quinta-feira, 31 de agosto de 2023

HADDAD ESTÁ CORRETO SOBRE A META FISCAL

Felipe Salto, O Estado de S. Paulo

Os defensores da mudança da meta de resultado primário querem mergulhar fundo na lassidão fiscal

Interrompo a sequência de artigos sobre a reforma tributária para retornar na próxima quinzena. É hora de falar da meta fiscal de 2024. A confusão iniciada no Congresso em torno desse tema é preocupante e deve ser neutralizada. O ministro Fernando Haddad está correto em reafirmar o compromisso de zerar o déficit público no ano que vem. No arcabouço fiscal, o rompimento da meta de resultado primário (receitas menos despesas sem contar os juros da dívida pública) é parte da regra do jogo. Há sanções previstas.

Desde 1999, o Brasil adota um sistema de metas anuais para o déficit ou superávit primário. Ficou conhecida como a terceira perna do chamado tripé macroeconômico, à época: taxa de câmbio flutuante, metas à inflação e responsabilidade fiscal. Resultado: uma década de controle da dívida pública. Em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal formalizou o procedimento, ao prever a fixação de metas anuais na Lei de Diretrizes Orçamentárias, a LDO.

Naquela lógica, para ter claro, descumprir a meta anual seria crime de responsabilidade, já que não havia sanção explícita ou qualquer tipo de gatilho ou de plano B no regramento vigente. Vale dizer, em todas as ocasiões em que o risco de descumprimento se mostrou elevado, os diferentes governos mandaram propostas de alteração da LDO para o Congresso, modificando a meta original. Em outros casos, lançou-se mão de expedientes criativos, sobre os quais já escrevia neste jornal em 30 de novembro de 2009, em parceria com o ex-ministro Maílson da Nóbrega.

O teto de gastos, por sua vez, inserido na Constituição em 2016, também funcionava assim. Fosse maculada, essa regra constitucional, mais forte do que a meta de resultado primário, resultaria em crime de responsabilidade. Essa rigidez acabou desembocando numa porção de emendas à Constituição, de modo a contornar a regra que, como se vê, fora mal desenhada.

Na lógica do novo arcabouço fiscal, já aprovado pelo Congresso Nacional, tem-se uma mescla das regras anteriores. Por isso, elogiei desde o início: boa inovação. A saber, o arcabouço tem dois pilares: um limite para os gastos, corrigido por 70% da variação passada da receita; e uma regra de resultado primário, com metas anuais fixadas na LDO.

A diferença em relação ao regime anterior (meta de primário e teto de gastos) é que, sob o arcabouço, o rompimento da meta de primário dispara duas sanções automáticas: 1) a redução do fator de 70% para 50%, dois anos à frente, restringindo a taxa de crescimento das despesas primárias; e 2) a aplicação de gatilhos para conter o aumento do gasto, conforme artigo 167-A da Constituição federal, já no ano seguinte ao da não observância da meta. Criou-se, portanto, um cordão umbilical entre os dois eixos.

Essa flexibilidade é desejável, a priori, de acordo com a própria literatura acadêmica disponível a esse respeito. Contudo, cabe explicar que a meta de resultado primário não pode ser simplesmente descumprida. Nada disso. Primeiro, o governo só está autorizado a usar dessa prerrogativa quando comprovar ter promovido todo o corte de gastos (contingenciamento) possível. Segundo, o rompimento, como expliquei, conduz à maior limitação do gasto à frente. É uma nova lógica a ser testada, essência do arcabouço. O mecanismo é arguto, pois evita fórmulas draconianas e impraticáveis, capazes apenas de animar os mercados por algum (pouco) tempo.

Vamo-nos entender, o balão de ensaio sobre a mudança na meta fiscal não tem outro objetivo senão aumentar as possibilidades para gastar além do necessário e do possível. O tema surgiu de modo atabalhoado e, pior, no seio da discussão das diretrizes orçamentárias pelo Congresso. Como jabuti não sobe em árvore, é evidente que a meta dos incautos é, na verdade, estimular as forças gastadoras de sempre a avançarem sobre o governo, para que abandone seu recémnascido programa fiscal.

Não há qualquer sentido em mudar a meta de 2024, sobretudo neste momento, se o próprio arcabouço já contempla a hipótese do não cumprimento. Não atingir a meta fiscal, como bem disse o secretário de Política Econômica Guilherme Mello, não significa romper com o arcabouço. Se as medidas de aumento de receitas pretendidas pelo governo não prosperarem, por inépcia do Congresso (é bom que se diga), é muito provável que o déficit primário estoure a banda de 0,25% do PIB (a meta é igual a zero, mas há um limite inferior dessa magnitude) e, neste caso, as sanções do arcabouço terão de ser ativadas. Nossa projeção, na Warren Rena, aliás, é de um déficit de 0,9% do PIB para 2024. E daí? Cumpra-se a regra. Mudar não passa de uma arapuca engendrada pelos gastões.

Afinal, qual seria a razão para jogar a toalha agora? O risco de romper a meta? Ora, mas romper a meta equivaleria a endurecer a política fiscal, dentro dos parâmetros do arcabouço, cumprindo-o de cabo a rabo. É uma falácia, portanto, cujo objetivo é turbinar as veleidades expansionistas.

Os defensores da mudança da meta de resultado primário querem mergulhar fundo na lassidão fiscal. É preciso zelar pelo recém-nascido arcabouço e fulminar essa esparrela tosca sobre a meta de 2024. Haddad e sua equipe estão corretos. Todo meu apoio a eles.

*Economista-Chefe da Warren Rena, foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo

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