terça-feira, 31 de janeiro de 2023

BOLSONARO NÃO QUER VOLTAR

Gabriela Rölke, ISTOÉ

Mesmo sob risco de ser deportado dos EUA, Bolsonaro não quer voltar ao Brasil: teme ser preso

O ex-presidente vive acuado há mais de um mês nos EUA, onde se refugiou para não passar a faixa para Lula, mas, agora, com o visto consular vencido e ameaçado de deportação, precisa voltar. Como teme retornar e ser preso, faz de tudo para permanecer no exterior

Quando se refugiou na cidade de Kissimmee, perto de Orlando, nos Estados Unidos, no final do ano passado, Bolsonaro desejava apenas não passar a faixa presidencial para Lula e ficar por lá um mês, homiziado na casa do ex-lutador de MMA José Aldo, num condomínio de luxo. A ideia dele era voltar no final de janeiro, ao lado da mulher Michelle, para retomar sua carreira política em uma sala que lhe teria sido reservada pelo PL, em Brasília, com todas as despesas pagas e salário milionário. Mas deu tudo errado. Sua situação jurídica se agravou após ter incitado os atos terroristas de 8 de janeiro, e a ameaça de ter a prisão decretada é real. Desconfia que, ao colocar os pés no País, seja levado para a cadeia, como aconteceu com seu ex-ministro Anderson Torres. Além disso, o PL, com os recursos bloqueados por causa de seus ataques ao resultado das urnas, está sem dinheiro para pagar as mordomias do capitão. Assim, ele tem dito aos correligionários que não quer voltar tão cedo. Quem deve chegar ao País nos próximos dias é a ex-primeira-dama.

O problema é que Bolsonaro, com o visto vencido, precisa deixar os EUA e corre o risco até de ser deportado caso não regularize imediatamente sua situação migratória. O presidente Joe Biden já mostrou que não moverá uma pena para impedir que o ex-presidente brasileiro seja escorraçado de lá. O então presidente foi para Orlando no dia 30 de dezembro com passaporte diplomático usado por chefes de Estado, voando num avião da Força Aérea Brasileira (FAB). O documento, no entanto, perdeu a validade quando Bolsonaro deixou de ser presidente, no dia 1º de janeiro. “Se alguém entra nos EUA com um visto diplomático, mas não está mais em missão oficial representando seu governo, essa pessoa deve deixar o território americano ou pedir a mudança de status de migrante em até 30 dias”, disse o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Ned Price, no início do mês, destacando ainda a possibilidade de “remoção” para quem está irregular em solo naquele país. A professora de Direito Internacional Carolina Claro, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, vê um recado direto ao brasileiro. “Caso o ex-presidente não consiga a regularização migratória, ele fica sujeito à deportação, que é a retirada compulsória do território dos EUA”, explica. Fontes do Itamaraty confirmam a possibilidade jurídica de que Bolsonaro tenha sua permanência negada nos EUA, já que o governo Biden tem sido pressionado contra a presença do ex-presidente em solo americano.

“Bolsonaro se transformou num pária. Nem mesmo a Hungria o abrigaria em seu território.

A preocupação é que ele incite um golpe de Estado no Brasil, algo que não é bem-visto nem pelos políticos de extrema-direita europeus” Carolina Claro, professora do Instituto de Relações Internacionais da UnB

“Bolsonaro se transformou em um pária internacional”, avalia Carolina. Ela explica que, legalmente, não há a possibilidade de que o ex-presidente se refugie ou receba asilo em outro país, já que ele está sendo processado no Brasil por crimes comuns e não é um perseguido político. E se o governo americano “já deixou claro que não protegerá Bolsonaro sob nenhuma circunstância”, a professora destaca que o ex-presidente também não deve contar com a boa vontade de outros países caso queira tentar evitar a Justiça do Brasil. A Itália, país de origem da família Bolsonaro, sob o comando da primeira-ministra ultradireitista Giorgia Meloni, também já sinalizou que não vai dar guarida ao brasileiro. E nem mesmo a Hungria, do líder de extrema-direita Viktor Orbán, bancaria o ex-presidente em seu território. “O ex-presidente não tem o capital político que acha que tem”, diz Carolina. “Ele é uma pessoa irrelevante no cenário político internacional, e a maior preocupação que se tem é que ele incite um golpe de Estado no Brasil, algo que não é bem-visto nem pelos políticos de extrema-direita europeus”, explica.

Na verdade, ele está isolado. Em Orlando, ele não tem se reunido com nenhum político importante e nem teve encontro com o ex-presidente Donald Trump, embora sua residência em Mar-a-Lago fique a menos de três horas de carro de onde o brasileiro está. Ele só tem se encontrado com os filhos, sobretudo o vereador Carlos, que também está nos EUA, de onde dispara tuítes em nome do pai, inclusive atacando as Forças Armadas que, segundo ele, teriam sido cooptadas por Lula.

Se o processo de deportação se concretizar, Bolsonaro já tem um álibi sendo ensaiado para voltar ao Brasil: como um sujeito fragilizado, doente e com problemas intestinais ainda decorrentes da facada que levou na campanha de 2018. Seu médico, o cirurgião Antônio Luiz Macedo, disse que o ex-presidente precisa retornar ao Brasil, possivelmente em fevereiro, para se submeter a uma nova cirurgia no intestino. Não é a primeira vez que episódios que envolvem a saúde do ex-presidente coincidem com seus momentos de crise política e baixa popularidade. Sua última internação ocorreu no dia 9 — um dia depois dos ataques terroristas em Brasília. Incluído na investigação do episódio pelo Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro teria cometido “incitação pública” à prática dos crimes contra as instituições, sustenta a Procuradoria-Geral da República (PGR). E a situação só piora, diante da tragédia dos yanomamis, pois o capitão reformado passou a ser acusado também de crimes contra a humanidade e genocídio. Seu futuro é mesmo voltar e pagar pelos crimes que cometeu.

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MORRE CLEONICE BERARDINELLI

Do g1 Rio

Escritora Cleonice Berardinelli, membro da ABL, morre no Rio

Cleonice tinha 106 anos e era considerada referência para estudos da língua portuguesa. Ela foi eleita para ABL em 16 de dezembro de 2009, na sucessão de Antônio Olinto.

A escritora Cleonice Berardinelli, que ocupava a cadeira nº 8 da Academia Brasileira de Letras, morreu nesta terça-feira (31) no Rio. Ela era a integrante atual mais longeva da academia.

Cleonice tinha 106 anos e era considerada uma das maiores referências para estudos da língua portuguesa - especialmente na obra de Fernando Pessoa. Ela foi eleita para ABL em 16 de dezembro de 2009, na sucessão de Antônio Olinto.

Cleonice Serôa da Motta Berardinelli nasceu no Rio de Janeiro em 28 de agosto de 1916 e morou no Rio e em São Paulo.

Ela era licenciada em Letras Neolatinas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1938), doutora em Letras Clássicas e Vernáculas pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1959) e livre-docente de Literatura Portuguesa por concurso pela Faculdade Nacional de Filosofia (1959).

Foi professora emérita da UFRJ e PUC-Rio e também deu aulas na Universidade Católica de Petrópolis, Instituto Rio Branco e foi professora convidada pelas Universidades da Califórnia, campus Sta. Barbara (1985) e de Lisboa (1987 e 1989).

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LIRA LÁ

Carlos Andreazza, O Globo

Tudo o mais constante, a Câmara reelegerá Arthur Lira presidente. Será devastador para a democracia representativa. Que, numa quadra em que o Parlamento vai desafiado por grupos influentes eleitos sob a agenda antissistema, reeleja-se um agente autoritário cujo exercício truculento do poder conjugue modos variados de dilapidação da atividade legislativa e favoreça, pois, o progresso da prática antipolítica que corrói a República.

Lira presta serviço à mentalidade autocrática. Destrói por dentro, em resumo. Deriva desse modus operandi a afinidade que, mais até que a relação utilitária em função do orçamento secreto, deu fluência à sociedade que manteve com Jair Bolsonaro.

Lira mina o Parlamento. Não faz política. Decide. Atropela. Cada vez com menos resistência. Porque distribui. O que sobrar, esmaga. É um presidente da Câmara, a arena em essência para discussão e dissenso, cuja força provém de controle orçamentário sem igual, materializado no aterramento sem precedentes de mecanismos regimentais de resistência — existência — de oposições e, portanto, na imposição sumária de agendas.

Um presidente da Câmara cujo rolo compressor provém de poder orçamentário sem igual, com cuja distribuição acelera para imperar, rebaixados os pares, a cada dia menos e menores os quebra-molas. Um presidente poderoso de uma Câmara esvaziada de caráter, percebida pela sociedade como alcova para benefícios próprios e de pouquíssimos. O paraíso para a prosperidade de elmares e populistas.

Lira tratora ritos. Tritura comissões. Aprova no dia seguinte. E depois cobra. Forma maiorias distribuindo milhões de orçamentos secretos. É como convence. É como se reelegerá.

E depois cobra — veremos a partir de 2 de fevereiro. Haddad quer reforma tributária? (Se Renan Calheiros tem um ministério, e para o filho, e logo um de alcance como o dos Transportes, quererá dois. Parece clichê. Óbvio demais. Não é. E, mesmo que leve, negociará superfícies do Estado a cada votação.)

Fala-se em reeleição avassaladora, com 400 ou mais votos entre 513 deputados. Será coerente: reeleito sobre rolo compressor com que amassa a Câmara. Reeleição gloriosa, que legitimará a desqualificação acelerada do Parlamento, um chão de josimares-maranhãozinhos. Reeleição gloriosa, numa Câmara de gestores paroquiais de codevasfs, obra da máquina cuja operação empurra para a alarmante ausência de adversários.

É preciso mesmo atentar para uma Casa legislativa cuja eleição tenha por único desafiante, na figura de Chico Alencar, um anticandidato. Alguém mais? O que isso quererá dizer?

O que significará — para a democracia representativa no Brasil — uma eleição à presidência da Câmara, a Casa da política, cujo candidato à reeleição, sem muito esforço, navegue uma “frente ampla” capaz de reunir, em 2023, menos de mês depois do 8 de janeiro, bolsonaristas e petistas?

Menos de mês depois do 8 de janeiro.

Menos de mês depois do 8 de janeiro, e avançamos para a calma reeleição de Arthur Lira, apoiador de Bolsonaro, à presidência da Câmara.

O que lhe parece?

