticas, mas também é racismo exigir dele na vida a perfeição que exibia em campo.
De todos os lances a que assisti nos dias que antecederam a morte do Rei, me impressionou como ele era capaz de se manter de pé. Havia o talento para driblar e fazer gols. E a capacidade extraordinária de não ir ao chão. Pelé também foi resiliência. Homem, negro, de origem pobre, venceu quase sempre de pé — metáfora encarnada. E coroava seus tentos pulando mais alto, punho erguido, socando o ar. A brasilidade expressa também na capacidade de produzir alegria e, com ela, celebrar. Lição para todos nós, seus súditos.
Valeu, meu Rei.
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