Quem imagina que por trás das camisas de marca que desfilam pelos restaurantes da Faria Lima existem pessoas submetidas a condições de trabalho degradantes?
Durante 15 anos, fui redatora publicitária em quatro das maiores agências de propaganda do Brasil, freelancer em outras e, até hoje, convivo com amigos empregados em algumas delas. Ninguém fala publicamente sobre o que acontece nessas agências porque, se fizer isso, nunca mais arruma emprego. Como agora estou fora desse meio, posso contar.
Em uma das agências em que trabalhei, um diretor de criação que acabara de chegar recomendou que, durante o expediente, eu fizesse o meu trabalho e, depois, fizesse as campanhas destinadas a outros redatores, a fim de provar que era tão boa quanto eles.
Por meses, trabalhei todos os dias das 9h à meia-noite, inclusive aos sábados e domingos. Um colega que vinha trabalhando cerca de 18 horas por dia nessa época chegou a dormir algumas vezes embaixo da nossa mesa porque, segundo ele, não valia a pena ir para casa para dormir só algumas horinhas –e nosso chefe sabia disso.
Parece um caso isolado, mas não é. Todo mundo que trabalha em agência sabe que não há horário fixo. Os turnos se prolongam ao sabor da demanda, podendo ir madrugada adentro (prática normal nas vésperas de apresentações) sem um centavo de hora extra.
Um dos momentos mais deprimentes da minha trajetória foi num dia em que resolvi sair, na hora do almoço, para doar sangue para o pai de um amigo. Quando estava com o elástico pressionando o meu bíceps, o celular tocou.
— Tá onde?
— Tirando sangue.
— A agulha já entrou?
— Não.
— Então levanta porque, se tirar, talvez precise esperar um pouco. E você tem que voltar agora.
O trabalho que urgia por esta profissional não era o parto de um bebê ou um incêndio com vítimas. Era a adaptação de um comercial de 30 para 15 segundos. O que tornava esse comercial tão urgente? A marca que assinava: uma das maiores empresas de telefonia do Brasil. E isso explica tudo: nesse sistema, cuja face mais caricata é a Faria Lima, quem estala o chicote e dá o ritmo é a grana.
Se, na base do organograma está o criativo e, no topo, um CEO chamado Money, quem está no meio? A direção da agência (e muitas vezes a multinacional e os investidores que a controlam) e os clientes, que sabem muito bem o que se passa dentro daquelas paredes mas seguem cobrando prazos que, eles também sabem, só podem ser cumpridos por uma equipe movida a prestações de Jeep e doses de Rivotril e Red Bull.
As grandes marcas que estão nas telas bancando as boazinhas com o consumidor —subitamente verdes, feministas e antirracistas por pressão do mercado— fecham os olhos para um esquema de exploração e abuso que, muitas vezes, envolve ainda outros tipos de mão de obra, como a produção de campanhas fantasma.
Em busca de ganhar prêmios, as agências correm atrás de produzir peças inovadoras que, por diversas razões, não são produzidas no dia a dia. Para isso, os escravos de Lacoste são convocados a trabalhar de graça nas poucas horas livres que ainda lhes restam –em uma das agências que trabalhei, éramos obrigados a fazer isso nos feriados.
Uma vez criada a campanha fantasma, uma produtora de cinema e uma de áudio são acionadas para fazer a peça, com a promessa de outros trabalhos remunerados no futuro –ou a ameaça velada de nunca fazê-los. O esquema exploratório ganha novas dimensões: diretor de cinema, fotógrafo, editor, produtor de áudio, músico e locutor trabalham totalmente de graça, sem garantia alguma de receber qualquer coisa depois.
Tudo isso com um único objetivo: o dono da agência aparecer com o prêmio na mídia, angariar novos clientes e seguir propulsionando a roda dentada. Uma roda muito maior do que parece. Para trabalhar dia e noite, esses profissionais precisam de empregadas e babás que assumam a sua porção de existência doméstica. Na casa de cada escravo de luxo, há outro sem luxo e, na casa desse, muitas vezes uma menina deixando de estudar para cuidar dos irmãos mais novos. Se nem quem dirige um Renegade tem coragem de abrir a boca, como esperar isso da ponta mais frágil?
Não surpreende que muitos acionistas e executivos das grandes marcas tenham tentado reeleger um ex-presidente que sempre trabalhou com afinco pelo desmonte dos direitos trabalhistas. É preciso reforçar as estruturas desses porões onde a bola de ferro é a promessa de felicidade proporcionada pelo último modelo de Iphone.
Segundo o sociólogo Orlando Patterson, o que diferencia um escravizado de um servo é a ausência de laços sociais. É possível manter laços saudáveis com semelhantes esquemas de trabalho? É possível se manter saudável?
Nos meus anos de agência, vi serem criadas no meu corpo e no corpo dos meus colegas as seguintes campanhas: herpes, cândida, transtorno alimentar, ansiedade, bipolaridade, síndrome do pânico, psoríase, alcoolismo e tricotilomania.
Sem falar na morte de um diretor de arte ainda jovem, que ninguém pode provar estar ligada ao estresse da agência, mas, coincidentemente, aconteceu em um período de sobrecarga de trabalho.
Em 2009, ainda numa multinacional, precisei retirar as amígdalas. Um novo diretor de criação tinha acabado de ser contratado e, ao ver o meu pedido de licença médica, avisou: se você sair agora que entrei, pode pegar mal pra você. Como eu estava tendo amigdalite de repetição, achei por bem fazer o procedimento. Quando voltei, poucos dias depois, fui demitida. Desde então, virei freelancer e, aos poucos, fui deixando de trabalhar para as agências. Hoje falo pelos que não tiveram a mesma sorte que eu.
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