Penso no caso do deputado federal reeleito Juscelino Filho, do União Brasil, feito ministro das Comunicações por Lula. O Estado de S.Paulo informou, ontem, que ele apadrinhou — coisa dos tempos de Bolsonaro no Planalto — R$ 5 milhões em orçamento secreto para o asfaltamento de estrada que alimenta a própria fazenda, em Vitorino Freire, no Maranhão. Município, feudo da família, a que, em orçamentos secretos, já destinou cerca de R$ 16 milhões, do total de R$ 50 milhões identificados como sob seu patronato. Município que ora tem por prefeita a irmã do ministro, que contratou construtora de um amigo do ministro para fazer a pavimentação, obra cujo parecer autorizando o valor orçado foi assinado por engenheiro indicado pelo grupo político do ministro...

Parte do dinheiro já foi liberada, sob Bolsonaro. Liberará, o governo Lula, o restante? Porque, como já expliquei em detalhes, a estrutura operacional do orçamento secreto foi, sob nova fachada, mantida na aprovação da LOA de 2023. Liberará, presidente Lula?

Lula também firmará sociedade com Lira?

Já firmou?

Donde a outra questão: por que um parlamentar inexpressivo como Juscelino Filho se tornaria ministro de pasta com orçamento robusto? Por que, senão graças ao poder que conquistou como grande beneficiário do orçamento secreto? Juscelino Filho ministro é elogio ao sistema do orçamento secreto. Será também símbolo da adesão? A execução orçamentária nos dirá.

O que nos dirá, paixões à parte, juscelinos em mente, a reeleição pacificada de Arthur Lira à presidência da Câmara, menos de mês depois do 8 de janeiro?

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NÃO HÁ ALTERNATIVA A NÃO SER COMBATER A EXTREMA DIREITA

João Feres Júnior*, O Globo

É preciso mirar nos financiadores, mostrando que a atividade política ilegal não é tolerável para além de 8 de janeiro

A invasão e depredação das sedes dos Três Poderes da República — levada a cabo por bolsonaristas radicalizados no dia 8 de janeiro — foi somente o clímax de uma cruzada contra as instituições democráticas que Bolsonaro e seus seguidores mais próximos vêm conduzindo desde a eleição de 2018. Quem não se lembra da ameaça do “cabo e soldado”, proferida por um de seus porta-vozes, o filho Eduardo?

Durante o mandato, o bolsonarismo mirou principalmente no STF, uma vez que ocupava o Executivo e conseguiu pacificar o Legislativo à custa de um acordo altamente danoso à administração pública federal. Ao longo da campanha de 2022, o TSE foi incluído na mira do ódio extremista.

Uma vez perdida a eleição, o Executivo, agora ocupado pelo PT, tornou-se o alvo primordial, e o Congresso — em via de celebrar mais um acordo de sustentação da governabilidade — já não poderia ser contado como aliado. Agora, o governo como um todo, o regime mesmo, tornou-se alvo da extrema direita. A invasão da Praça dos Três Poderes —imitação tosca da invasão do Capitólio há dois anos — parecia uma consequência lógica para quem vive no mundo de fantasias criado pelo bolsonarismo.

É compreensível que tal evento mobilize o debate público no momento atual. Mas ele somente atualiza e torna ainda mais óbvio e urgente um desafio que já estava posto para Lula e para a democracia brasileira como um todo antes de sua ocorrência: o desmonte do bolsonarismo, da maneira como se estruturou até o momento.

Não há alternativa para a democracia brasileira a não ser combater unida as atividades antidemocráticas da extrema direita. Isso deve ser feito atentando para sua estrutura comunicacional, que é sua espinha dorsal. Avessa às instituições, incapaz mesmo de fundar um partido político, a extrema direita se organizou como um sistema de comunicação entre lideranças e base, complexo e mais ou menos informal. Esse sistema se assenta em três pilares: o gabinete do ódio, as mídias tradicionais cooptadas e o púlpito do cristianismo ultraconservador.

O gabinete do ódio é o nome da cabeça de uma organização de influenciadores e produtores de conteúdo para as redes sociais, que estava instalada no Palácio do Planalto. A partir de janeiro, não mais pode contar com os recursos e a força de trabalho dos cargos comissionados do Executivo, mas ainda tem à disposição o financiamento ilegal provido por empresários ultradireitistas ou com interesses escusos na sublevação golpista. Sobrevive, mas está enfraquecido. É preciso, portanto, focar as lentes das instituições democráticas nos financiadores, mostrando que a atividade política ilegal não é tolerável para além do evento de 8 de janeiro.

A conversão das mídias cooptadas e dos líderes do cristianismo ultraconservador à legalidade democrática é também uma questão política. A coalizão democrática que ora passa a governar tem canais de comunicação com esses agentes e deve trabalhar ativamente para que deixem de ser divulgadores de conteúdo antidemocrático. Ademais, eles também estão sujeitos ao aparato legal do Estado, que tem mecanismos para coibir abusos.

Por fim, é necessária uma ampla negociação do governo com as empresas que administram as redes sociais e serviços de mensageria, para que critérios mais eficazes de combate às notícias falsas e ao discurso se ódio sejam implantados, como já feito em outros países.

A tarefa é enorme, mas o custo de não a fazer é muito maior. Ironicamente, a reação das instituições e atores políticos aos atos terroristas de 8 de janeiro cria oportunidades para fazermos enormes avanços em direção a esse objetivo. Para alguns especialistas, a extrema direita é, por definição, uma força política antidemocrática. Se for esse o caso, que pereça a extrema direita.

*João Feres Júnior é cientista político da Uerj e coordenador do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública

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VIROU DO 22 PARA O 23. O QUE MUDOU ?


Nilso Sguarezi , OS DIVERGENTES

Nos últimos 70 anos da vida brasileira em que saímos do pós-guerra com a redemocratização e Constituinte de 1946, entramos num regime militar (64-88), que estabeleceu eleições indiretas para, l e n t a   e   g r a d u a l m e n t e, permitirem que voltássemos ao nosso decantado estado democrático de direito. Vivi este quadrante da história e tenho constatado que para os analistas sem a cegueira ideológica, que turva e deforma realidade e fatos, politicamente pouca coisa mudou com a continuidade do sistema presidencialista implantado com um golpe militar na proclamação da república.

Em alguns ensaios que fiz neste blog como iniciante e aprendiz da moderna comunicação bloguista, ousei discorrer sobre o que seriam “programas de governo ou salvadores da pátria“ (25 de janeiro 22); que existia e continuaria existindo uma “praça de negócios” (28 abril 22); que continuaria a “radicalização ou torre de babel” (27 julho 22).

Convictamente alertei que continuaríamos assistindo uma “salada partidária” (09 agosto 22), bem como que alguns levariam “o grande tombo” (22 março de 22) e até especulei se “o judiciário decide pela razão ou emoção?” (13 de fevereiro).

[Leia os artigos de Nilso Sguarezi publicados n’Os Divergentes.]

Imperioso voltarmos no tempo para perceber que nosso presidencialismo continua com suas  contradições de origem.

Virou uso e costume a frase “nunca na história deste pais” ser dita pelos governantes que assumem, ao alegarem que recebem uma herança maldita dos governantes anteriores, que a corrupção não foi punida, que o crime organizado continuou se expandindo, que a harmonia entre os poderes não aconteceu, que Amazônia está devastada, e uma ladainha populista enfadonha de “déjà vu”  ser repetida.

Porém, os contribuintes percebem que o estado continua voraz na arrecadação ao passo que os políticos apenas se empenham em busca do poder pelo poder. O guloso e gigantesco sistema presidencialista continua agigantar-se como agora novamente se expande nos seus 36 ministérios, a fim de satisfazer os vencedores da eleição.

Aliás, apenas 28 deputados federais se elegeram com seus próprios votos, dos quais 18 reeleitos e 10 novos. Os demais 485 (95%) como sempre são carregados pelo tal consciente partidário composto, não de partidos, mas verdadeiros cartórios eleitorais em que se retira a lógica matemática das eleições como no caso do Mato Grosso do Sul em que, com 124.671 votos, a Deputada Federal do PT, mais votada do estado (triplicou sua votação de 2018) não se elegeu. (Professora Rosa Neide: @prof_rosaneide).

Tive o capricho de resumidamente compilar a colcha de retalhos da Constituição de ajudei a escrever em 1988 e deparei-me com tal emaranhado constitucional que me leva a continuar a defesa da Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva, sem a qual nossa nação  não evoluirá institucionalmente.

NUMERO DAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

     DATA                       ASSUNTO

1 31/03/1992 Altera art.27 número Dep. Estaduais estabelece limites

2 25/08/1992 Plebiscito para 21 abri 1993 sobre forma de governo

3 17/03/1993 Altera os arts. 40, 42, 102, 103, 155, 156, 160, 167

4 14/09/1993 art.15, regras eleitorais só valem para ano seguinte

5 15/08/1995 Dá competência para estados para gás canalizado

6 15/08/1995 Diferenças entre empresa nacional e estrangeiras

7 15/08/1995 Sobre extensão das medidas provisórias

8 15/08/1995 Concessão ao setor privado para serviço de telecomunicações

9 09/11/1995 Permite concessão de gás e petróleo ao setor privado

10 04/03/1996 Estende Fundo Social de Emergência até 30 de junho 1997

11 30/04/1996 Contratação de professores estrangeiros na universidade

12 15/08/1996 Criação do CPMF – (ver também EC 21,37 e 42)

13 21/08/1996 Quebra monopólio IRB (Instituto Resseguros do Brasil)

14 12/09/1996 Cria FUNDEF e cria piso de investimentos para educação

15 12/09/1996 Formas de criação e desmembramento dos municípios

16 04/06/1997 Fixa em 4 anos mandato do Presidente e permite reeleição

17 22/11/1997 Prorroga Fundo Social de Emergência até 1999 e soma IR

18 05/02/1998 Considera PM e Corpo de Bombeiros unidades federativas

19 04/06/1998 Reforma administrativa publica – (ver EC 1, e 25)

20 15/12/1998 Reforma da previdência social e privada – (ver EC 41,47 e 70)

21 18/03/1999 Prorroga CPMF – (ver EC 12, 37 e 42)

22 18/03/1999 Criação dos Juizados Especiais

23 02/09/1999 Cria Ministério da Defesa e prerrogativas dos comandantes

24 09/12/1999 Extingue juntas de conciliação e cria Varas do Trabalho

25 14/02/2000 Câmara de Vereadores pelo tamanho do município

26 14/02/2000 Define mordia como direito social (EC – 64 e 90)

27 21/03/2000 Desvincula receitas dos tributos (EC 42,56,68)

28 25/05/2000 Iguala trabalho urbano ao rural para efeitos judiciais

29 13/09/2000 Estipula limites mínimos com gastos em saúde

30 13/09/2000 Primeira reforma sobre precatórios (EC 37, 62, 94 e 99)

31 14/12/2000 Cria fundo da Erradicação da Pobreza (EC  42 e 67)

32 11/09/2001 Reforma das Medidas Provisórias.

33 11/12/2001 CIDE – Altera os arts. 149, 155 e 177 da Constituição Federal.

34 13/12/2001 Permite acumular dos cargos de saúde

35 20/12/2001 Imunidades parlamentares de senadores e deputados

36 28/05/2002 Participação estrangeira nos meios de comunicação

37 12/06/2002 Nova regra de precatórios (ver EC  30, 62, 94 e 99)

38 12/06/2002 Incorpora Policiais Militares do extinto territorio Rondônia

39 19/12/2002 Cria COSIP – custeio de iluminação publica

40 29/05/2003 Flexibiliza regulação do Sistema Financeiro Nacional

41 19/12/2003 Segunda reforma da Previdência social. ( ECs n.º 20, 47 e 70)

42 19/12/2003 Micro e pequenas empresas – CPMF zona franca  Manaus

43 15/04/2004 Prorroga tempo de recursos para irrigação

44 30/06/2004 Altera distribuição de recursos da SIDE

45 30/12/2004 Reforma do Judiciário  CNJ, o CNMP, o CSJT

46 05/05/2005 Ilhas da União com Sede em Municípios mais próximos

47 05/07/2005 Transição da reforma previdência (Ver ECs n.º 20, 41 e 70)

48 10/08/2005 Plano Nacional de Cultura

49 08/02/2006 Exclui monopólio da União de isótopos de vida curta

50 15/02/2006 Sobre expansão do tempo dos trabalhos parlamentares

51 14/02/2006 Agentes comunitários de saúde

52 08/03/2006 Desnecessidade de coligações partidárias em os níveis

53 19/12/2006 Ensino infantil muda FUNDEF para FUNDEB

54 20/09/2007 Nascidos fora do Brasil possam tonar-se brasileiros (EC 3)

55 20/12/2007 Fundo de Participação dos Municípios com verba da União

56 20/12/2007 Prorroga desvinculação de receitas (ECs n.º 27, 42 e 68)

57 18/12/2008 Convalida modificações em municípios feitas até 31/dez/2006.

58 23/09/2009 Limite de vereadores na câmara municipal  com a população

59 11/11/2009 Estende educação básica até ensino médio

60 11/11/2009 Funcionários de Rondônia continuam na administração federal

61 11/11/2009 Impõe que presidente do STF seja também presidente CNJ

62 09/12/2009 Nova reforma dos precatórios (Ver ECs n.º 30, 94 e 99)

63 04/02/2010 Plano de carreira para agentes de saúde

64 04/02/2010 Alimentação direito fundamental (EC n.º 26 e EC n.º 90)

65 13/07/2010 Estatuto da Juventude e meia entrada

66 13/07/2010 Permite divorcio direto

67 20/11/2010 FCEP prorroga por tempo indeterminado. (ECs n.º 31 e 42)

68 21/11/2010 Disposições Transitórias (ver ECs n.º 27, 42 e 56)

69 29/03/2012 Defensoria Pública do Distrito Federal

70 29/03/2012 Aposentadoria por invalidez sobre a última remuneração

71 29/11/2012 Sistema Nacional de Cultura em estados e municípios

72 02/04/2013 Direitos trabalhistas aos empregados domésticos

73 06/06/2013 Amplia os TRF de 5 para 9

74 06/08/2013 Autonomia para Defensorias Publicas União e Distrito Federal

75 15/10/2013 Imuniza tributos LPs, CDs, DVDs para  autores nacionais.

76 28/11/2013 Fim voto secreto para cassação de parlamentares e vetos

77 11/02/2014 Regula cargos profissionais da saúde das Forças Armadas.

78 14/05/2014 Regra de indenização para seringueiros

79 27/05/2014 Regula a extinção de cargos da administração federal

80 04/06/2014 8 anos p/ criação das defensorias públicas n as Comarcas

81 05/06/2014 Expropriação de propriedades com trabalho escravo

82 16/07/2014 Carreira pública para agentes de trânsito

83 05/08/2014 Amplia o prazo da Zona Franca de Manaus (ver EC n.º 42).

84 02/12/2014 Mais verba da União p/ Fundo de Participação dos Municípios

85 06/02/2015 Dispõe sobre tratamento da ciência, tecnologia e inovação

86 17/03/2015 Obrigatoriedade de programação orçamentaria específica

87 16/04/2015 Sobre ICMS de um município para outro em bens de consumo

88 07/05/2015 Idade de aposentadoria aos 75 anos para serviço publico

89 15/05/2015 Prazo para recursos as regiões Nordeste e Centro-Oeste

90 15/09/2015 Transporte como direito fundamental (EC n.º 26 e EC n.º 64)

91 18/02/2016 Desfiliação partidária sem prejuízo de mandato

92 12/07/2016 Requisitos para Ministros do Tribunal Superior do Trabalho

93 08/09/2016 Prorrogação da desvinculação de receitas da União (DRU).

94 15/12/2016 Pagto de Precatórios nova reforma.  EC 30, 37, 62 e 99)

95 15/12/2016 Novo Regime Fiscal para teto de gastos públicos

96 06/06/2017 Práticas desportivas com uso de animais

97 04/07/207 Veda coligações partidárias, tempo de TV e Fundo Eleitoral

98 06/12/2017 Possibilidade de funcionários de territórios serem federalizados

99 14/12/2017 Pagamento precatórios de 2020 / 2024 (30, 37, 62 e 94).

100 26/06/2019 Torna impositivas as emendas parlamentares e de bancadas

101 03/07/2019 Possibilita militares ocuparem também cargos civis

102 26/09/2019 Participação dos entes estatais na geração de energia

103 12/09/2019 Nova Reforma da Previdência Social

104 04/12/2019 Cria policiais penais federais em Estados e Distrito Federal

105 14/12/2019 Autoriza emendas no orçamento p/ transferência de recursos

106 07/05/2020 Medidas para enfrentamento calamidade pública da pandemia

107 02/07/2020 Adia eleições municipais em função da pandemia

108 26/08/2020 Novos critérios de distribuição do ICMS

109 15/03/2021 Pagamento de auxílio emergencial

110 12/07/2021 Convalidação de atos administrativos no Estado de Tocantins

111 29/09/2021 Consultas populares, fidelidade partidária e data de posse

112 27/10/2021 Distribuição de recursos no Fundo Participação Municípios

113 08/12/2021 Alteração de pagamento de Precatórios (EC 30, 37, 62 e 94)

114 16/12/2021 Nova alteração do regime de pagamento de precatórios

115 10/02/2022 Dados pessoais como garantia fundamental

116 17/02/2022 Isenção de imposto predial e territorial aos templos religiosos

117 05/04/2022 Participação mínimo de recursos eleitorais para as mulheres

118 26/04/2022 Quebra de monopólio estatal de radioisótopos para medicina

119 28/04/2022 Isenta gastos mínimos de educação para combate covid 19

120 05/05/2022 Piso salarial nacional para agentes comunitários de saúde

121 10/05/2022 Benefícios tributários p/empresas tecnologia e semicondutores

122 17/05/2022 Idade mínima para ministros de tribunais superiores

123 14/07/2022 Gastos fora do teto para conter preço dos combustíveis

124 14/07/2022 Piso nacional para enfermeiros

125 14/07/2022 Limita número de recursos para o Superior Tribunal de Justiça

126 21/12/2022 Autoriza gastos além dos limites para orçamento 2023

127 22/12/2022 Direciona Recursos para piso nacional da enfermagem

128 22/12/2022 Impede de criar despesas sem fonte de recursos

OBS: Quando virá o novo calote dos Precatórios?

“A divisão da sociedade em torno de causas decisivas para a construção do futuro é uma consequência inevitável do processo histórico, e sua superação pode desencadear energias criadoras para a vida nacional. O Brasil já esteve dividido em opiniões favoráveis e contrárias em episódios formadores como a Independência, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República e a Revolução de 1930. Em todos esses casos a divisão foi superada e o País reencontrou o seu caminho. Não é o que acontece hoje. O Brasil está dividido por uma pauta de costumes distante da realidade do povo e por uma agenda ideológica apartada dos desafios reais do País.” [Aldo Rebelo foi presidente da Câmara dos Deputados, relator do Código Florestal Brasileiro e ministro das pastas de Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Defesa. (05.01.23, O Liberal) ]

O mundo está em guerra e conflitos armados proliferam neste planeta do chamado homo sapiens. Minorias querem se impor como detentoras de uma verdade social inexistente. A inovação pela máquina avança e parece a ficção ameaçadora do juiz Thompson, que logo após a independência americana, numa sentença judicial sobre duas ferrovias, indagou: “O QUE É A MÁQUINA?” Ele mesmo respondeu; “A MÁQUINA É O GêNIO QUE O HOMEM DEIXOU ESCAPAR DA LâMPADA E NÃO CONSEGUE MAIS APRISIONÁ-LO” para, então, advertir: “A MÁQUINA DESUMANA AINDA PODERÁ DOMINAR O HOMEM E APRISIONÁ-LO”.

Restou do governo anterior, para 2023, a eleição da maioria do Congresso Nacional que logo toma posse e seremos testemunhas oculares do que poderá acontecer porquanto nova leva de emendas constitucionais fervilham. Do novo, o presidente encaminhará a proposta da moeda única para a América Latina, experiência que os ingleses, pelo brexit, pularam fora do barco europeu.

Como pregador no deserto, continuarei me esforçando para disseminar a tese da verdadeira soberania popular com uma ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE EXCLUSIVA, pois já tivemos 7 tentativas com a parlamentar.

Nilso Romeu Sguarezi é advogado. Foi deputado federal constituinte de 1988. É defensor de uma Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva

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A CASA DO DIÁLOGO

José Sarney, OS DIVERGENTES

Durante a maior parte de minha vida o começo do mês de fevereiro significava a abertura da Sessão Legislativa. Como acredito na “liturgia” das instituições, pois a ação concreta depende das vontades e estas do caráter simbólico dos gestos e das palavras, sempre a essas solenidades dei grande importância. Chega-se a elas com as expectativas do que será construído nos próximos meses, com a reflexão sobre como se pode contribuir para alcançar o objetivo da política, que é o estabelecimento da justiça social.

Algumas vezes me coube o papel de protagonista, mas sempre pensei que, igual a todos os senadores e deputados, tinha um trabalho que exige a sedimentação de uma profunda consciência moral de nossas responsabilidades, a obstinada decisão de não cometer erros, de jamais aceitar qualquer arranhão nos procedimentos éticos que devem nortear nossa conduta.

O Congresso Nacional é o cerne do sistema representativo. Nele está presente a diversidade de pensamento, das vontades, da necessidade dos cidadãos de todo o País, expressos nas palavras dos parlamentares. Na Câmara dos Deputados e no Senado Federal o debate amplo e leal leva à solução das controvérsias.

Este ano, durante o recesso do Legislativo, os três Poderes foram vítimas de uma brutal agressão por pessoas que diziam expressar uma opinião: a da rejeição às instituições, da rejeição ao próprio Estado de Direito. Essa é a única opinião que não pode jamais ser aceita, pois significa a autodestruição da sociedade. Sem reação, teríamos não apenas a destruição dos prédios, que podem ser recuperados, mas do próprio instrumento que garante a liberdade de expressão, que é o Estado.

Como as outras instituições democráticas, muitas vezes o Congresso Nacional foi fechado. Nunca havia sido fisicamente destruído. Mas sempre houve um grupo de homens que lutou pela sua existência, por seu funcionamento, sabendo que a sobrevivência das instituições é a sobrevivência da Nação.

“O que é o poder civil?”, perguntava Milton Campos; e respondia: “É a brigada de choque dos políticos que compõem o Congresso.” É o poder civil que garante a democracia; sem a soberania do poder civil qualquer regime é apenas um jogo de cena.

O Estado é o instrumento do bem-estar social, mas o desenvolvimento social só terá êxito com o desenvolvimento econômico. E sabemos que a economia de mercado não é boa distribuidora de renda, que é necessário que o Estado seja forte para assegurar uma sociedade justa.

O Brasil foi feito pelo diálogo, pela compreensão dos homens, pelo gênio dos seus políticos. A troca de ideias é o principal instrumento de que dispomos para enfrentar as emergências nos trágicos problemas da fome, do desemprego real, do acesso à saúde, à educação, à segurança, à cultura, da desigualdade de renda, da destruição do meio ambiente, da falta de infraestrutura.

A democracia não é apenas o melhor dos regimes: é o único caminho.

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segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

UM ANO EM UM MÊS - O NOVO PANORAMA POLÍTICO

Helena Chagas, OS DIVERGENTES

A velocidade dos fatos tem sido tão vertiginosa que custa crer que, nesta quarta, o governo Lula completa apenas um mês. A tentativa golpista do 8 de janeiro, a questão militar e a tragédia Yanomami tiveram a marca das crises. Junto com a repercussão da retórica presidencial mais próxima do ideário de esquerda do que o centro esperava — apesar da ação cautelosa do ministro da Fazenda na questão fiscal — e dos acordos de divisão do poder com a turma que vai controlar o Congresso a partir de quinta-feira, seria material suficiente para ocupar a agenda do ano inteiro. Mas muito mais virá, sobretudo com a entrada em cena do novo Legislativo. A análise dos últimos 30 dias aponta movimentos políticos que vão impactar o futuro:

Reeleito, Artur Lira vai cobrar mais — até reforma ministerial – Ninguém espere ver um Lira bonzinho depois de reeleito para a presidência da Câmara com o apoio de um bloco que vai do PT ao PL de Bolsonaro. A extinção do orçamento secreto pelo STF tirou do deputado superpoderes que lhe permitiam mandar no governo anterior, mas não o transformou num leão desdentado. Ainda terá muito poder — reforçado pela votação expressiva que deverá ter —, controlando a maioria da Casa, as votações dos projetos do Executivo e a Comissão de Orçamento. Engoliu temporariamente a irritação com o PT, que vetou seu preferido para o Ministério da Integração, o deputado Elmar Nascimento (União-BA), mas vai à forra. E, segundo aliados, parece que uma Codevasf só não vai resolver o problema, pois Lira continua querendo um ministério para chamar de seu — que pode sair da cota do União: Integração (Waldez Góes), Turismo (Daniela do Waguinho) e Comunicações (Juscelino Filho). 

A implacável Lei do Vale Quanto Pesa – Uma divisão interna do União, que é resultado da fusão do ex-bolsonarista PSL com o DEM, está deixando os três personagens supracitados na berlinda. Entre deputados, a narrativa é de que esses nomes do partido na Esplanada, inclusive os deputados, foram indicados pelo poderoso senador Davi Alcolumbre (AP), e não seriam representativos da bancada. O amapaense Waldez Goes, por exemplo, é do PDT. Por isso, não há certeza quanto ao apoio maciço dos dez senadores e 59 deputados da legenda ao governo. O Planalto já mandou dizer que ficará de olho — e fará  substituições se o União não entregar o que prometeu. A faca de Lira no pescoço de Lula pode apressar as coisas. Ou não.

A desjudicialização da política como sinal de paz – No Congresso, o discurso do presidente da República, na reunião dos governadores, pedindo que os políticos parem de recorrer ao STF contra decisões do Legislativo com as quais não concordam, foi interpretado como sinalização de Lula a Lira. Além de realmente estar empenhado em devolver cada poder à sua casinha depois da bagunça institucional de Bolsonaro, teria feiro o aceno para atenuar o ressentimento do deputado, que não tira da cabeça que houve dedo do governo na decisão do Supremo de acabar com seu orçamento secreto. 

Lula faz política e Haddad faz as contas – Lula recebeu por gravidade o apoio do centro diante da ameaça à democracia,  e aproveitou as primeiras semanas de governo para fazer um  discurso dirigido sobretudo ao campo progressista — como que reafirmando suas convicções políticas diante da inevitabilidade de, a partir de agora, ter que fazer concessões a um Congresso conservador para governar. Criticou a insensibilidade do mercado, chamou Michel Temer de golpista, retomou a liderança da esquerda na América do Sul e até reeditou a política de investimentos do BNDES em projetos na região. Deixou de cabelos em pé o pessoal do mercado — aquele que pouco se abalou com rombos fiscais eleitoreiros de Bolsonaro mas desconfia de Lula por princípio. Só quem não conhece o petista pode se assustar. Enquanto o presidente faz política, Fernando Haddad faz as contas. O ministro anunciou um pacote de ajuste fiscal e circulou por Davos, onde foi bem recebido pelo capital internacional. Tudo por determinação do chefe, numa divisão de tarefas que deve caracterizar esse governo.

Dino virou superministro, e por isso está no alvo – Impossível imaginar o que teriam sido os dias subsequentes aos ataques do 8 de janeiro sem a atuação firme, eficiente e — por que não? — midiática do ministro da Justiça. Passados os piores momentos da crise, porém, colegas de Esplanada e lideranças do Congresso estão enciumados. Além de notícias plantadas tentando passar a ideia de que ele poderia ter feito algo mais para evitar os ataques  — o que não se confirma —, preparam-se para torpedear medidas do pacote anti-golpe que ele anunciou e entregou ao presidente Lula. Cotovelaço. 

Adivinha quem vai voltar – Ele mesmo, o governador Ibaneis Rocha, aquele que insistiu em nomear Anderson Torres para a Secretaria de Segurança e foi acusado de omissão no 8 de janeiro. Afastado do cargo por 90 dias, o governador do DF era dado como carta fora do baralho no início da intervenção na capital, quando as atenções se dirigiram para sua vice, Celina Leão. Uma força-tarefa do PP chegou a iniciar articulações para mantê-la em definitivo. Ibaneis, porém, foi mais rápido. Advogado com vasto relacionamento nos tribunais superiores, muitos recursos financeiros para sua defesa e a ajuda do ex-presidente Michel Temer — responsável pela indicação ao STF de Alexandre de Morares, o juiz que o afastou — o emedebista está construindo a volta. Até porque, até agora, as investigações não chegaram a nenhum elemento mostrando que houve, da parte dele, mais do que negligência e incompetência. Se tudo continuar assim, pode reassumir o Buriti até antes do prazo.

E quem não vai? – Bolsonaro, ao menos até ver melhor o rumo das investigações do 8 de janeiro, principalmente depois do depoimento de Anderson Torres, ainda esta semana.

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INELEGIBILIDADE DE BOLSONARO

Marcus André Melo*, Folha de S. Paulo

Há dois cenários distintos mas igualmente plausíveis; a economia será decisiva

Há expectativas crescentes quanto à eventual decretação da inelegibilidade de Bolsonaro pelo Judiciário. Considerando o enorme impacto do assalto à praça dos Três Poderes junto à opinião pública e as vulnerabilidades que provocou no campo bolsonarista, atores políticos e analistas enxergam uma janela de oportunidade para "cortar o mal pela raiz". Ou para o retorno à "normalidade".

A análise positiva, não normativa, da questão sugere que há um cenário alternativo igualmente plausível.

O primeiro cenário é que ao ser impedido de disputar eleições Bolsonaro deixaria de ser ameaça. Retornaríamos assim ao padrão de disputa anterior vertebrado por uma competição entre PT e o centro ou centro-direita. Este cenário seria francamente desfavorável ao PT que se alimenta do aguçamento da polarização exacerbada pelo bolsonarismo. Lula viabilizou-se como alternativa ao status quo; sua vitória foi produto não de uma frente ampla mas de uma maioria eleitoral negativa contra Bolsonaro.

O cenário seria radicalmente distinto do vigente sob Lula 1 e 2, e que favoreceu Lula e o PT, por duas razões. Primeiro, o partido e a esquerda em geral encolheram: detêm menos de ¼ da Câmara e menos de 1/8 do Senado. Segundo Leiras, Stefanoni e Malamud em "Por qué retrocede la izquierda?", o fenômeno é mais amplo: a esquerda perdeu o domínio das ruas e de capacidade de mobilização; a direita detém hoje a bandeira da mudança, a esquerda do status quo.

Mas aqui entra outra variável crucial: o PT não se renovou, mantendo a mesma liderança há 43 anos, fenômeno inédito como apontou Timothy Power, o que é crítico para o partido. O declínio de sua base sindicalista é similar ao observado nos partidos socialistas europeus que reflete a queda da participação da indústria no PIB por lá; entre nós, ela despencou 60% entre 1986 e 2021, passando de 27% para 11%. Mas aqui o problema se agravou com a abolição do imposto sindical.

O segundo cenário é que uma eventual inelegibilidade criaria intensa vitimização no bolsonarismo, mantendo-o mobilizado, o que viabilizaria a transferência do capital eleitoral de Bolsonaro para outro candidato. A reação à inelegibilidade culminaria com uma candidatura alternativa, como aconteceu com o próprio Lula em 2018, o que acabaria beneficiando o lulismo. A "campanha perpétua" que já se anuncia como estilo de governança neste primeiro mês de governo se instalaria, mudando apenas o sinal.

Neste segundo cenário, a chave será o comportamento da economia. Problemas aqui poderão dissipar os ganhos políticos para o novo governo, que resultaram da debacle do "assalto ao Capitólio", e alimentar o bolsonarismo.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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AS RAÍZES INTELECTUAIS DA TRAGÉDIA YANOMAMI

Artigo de Fernando Gabeira

AS RAÍZES INTELECTUAIS DA TRAGÉDIA IANOMÂMIA VISÃO NEGACIONISTA DE BOLSONARO, E INFELIZMENTE DE MUITOS MILITARES, SE ARTICULOU COM O CATEQUISMO EVANGÉLICO

Os mais novos não se lembram da grande fome na antiga Biafra, que pertenceu à Nigéria. Eram impressionantes as imagens das crianças, com os ossos salientes na pele. Na verdade, uma antevisão da morte, pois assim ficamos quando repousamos para sempre. É difícil aceitar que imagens semelhantes apareçam agora no Norte do Brasil: esquálidas crianças ianomâmis sendo resgatadas às pressas.

Meu primeiro contato com os ianomâmis foi na Suécia, quando estudava antropologia. Era um documentário sobre um povo altivo. Na volta ao Brasil, pude visitar algumas aldeias remotas ianomâmis, na condição de deputado, usando helicópteros do Exército. Naquele momento, o governo Fernando Collor já tinha demarcado os 181 mil quilômetros quadrados do território ianomâmi. Mas sempre houve contestação. A mais simples era esta: não é muita terra para pouca gente? Temos visões diferentes. Nem todas as áreas são para a produção, algumas são apenas sagradas.

O coronel Carlos Alberto Menna Barreto publicou pela Biblioteca do Exército um livro intitulado “A farsa ianomâmi”. Sua tese é que os ianomâmis não existiam como cultura singular, viviam misturados aos outros indígenas. Na visão de Menna Barreto, eles foram inventados pela fotógrafa de origem suíça Claudia Andujar. Como se fosse possível, mesmo para uma fotógrafa excepcional como Claudia, inventar uma cultura, uma religião, um punhado de mitos fundadores. A visão do militar era que houve uma conspiração internacional para demarcar as terras ianomâmi, com ajuda da Survival, entidade voltada para os direitos indígenas, e até mesmo do então príncipe Charles, hoje rei da Inglaterra.

Não foi acidental a resposta de Bolsonaro às denúncias sobre a fome entre os ianomâmis: uma farsa da esquerda. O ex-presidente jamais aceitou a demarcação das terras ianomâmis. Quando deputado, apresentou um projeto para anulá-la. Conseguimos evitar sua aprovação no plenário, depois Almino Afonso e eu o enterramos nas comissões. A história está contada por Lira Neto no Diário do Nordeste e contém fragmentos de nossos discursos.

Bolsonaro chegou a presidente com grande simpatia pelos garimpeiros (ele chegou a pensar em se tornar um deles), com a visão de que os ianomâmis não deveriam ter suas terras e, como os outros indígenas, precisavam se integrar à sociedade nacional. O problema para essa concepção é que temos uma Constituição, e nela está assegurado o direito dos indígenas a suas terras, cultura e religião.

Para dizer a verdade, há muitos anos o grande líder ianomâmi Davi Kopenawa denuncia a destruição de seu povo e da própria floresta. Ele escreveu o livro “A queda do céu” em parceria com o antropólogo Bruce Albert.

A visão negacionista de Bolsonaro, que infelizmente também é a de muitos militares, acabou se articulando com outra: a do catequismo evangélico. O governo destinou R$ 840 milhões a uma entidade evangélica para cuidar dos índios, para tentar atraí-los para a religião branca. A então ministra Damares Alves recusou-se a seguir um projeto no Congresso que obrigava o governo a destinar água potável aos indígenas durante a pandemia. Argumento: eles não foram ouvidos. Como assim? Sempre denunciaram que sua água estava contaminada pelo garimpo.

Algumas vezes denunciei na TV o ataque dos garimpeiros contra os ianomâmis. Entrevistei Júnior Yanomâmi em Brasília, e ele passou esses anos pedindo ajuda. Crianças foram assassinadas, adolescentes se prostituíram, o álcool foi disseminado. Nada disso tocou o governo Bolsonaro. Afinal, a integração à sociedade branca se faria por violência, corrupção e dissolução dos costumes originários.

Os garimpeiros estão associados aos traficantes de drogas e fortemente armados. Não é fácil entrar lá. Um grupo de deputados tentou chegar às aldeias, mas não conseguiu apoio do Exército com seus helicópteros. Toda a história foi construída para que os garimpeiros varressem os ianomâmis do mapa. O Brasil precisa dar numa resposta ao genocídio antes que o próprio mundo a dê. A antecipação fica melhor para nós todos, inclusive para os culpados.

Artigo publicado no jornal O Globo em 30/01/2023

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OS MILITARES E A DEMOCRACIA

Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S.Paulo

O Brasil esteve à beira de uma ruptura institucional, com o golpe espreitando a Nação. E não se trata apenas da violência bolsonarista do dia 8 de janeiro, com a destruição dos símbolos mesmos da República, mas da divisão reinante nas Forças Armadas e, em particular, no Exército. E isso data dos últimos meses do governo anterior e dos primeiros dias do novo. Uma vez que a política penetrou nos quartéis, a cisão interna se fez entre militares constitucionalistas e golpistas, alguns desses da reserva, com forte influência junto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem eram próximos.

Se golpe não houve, isso se deve, entre outros, a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo, embora pouco ou nada tenha transparecido na imprensa senão recentemente. Agiram nos bastidores, entre outras razões, para resguardar a imagem do Exército enquanto força coesa, embora a realidade fosse diferente. São eles: general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, agora comandante do Exército, general Valério Stumpf, chefe do Estado-Maior do Exército, general Richard Fernandez Nunes, comandante do Comando Militar do Nordeste.

Foram eles considerados, nas redes sociais militares de extrema direita, generais “melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro, apesar de seu “vermelho” significar simplesmente a defesa da democracia e da Constituição. Outros epítetos foram “traíras”, “comunistas” e por aí afora. Conheço-os pessoalmente, dois deles são amigos próximos, e posso testemunhar sua alta capacitação, seu amor aos valores da liberdade e da democracia, além de nosso apreço comum pelos livros.

A vida deles foi nada fácil nas últimas semanas. Além das calúnias que se tornaram corriqueiras, foram também atingidos em suas respectivas famílias, objeto de ameaças, e isso tão somente por se posicionarem no respeito à Constituição. O presidente Lula da Silva errou, em suas primeiras manifestações, ao não fazer a necessária distinção entre generais democratas e golpistas, considerando-os em bloco como avessos à democracia. Essa foi, inclusive, a percepção militar. Agora, corrigiu em boa hora a sua orientação inicial, escolhendo o general Tomás como novo comandante do Exército. Acertou e deve ser parabenizado por isso.

Na quarta-feira, dia 18, diante da tropa reunida no Comando Militar do Sudeste, o general Tomás fez um contundente discurso, não lido, em defesa da democracia, do voto, da alternância de poder, do respeito à Constituição e da obediência à vontade popular, ou seja, à escolha do novo presidente. Uma coisa é o militar votar no candidato que melhor corresponder às suas convicções, outra muita diferente é, enquanto militar precisamente, prestar continência ao novo presidente da República. E isso vale para qualquer eleito, de esquerda ou de direita. Não lhe cabe fazer opções ideológicas, mas estritamente constitucionais.

Note-se que o general Tomás tomou três atitudes, vitais para a superação da crise atual: 1) dirigiu-se à tropa, exercendo efetivamente a sua função de comandante e não se restringindo a uma reunião de gabinete com seus pares; 2) gravou toda a sua manifestação, conferindo-lhe depois um caráter público, expondo para toda a população brasileira o compromisso do Exército com a democracia, apesar dos recentes percalços; 3) enviou uma mensagem aos seus pares, inclusive aos seus detratores, de que os valores militares e os compromissos democráticos seriam mantidos.

Sua coragem foi exemplar. Mostrou, inclusive, aos petistas recalcitrantes como as Forças Armadas possuem um compromisso inarredável com a Constituição, dela não se afastando apesar de alguns grupos militares desgarrados. E aprenderam isso nas escolas militares, seguindo os currículos que são tão menosprezados pelos petistas, como se fossem necessárias grandes alterações neles. Deveriam aprender que foi graças a esses currículos que comportamentos exemplares como os desses generais foram possíveis.

Embora pouco tenha sido noticiado, o Exército foi igualmente exemplar na validação das urnas eletrônicas graças a conversas de bastidores que contribuíram decisivamente para a harmonização entre os Poderes. Muita verborreia foi gasta em público e em lutas supostamente ideológicas, enquanto o verdadeiro trabalho foi feito na aproximação entre importantes atores políticos. O discurso da fraude eletrônica foi esvaziado, sendo somente sustentado pelos bolsonaristas radicais que viviam – e vivem – em suas próprias bolhas, alheias à realidade. Foi, portanto, graças a alguns desses generais que a eleição transcorreu normalmente e os seus resultados foram acatados, sem nenhum atropelo institucional. O Exército e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) agiram em sintonia, cada um cedendo em nome do bem maior que é o Brasil.

Está na hora de ser reconhecido o importante papel desses militares na defesa da democracia. O momento é de distensão e de pacificação nacional. O Brasil só poderá crescer no respeito às instituições democráticas. Conflitos não devem ser acirrados, sob pena de retrocedermos ao passado recente.

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LULA E SEUS EQUÍVOCOS

Gustavo Loyola*, Valor Econômico

Lula busca pontos de atrito com o BC enquanto questões como o ajuste das contas públicas seguem minimizadas

No artigo anterior que escrevi para esta coluna, tratei dos sérios desafios que esperavam Lula no início do seu terceiro mandato presidencial. Mencionei especialmente que o maior desafio para Lula seria o de abandonar as ideias preconcebidas que, ao final, levaram à debacle da gestão Dilma e à grande recessão de 2015/2016. Infelizmente, parece que o pior está se confirmando, com o presidente recém empossado insistindo em ideias e teses equivocadas que já foram testadas aqui e em outros países com resultados desastrosos.

De todos os desatinos que se pode atribuir a Lula, já nas primeiras semanas do seu mandato, o mais significativo e perigoso foi seu ataque gratuito à independência do Banco Central e à maneira pela qual a política monetária vem sendo conduzida até aqui. Frases tolas ditas por Lula em entrevista à Globonews, como “Por que o banco é independente e a inflação está do jeito que está e o juro está do jeito que está?”, mostram não apenas ignorância profunda em relação aos mecanismos da política monetária, como também alheamento dos problemas conjunturais da economia.

A reação imediata dos mercados à fala de Lula - alta dos juros e do câmbio - antecipa aquilo que pareceria óbvio a qualquer economista. Ataques ao BC e ameaças a sua independência acarretam subida dos juros e maiores dificuldades no combate à inflação, justamente o contrário do que poderia estar pretendendo o presidente com suas críticas à autoridade monetária. A coisa é tão óbvia que alguém poderia até acreditar que as palavras de Lula esconderiam uma intenção deliberada de desviar o foco de problemas mais sérios na economia - com o ajuste das contas públicas - para os quais o governo não tem (ou não quer ter) respostas adequadas.

Como resultado das críticas de Lula à independência do BC e às atuais metas de inflação - que, aliás, se somam a palavras no mesmo sentido ditas pelo ministro Haddad algumas semanas atrás - é de se esperar que as pressões sobre o BC se intensifiquem daqui para frente, tendo em vista a necessidade de se perseverar com a política monetária contracionista por mais alguns meses, com vistas a fazer com que a inflação convirja para a meta fixada pelo CMN. Com isso, cria-se gratuitamente uma fonte relevante de risco e instabilidade para a economia e para os ativos brasileiros.

Vale insistir que uma política monetária independente é ferramenta essencial para a manutenção da estabilidade macroeconômica, especialmente em um momento de maiores preocupações em torno de um viés mais expansionista da política fiscal para os próximos anos. A capacidade de reação do BC, sem interferências externas, a uma eventual piora do cenário inflacionário prospectivo, é condição necessária para impedir a deterioração contínua de expectativas de inflação e evitar um maior grau de inércia da inflação.

Certamente, a reversão da autonomia formal do BC pelo Congresso Nacional parece improvável, tendo em vista a atual correlação de forças no Legislativo e poderia ter um custo político muito elevado para Lula. Não obstante, vale lembrar que a decisão sobre a meta de inflação cabe ao CMN, no qual dois de seus três integrantes - os ministros da Fazenda e do Planejamento - são diretamente vinculados ao presidente da República. Se o CMN decidir - fugindo da regra atual de fixação da meta para dois anos à frente - majorar as metas já estabelecidas para 2024 e 2025, os efeitos seriam igualmente perversos e contrários às intenções do governo, pois implicariam a revisão para cima das expectativas de inflação que, aliás, já se encontram no momento acima da meta de 3%, segundo a pesquisa Focus. Tal revisão das expectativas não seria neutra sobre a inflação nos próximos meses, podendo se constituir em fator adicional de pressão na execução da política monetária.

Adicionalmente, com relação à autonomia do Banco Central, teme-se que a substituição do diretor de política monetária da Instituição, Bruno Serra, prevista para o final de fevereiro, dê espaço para a indicação pelo Executivo de um nome alinhado a visões econômicas heterodoxas, de modo a se sobrepor às preferências do presidente da instituição, o que igualmente seria recebida de forma negativa pelos mercados.

Outra questão que atinge potencialmente a autonomia o BC é a iniciativa de criação de uma moeda única no Mercosul ou de uma moeda para liquidação de transações bilaterais entre Brasil e Argentina. Além de se tratar de um disparate sem tamanho, a ausência do Banco Central da discussão sobre o tema parece indicar que houve intenção deliberada de deixar o BC à margem de um assunto que potencialmente afeta as políticas monetária e cambial.

Enquanto o presidente da República busca pontos de atrito com o BC, questões prementes na esfera macroeconômica, como o ajuste estrutural das contas públicas, seguem minimizadas por Lula que deliberadamente confunde responsabilidade fiscal com ausência de politicas sociais. Tais equívocos presidenciais, se persistirem, podem cobrar um preço alto à sociedade brasileira, principalmente pela geração de um ambiente de expectativas desfavorável à queda dos juros e da inflação.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo

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O DÍZIMO GOLPISTA

Miguel de Almeida, O Globo

Sob o governo bolsonarista, os religiosos conservadores sentiram-se confortáveis na sedição contra a democracia

‘Em nome do pai, dos filhos, dos espíritos e dos santos, amém’ é o enredo de 2023 da Gaviões da Fiel. As alas da escola reunirão na avenida espíritas, evangélicos, católicos e seguidores do candomblé e da umbanda. Contra a intolerância religiosa, a alegria da música e a irreverência carnavalesca.

No ano passado, a mesma Gaviões desfilou sob o tema “Basta!”, em referência direta aos desmandos na saúde, educação e política esperneados por aquele ex-líder da extrema direita. Dizia a letra do samba: A democracia alienada e a ditadura disfarçada/basta de hipocrisia/é hora da luta sair do papel.

E, logo depois das eleições presidenciais, a torcida da Gaviões protagonizou a mais linda reação aos golpistas, quando, a caminho do Rio, em razão de um jogo contra o Flamengo, rompeu os bloqueios dos caminhoneiros em avenidas de São Paulo. Os bolsonaristas em fuga ainda puderam ver pelo retrovisor, no alto de um viaduto, a faixa estendida pela torcida corintiana: “Somos pela Democracia”.

O samba pela concórdia religiosa chega à avenida depois da prisão de alguns pastores golpistas. Não apenas postaram a catilinária habitual contra as urnas eletrônicas, como invadiram os palácios no 8 de janeiro. Ancorados no dízimo arrecadado — aquele que não paga imposto —, ajudaram a destruir o patrimônio público.

Não é de hoje, sempre existiram maus religiosos disfarçados em nome da fé. Ainda sob tal escudo, perpetraram muitos crimes. Na eleição passada, o discurso de campanha escondeu a incompetência na gestão da pandemia — quase 700 mil vítimas — para vociferar o discurso fundamentalista de algumas denominações evangélicas contra religiões afro. A começar pela célebre ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. Tudo depois ecoado por parlamentares tuiteiros de cabelo pintado.

O número de golpistas presos, tamanha a barbárie da tentativa de golpe, deixou em segundo plano a prisão e a conspiração urdida por pastores evangélicos, sob inspiração do capitão e de seus militares de pijama (nem todos). Sob o governo bolsonarista, os religiosos conservadores sentiram-se confortáveis na sedição contra a democracia, como na propagação de suas aversões. Releram a Bíblia de acordo com seus interesses financeiros e políticos. Com sucesso, incentivaram ataques aos terreiros de religiões afro e a seus seguidores.

Logo depois da tentativa de golpe do 8 de janeiro, ao postarem opiniões e vídeos para caracterizar como manifestações democráticas o que foi um ataque ao resultado das eleições, praticaram outras ações criminosas. Protegidos pelo lero-lero da liberdade de expressão, buscam destruir o Estado Democrático e difundir entre a população narrativas escusas sempre pintadas pelo verniz da fé.

Durante a pandemia, em lugar de pedir compras rápidas de vacinas ou de respiradores, para proteger seu rebanho, revelaram seus interesses ao lutar para que seus templos não ficassem fechados. Afinal, o dízimo on-line não se mostrava tão eficiente como a coleta presencial.

O Brasil de 2023 precisa não apenas discutir o papel dos militares na sociedade, sem medo de golpe ou de quarteladas, como deveria enfrentar a sedição empreendida pelos pastores de extrema direita. Por décadas, o catolicismo conservador se viu confrontado por reações de quem não comungava com atrasos civilizatórios — como a luta contra o divórcio ou a pílula anticoncepcional. Eram duros debates, porém não se colocava, tal como posto agora por setores evangélicos, preconceito religioso. Tratava-se de rejeitar a proverbial catequização, em nome da fé, de igualar a todos sob as mesmas crenças.

É ainda o caso de usar a liberdade de opinião para discursar malquerenças dentro dos templos contra os gays. Embora a homofobia seja considerada crime pela Constituição, os pastores brigam para mostrar seus púlpitos como espaços livres da lei geral. Assim, pela enviesada fé, a recorrência no preconceito.

A França, de maneira mais grave, enfrenta há alguns anos o que se avizinha no Brasil. Os imãs brigam para impor preconceitos e costumes estranhos à sociedade francesa. Também querem espaços onde valham seus preceitos islâmicos fundamentalistas — quase sempre contrários à secular tolerância legal religiosa do país, num evidente caráter de retrocesso civilizatório. Lá, como aqui, a extrema direita se esconde atrás das liberdades civis para exterminar conquistas como… a liberdade de opinião. Isso não é um samba.

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LULA E AS GREVES DA NOVA REPÚBLICA

Almir Pazzianotto, OS DIVERGENTES

A carreira política de Luís Inácio Lula da Silva foi construída sobre greves. A primeira em maio de 1978, vitoriosa graças ao acordo que se sobrepôs à decisão pela ilegalidade proferida pelo TRT de São Paulo. Em seguida vieram as greves de 1979 e 1980, ambas derrotadas por razões que conheço, mas me abstenho de relatar.

Sob a presidência de Lula, o grevismo foi adotado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo como resposta ao peleguismo presente no velho sindicalismo brasileiro. Em especial no Estado de São Paulo, a classe operária colhia bons resultados da implantação de moderno parque industrial no ABC, e em cidades como Piracicaba, Jundiaí, Campinas, Limeira, Americana, São Carlos.

A fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), fez o grevismo ganhar ímpeto durante a presidência do general Ernesto Geisel, se avolumar no governo João Figueiredo e empregar a violência na Nova República, após a política de não intervenção adotada em março de1985 pelo Ministério do Trabalho.

Em fevereiro de 2006, o presidente José Sarney, entrevistado pelos repórteres Claudia Safatle, Raymundo Costa e Maria Cristina Fernandes do Jornal Valor Econômico, à pergunta sobre greves, respondeu: “Enfrentei 12.600 greves. O Getúlio que todo mundo diz que fez uma revolução trabalhista, quis aprisionar os sindicatos pelo Estado. Quando eu assumi, o PT quis que os sindicatos aprisionassem o Estado, com as greves e com tudo. Tive que ser extremamente tolerante. Eu tinha que ser fraco para ser menos fraco. Fiz o que era preciso, dentro de um plano estratégico que estava na minha cabeça e que eu cumpri” (Vinte Anos de Plano Cruzado. José Sarney, Ed. Senado Federal, 2006, pág. 102).

O grevismo selvagem, como instrumento de conquista do poder, foi anunciado por Jair Meneguelli alguns dias antes da data prevista para a posse do presidente Tancredo Neves. Para cumprir o prometido, o PT e a CUT violaram todos os limites éticos e legais. Como Ministro do Trabalho entre 15/3/1985 e 27/9/1988, fui testemunha e vítima da insanidade que dominou a oposição petista durante a Nova República. PT e CUT contribuíram para a inviabilização dos planos Cruzado I, Cruzadinho, Cruzado II, Bresser e Verão. Sabotaram duas tentativas de celebração do Pacto Social. Boicotaram o desenvolvimento da indústria nacional no momento em que a China adotou modelo político que a transformou na segunda potência econômica mundial.

Conservo volumoso arquivo sobre as greves entre 1978 e 2002. Destaco a paralisação ilegal contra a Petrobrás, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. A edição de 25/5/1995, da revista Veja, trazia na capa fotografia do presidente da CUT e a legenda “Querem parar o país”.

Durante a campanha, uma das poucas verdades ditas por Lula consistiu na promessa de dar marcha a ré na reforma trabalhista. Não entrou em detalhes. Estou convencido, porém, de que tentará o aprisionamento do Estado pela CUT e pelo PT. Com os poderes de que dispõem e a ausência de oposição, almeja dominar a Câmara dos Deputados, o Senado, e constituir maioria no Supremo Tribunal Federal, para concretizar o projeto do partido da bandeira vermelha.

Greves, como aquelas que boicotaram o governo Sarney, talvez não voltem a acontecer. Em quase todo o mundo se registra acelerado processo de desindustrialização, com aumento da taxa de desemprego. A classe operária, surgida com a Revolução Industrial, perde espaço para a informatização, a automação, a robotização, a inteligência artificial, para aplicativos. A indústria e a agroindústria dispensam mão de obra, substituída por máquinas de última geração, comandadas por operadores especializados e bem remunerados. O cortador de cana de açúcar, simbolizado pelo “boia fria”, desapareceu, para deixar longo rastro de desempregados. Foi substituído pelas colhedeiras. Com elas se reduziram conflitos espalhados pela CUT e pelo PT no interior de São Paulo, como aconteceu em Guariba, Sertãozinho, Bebedouro, Monte Alto, Araras, Leme.

Ensinou o Pe. Antônio Vieira que “quando iam saber do Batista, quem era, perguntam-lhe: vós quem sois e vós quem dizeis que sois; porque os homens quando testemunham de si mesmos, uma coisa é o que são, e outra coisa é o que dizem. (Sermão da Terceira Dominga do Advento, Sermões, vol. 1, pág. 188). É o caso de se perguntar a Lula: afinal, quem sois? O dos discursos de campanha, ou o das greves selvagens?

Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

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A DIMENSÃO DOS CRIMES CONTRA OS YANOMAMIS

Editorial O Estado de S.Paulo

A tragédia humanitária dos Yanomamis é chocante, mas não surpreendente. Sem dúvida, toda a sociedade brasileira precisa fazer um exame de consciência em relação ao abandono histórico dos povos originários. Mas surgem indícios de que o governo Jair Bolsonaro descumpriu deliberada e criminosamente suas obrigações legais para com os Yanomamis.

Desde 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito de uma ação relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, vinha baixando decisões que obrigavam o governo a ampliar a proteção aos Yanomamis, incluindo um plano de expulsão de garimpeiros e madeireiros atuando ilegalmente na reserva e medidas de segurança sanitária e alimentar. Segundo nota do gabinete do relator emitida na última quinta-feira, 26, “as operações, sobretudo as mais recentes, não seguiram o planejamento aprovado pelo STF e ocorreram deficiências”. A Corte ainda “detectou descumprimento de determinações judiciais e indícios de prestação de informações falsas à Justiça”.

A presença de mineradores ilegais tem sido uma constante desde a remarcação do território, em 1992. O Ministério Público Federal (MPF) de Roraima já havia ajuizado em 2017 uma ação civil pública pleiteando a colocação de três bases etnoambientais da Funai nas reservas Yanomamis. Mas, mesmo após a sentença judicial, essas determinações nunca foram devidamente cumpridas. Com o enfraquecimento dos órgãos de apoio indígena e de combate aos crimes ambientais na gestão Jair Bolsonaro, o garimpo cresceu ainda mais.

Após as decisões do STF, um plano de atuação chegou a ser apresentado, mas nunca foi aplicado. “A linha de atuação do Ibama previa o combate nos rios e com o uso de aeronaves e poderia erradicar o garimpo em seis meses. Jamais foi aplicado”, disse ao Estadão Alisson Marugal, procurador da República em Roraima. “Muito pelo contrário, diversas vezes o Ibama em Brasília impediu que o plano fosse aplicado.” Segundo ele, “o governo fez operações para não funcionar”. Foram só três ciclos, com duração de cinco a dez dias, sobre apenas 9 dos 400 pontos de garimpo ilegal.

Começam a vir à tona também indícios de corrupção. Conforme reportou a Folha de S.Paulo, relatórios preliminares de uma operação da Funai realizada em 2019 apontam uma suposta relação próxima entre integrantes do Exército que atuavam em Roraima e o garimpo ilegal. Os relatos sugerem que militares do Sétimo Batalhão de Infantaria da Selva, muitos com relação de parentesco com os garimpeiros, vazavam informações de operações de combate à atividade ilegal e permitiam a circulação de ouro e droga mediante pagamento de propina. Os documentos também apontam para a atuação de integrantes do PCC no transporte de drogas e de minerais ilegais. A operação mapeou 3 pistas de pouso clandestinas, 14 clareiras abertas para pouso e decolagem de helicópteros, 36 garimpos, balsas ou acampamentos, 4 bordéis e 41 frequências de rádio utilizadas para comunicação. Mas, apesar de todas essas evidências, nada foi investigado.

A gestão de saúde da área Yanomami é investigada por desvio no uso de verba para a compra de remédios. O MPF suspeita que só 30% dos mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos por uma das empresas contratadas pelo distrito sanitário indígena local, sob ingerência do Ministério da Saúde, teriam sido devidamente entregues. Segundo os procuradores, o desvio de medicamentos vermífugos, por exemplo, impossibilitou que 10 mil crianças, das cerca de 13 mil previstas, recebessem o tratamento devido.

Em 1998, o então deputado federal Jair Bolsonaro fez uma acusação às Forças Armadas: “A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”. Com a sua pusilanimidade característica, acrescentou: “Se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro”. Quem dera só pregasse e não fizesse. Mas omissão também é crime, e a dizimação a que os Yanomamis foram submetidos sob o seu governo não pode passar impune.

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domingo, 29 de janeiro de 2023

NÃO É TRAGÉDIA HUMANITÁRIA, É GENOCÍDIO

Denise Mirás, Duda Ventura, Thales De Menezes, ISTOÉ

Tragédia dos Yanomami se configura como genocídio e pode levar Bolsonaro a tribunal internacional

‘‘Acavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esses problemas em seu país.” Este é um trecho de discurso de Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo PPB-RJ, na Câmara dos Deputados, em 16 de abril de 1998. Dessa frase, até atos e omissões que fecharam seu mandato de presidente da República em dezembro de 2022, Jair Bolsonaro ofereceu provas contra si próprio. Virou um poço aterrado por acusações, que transbordou com as imagens chocantes, e divulgadas no mundo inteiro, da condição degradante imposta ao povo Yanomami.

As fotos de Yanomamis desnutridos, praticamente pele e osso, são revoltantes. Lembram as fotos dos prisioneiros dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. As imagens ganharam repercussão com a visita do presidente Lula à região, no sábado (21). Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, nos últimos quatro anos 570 crianças Yanomamis morreram por contaminação de mercúrio, desnutrição e fome. Além de dar declarações preconceituosas e mentirosas sobre indígenas desde antes de seu mandato presidencial, Bolsonaro dedicou seu governo a facilitar a entrada de garimpeiros na região.

Uma vez estabelecido, o garimpo contamina os rios com mercúrio, afasta a caça local e, controlando pistas de pouso e transportadores em ação na região, impede a chegada de alimentos e remédios para a população Yanomami. A Polícia Federal abriu na quarta-feira (25) investigação para apurar crimes de omissão e genocídio ligados à crise humanitária na população Yanomami. A superintendência da PF em Roraima quer levantar possíveis omissões de agentes públicos no combate aos problemas enfrentados pelos indígenas e também a atuação de operadores e financiadores do garimpo ilegal.

A investigação foi um pedido do ministro da Justiça, Flávio Dino. Para ele, há indícios do crime de genocídio contra o povo Yanomami. “Eu não tenho nenhuma dúvida técnica, embora não me caiba julgar, de que há indícios fortíssimos de materialidade do crime de genocídio. E é disso que se trata.” Segundo Dino, integrantes do governo Bolsonaro podem ser enquadrados. “Genocídio não é só matar. Violar a integridade física e mental também é uma forma de genocídio. O que a lei brasileira trata é que ele fica caracterizado quando se busca medidas comissivas e omissivas de levar ao extermínio de um povo.”

Dino anunciou duas ações tomadas por seu ministério: apurar a responsabilidade de agentes públicos do governo Bolsonaro e montar uma grande operação da Polícia Federal para fazer a retirada dos milhares de garimpeiros ilegais da terra Yanomami.

Em nota, o Ministério Público Federal reiterou o compromisso no combate ao garimpo no território. Para Mario Bonsaglia, subprocurador-geral da República, “essa reação estatal, de natureza policial e contando também com o necessário apoio das Forças Armadas para fazer valer as decisões e as recomendações do MPF, precisa vir com urgência”, afirmou. “Isso ocorre diante não só da ilegalidade em si da atividade garimpeira, mas principalmente em face da grande devastação ambiental que acarreta, com reflexos diretos e imediatos sobre a saúde e a vida das populações indígenas. Ou seja, a retirada dos garimpeiros, inclusive mediante o uso da força necessária, é inegociável”.

A situação de emergência sanitária será incluída em ação já levada ao Tribunal Penal Internacional de Haia pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Abid) em 2021, denunciando Bolsonaro por genocídio e crimes contra a humanidade, e já ampliada no fim do mesmo ano para incluir avanços do desmatamento e do garimpo ilegal em terras indígenas. Esses crimes, se caracterizados como genocídio (extermínio deliberado, parcial ou total de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso; destruição de populações ou povos), podem levar o ex-presidente brasileiro a julgamento e a penas de detenção, além de multa e perda de bens.

Para o coordenador jurídico da Abid, Maurício Tenara, “foi uma política de morte, que visava questões prejudiciais”. Ele considera que a denúncia enviada a Haia “tem materialidade probatória para condenar Bolsonaro por genocídio”. Conforme o advogado Cássio Schneider Bemvenuti, coordenador do Curso de Direito da Universidade Feevale, “há elementos óbvios, claros e nítidos de que o governo no mandato anterior não agia na proteção desses indígenas”, afirmou. “Caracterizar a não intervenção do governo como genocídio pressupõe que houve dolo do governante. Ou seja, que além de omisso, de não cumprir o seu dever e ser negligente, ele também agiu com o objetivo de eliminar determinado grupo étnico, no caso, essa população Yanomami. Cabe a apuração de provas que demonstrem o elemento subjetivo do dolo.” O Ministério da Saúde decretou situação de emergência no território. A titular da pasta, Nísia Trindade, declarou que Jair Bolsonaro foi omisso. “Houve omissão em relação aos Yanomamis e outros povos”, disse a ministra, afirmando que o garimpo ilegal de ouro na região é a principal causa da crise de saúde. “Eu vejo o abandono como uma forma de genocídio e essa população estava desassistida. O genocídio também pode ocorrer por omissão.”

Em reunião com a ministra, o presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) Antonio Barra Torres comparou as imagens da crise de saúde dos Yanomamis com fotos do Holocausto conduzido pela Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial.

Lula também ficou impressionado com o que viu. “Adultos com peso de crianças, crianças morrendo por desnutrição, malária, diarreia e outras doenças. Os poucos dados disponíveis apontam que ao menos 570 crianças menores de cinco anos perderam a vida no território Yanomami nos últimos quatro anos, com doenças que poderiam ser evitadas”, declarou em Boa Vista.

Bate-boca

No dia seguinte, Lula publicou em suas redes sociais: “Mais que uma crise humanitária, o que vi em Roraima foi um genocídio. Um crime premeditado contra os Yanomamis, cometido por um governo insensível ao sofrimento do povo brasileiro”. No mesmo dia, em sua conta no Telegram, Bolsonaro revidou: “Contra mais uma farsa da esquerda, a verdade: os cuidados com a saúde indígena são uma das prioridades do governo federal. De 2019 a novembro de 2022, o Ministério da Saúde prestou mais de 53 milhões de atendimentos de atenção básica aos povos tradicionais”.

Na verdade, é farta a participação da tropa de Bolsonaro em ações que provocaram e agravaram o sofrimento dos Yanomamis. Em 2020, a senadora eleita Damares Alves, então ministra dos Direitos Humanos, pediu a Bolsonaro veto à entrega de leitos de UTI e de água potável aos Yanomamis durante a pandemia de Covid-19. O veto se estendeu a equipamentos hospitalares, como respiradores, material de higiene pessoal e limpeza.

O deputado federal eleito Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, deixou a pasta em junho de 2021, sob acusações de participação em extração e venda ilegal de madeira e de compactuar com o garimpo ilegal, chegando a transportar garimpeiros em aviões do governo. Poucos dias antes do fim do mandato de Bolsonaro, em 14 de dezembro, o general da reserva Augusto Heleno, ainda no cargo de ministro do Gabinete de Segurança Institucional, autorizou o garimpo em uma área de quase dez mil hectares, a menos de oito quilômetros da fronteira com a reserva.

Em setembro de 2020, na ONU, Bolsonaro culpou os indígenas pelas queimadas na Amazônia. Mas a pressão de órgãos internacionais a respeito da questão indígena no Brasil se tornou constante e questionamentos da ONU receberam respostas que fogem à realidade. Em 27 de julho de 2021, o governo brasileiro respondeu com um relato, sem detalhes, de “operações exitosas” contra garimpeiros.

No ano passado, parlamentares aprovaram urgência para a votação do projeto de lei 191/2020, que autoriza o garimpo em terras indígenas, uma proposta que o Ministério Público Federal havia considerado inconstitucional. Quando anunciou o projeto, ainda em 2019, Bolsonaro disse a lideranças indígenas: “em Roraima tem R$ 3 trilhões embaixo da terra. E o índio tem o direito de explorar isso de forma racional, obviamente. O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”.

O governo fez uma distribuição inicial de quatro toneladas de cestas-básicas com aviões e helicópteros da FAB. A vice-presidente da comissão da União Europeia, Frans Timmermans, anunciou um repasse de 500 mil euros com fins de ajuda humanitária. Após decretar emergência no território, o governo Lula promoveu 38 exonerações e cinco dispensas na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). No total, até a última quarta (25), 54 servidores foram afastados de cargos ligados à saúde e à assistência aos povos indígenas.

Os Yanomamis são considerados um tesouro nacional do Brasil. Sua cultura exibe características exuberantes e suas comunidades têm traços únicos, devido ao pouco contato de seus integrantes com outros povos até poucas décadas atrás. Em 1992, foi demarcada a Terra do Povo Yanomami, cerca de dez milhões de hectares em Roraima, entrando pela fronteira com Venezuela e Amazonas. Apresentava então 370 aldeias e 30 mil indígenas vivendo isolados, com difícil acesso, mas já com alguma intervenção de fora. Nos últimos anos, a invasão do território chegou a 20 mil garimpeiros, com equipamento e logística, apoiados por organizações criminosas na região.

Apoio ao garimpo

De 2018 a 2021, a área de garimpo na terra Yanomami cresceu de 1.200 para 3.272 hectares. Segundo Ana Carolina Bragança, procuradora da República no Amazonas, que já trabalhou em Roraima e no Mato Grosso, vários fatores dificultam o combate ao garimpo. “Não é necessariamente financeiro o apoio político nessas regiões. Se um político local defender a regularização do garimpo, isso já tem um efeito social de incentivo.” Segundo ela, a participação da extração ilegal na economia local aproxima a elite política dos garimpeiros. “Tem muita gente nisso, e muita gente quer dizer muito voto.” Ela destaca que é preciso levar em consideração a incorporação do ouro no mercado. “Se tem quem extrai, tem quem compra. É fácil regularizar ouro de origem ilegal porque a fiscalização é muito falha.”

Em abril de 2022, relatório da Associação Hutukara contabilizou que garimpeiros haviam tomado postos de saúde indígena, numa ação que teria deixado um quinto dos 30 mil Yanomamis sem nenhuma assistência. Somente a Hutukara enviou 21 ofícios a autoridades competentes (Exército, Ministério Público, Funai e Polícia Federal) nos últimos dois anos, denunciando atrocidades e crimes de garimpeiros, sem que nenhuma providência efetiva tenha sido tomada. Segundo o Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena), cinco dos 78 postos de saúde do território ficam em áreas invadidas e foram fechados por garimpeiros.

Em novembro de 2021, garimpeiros tomaram e fecharam uma UBSI (Unidade Básica de Saúde Indígena) em Homoxi, impedindo pouso de missões de saúde e ameaçando a empresa que conduzia os voos na região. Em maio de 2022, a Justiça Federal de Roraima determinou o uso da Força Nacional de Segurança Pública para garantir a reabertura da unidade e retomar o atendimento à população. A decisão também determinou a retirada dos garimpeiros que invadiram a terra dos Yanomamis. O juiz federal Felipe Bouzada Viana incluiu no texto de sua decisão a expressão “risco de genocídio”. O governo Bolsonaro não cumpriu nenhuma das decisões judiciais que determinavam a retirada dos invasores.

A unidade foi incendiada pelos garimpeiros em dezembro, último mês da gestão Bolsonaro. O Ministério Público Federal em Roraima lista 26 investigações de casos de violência contra povos indígenas. O de maior repercussão foi registrado em abril do ano passado, na comunidade Aracaçá, quando uma menina de 12 anos teria sido estuprada e morta por garimpeiros. Segundo relatos, seu corpo foi jogado no rio.

Avanço da malária

A crise humanitária tem como principal mazela a desnutrição e as infecções respiratórias em cinco mil crianças. Do primeiro dia do ano até a última segunda-feira (23), 11.530 novos casos de malária foram confirmados no território. O número pode ser bem maior devido à dificuldade de notificações de óbitos nas comunidades indígenas. No domingo (22), uma mulher morreu de desnutrição depois de ter sua foto compartilhada nas redes. O avanço da malária também carrega outro efeito nocivo da ação do governo. A distribuição nacional de cloroquina durante a pandemia de Covid-19, apesar desse remédio originalmente indicado para malária não ter efeito comprovado contra o coronavírus, teria comprometido a entrega de kits contra a doença aos indígenas.

“Os adultos não têm mais força para abrir uma roça e plantar. Também não há mais peixe e camarão para pescar, porque os garimpeiros estão destruindo os rios. Também quase não tem mais proteína, porque o barulho das máquinas no garimpo faz as caças fugirem para longe”, disse Junior Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Yanomami.

O secretário de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, Ricardo Weibe Tapeba, definiu as ações de atendimento ao povo Yanomami desde a semana passada como “uma operação de guerra”. “Fizemos o resgate de pelo menos 16 pacientes com quadro de desnutrição muito avançada, isso apenas em uma comunidade. É uma operação de guerra, uma grande área do território está ocupada por garimpeiros armados.” Foi iniciada na terça (24) a construção de um hospital de campanha em Boa Vista. Tapeba propôs ao Ministério da Saúde a implantação de um outro hospital de campanha dentro da reserva, para abrigar também cozinha comunitária.

Segundo Tapeba, equipes do Ministério da Saúde fizeram uma operação emergencial entre os dias 16 e 23 de janeiro. “Nós acreditamos que mais de mil indígenas foram resgatados para não morrer nessses nesses últimos dias”, afirmou. Em uma semana, o único hospital infantil do estado, em Boa Vista, recebeu 29 crianças, totalizando 47 Yanomamis de até 13 anos internados na instituição.

Mandante do crime

Outro episódio ligado à violência na Amazônia teve desdobramentos nesta semana. Preso em julho de 2022 sob acusação de uso de documento falso e suspeita de envolvimento em pesca ilegal no Vale do Javari, no Amazonas, Ruben Dario da Silva Villar, o traficante “Colômbia”, foi liberado em outubro depois de pagar fiança de R$ 15 mil. Mas voltou para a cadeia em dezembro, “por descumprir condições impostas pela Justiça para a liberdade provisória”. Na segunda (23), foi apresentado pela Polícia Federal como mandante do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em 5 de junho de 2022. Foi indiciado.

De acordo com a PF, além de fornecer munição e embarcações para o crime, há ligação telefônica de “Colômbia” para suspeitos na véspera, e várias outras para um dos criminosos no mesmo dia das mortes. Também estão presos Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado” (com advogado pago por “Colômbia”) e Jefferson da Silva Lima, que confessaram ter atirado em Bruno e Dom; Oseney da Costa Oliveira, irmão de Amarildo e que nega participação no crime, e mais um irmão, Edvaldo, indiciado por participação nas mortes.

*Estagiária sob supervisão de Thales de Menezes

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