sexta-feira, 3 de novembro de 2023

VIETNÃ DE NETANYAHU FAZ BIDEN AJUSTAR POSIÇÃO

Marcos Augusto Gonçalves, Folha de S. Paulo

Presidente perdeu popularidade com apoio incondicional a uma ofensiva sangrenta em Gaza

Depois de uma entrada em cena valente, quando se apressou em declarar apoio incondicional a Netanyahu e a afastar a ideia de uma pausa humanitária no conflito em Gaza, o presidente norte-americano, Joe Biden, desceu uma oitava em seu garganteio.

A perspectiva da faixa se transformar num Vietnã para Netanyahu desenhou-se rapidamente nas divisões da opinião pública internacional, com a multiplicação de críticas aos riscos de uma reação desproporcional e indiscriminada após o ataque sórdido do Hamas.

Vozes se levantaram não só no mundo islâmico, mas também no Ocidente. O relativo consenso em torno de Israel quebrou-se mesmo entre setores judeus, que sentiram a estupidez terrorista, mas não fecharam com a política fundamentalista e brutal representada por Netanyahu.

Os protestos, com perspectiva humanista e pacífica, logo apareceram nas ruas e nas redes sociais, em vários cantos do mundo, Europa, Estados Unidos ou América Latina. Não em meu nome, libertem os reféns, cessar-fogo são as hashtags divulgadas por judeus preocupados com um desastre em Gaza. Artistas de Hollywood, de diferentes etnias e religiões, também assinaram uma carta pedindo que a Casa Branca defendesse um cessar-fogo.

É difícil ver nessas manifestações simplesmente antissemitismo e apoio a terroristas. Como bem observou Glenn Greenwald em recente coluna, não é "fair" que críticas às políticas de Israel sejam automaticamente transformadas em defesa do Hamas e projeto de eliminação do país.

As movimentações em curso lembram alguma coisa do ambiente que cercou a Guerra do Vietnã, aquela que gerou o slogan "make love, not war", levou John Lennon a escrever "Imagine" e condenou Mohammad Ali à prisão por recusar-se a se alistar para o combate.

Naquela época, quando não havia internet, a TV e parte significativa da imprensa ecoavam o nonsense de uma guerra entre a maior potência militar do planeta e guerrilheiros misturados a civis num pequeno país asiático. Tudo em nome dos valores do mundo livre contra o avanço comunista. Os americanos se dividiram diante dos massacres, da falta de perspectiva de paz e dos corpos ensacados que retornavam à pátria.

Biden, inicialmente disposto a ser mais realista que o rei e mostrar-se mais intrépido do que seus rivais republicanos no apoio à contra-ofensiva israelense, sentiu a água subir nas relações diplomáticas, nas preocupações humanitárias internacionais e também no eleitorado americano e em seu próprio partido. Agiu para abrir a fronteira com o Egito e tentar moderar o ímpeto da resposta israelense.

Pesquisa Gallup que mede mensalmente a aprovação do mandatário americano mostrou queda em outubro. O presidente perdeu pontos entre americanos adultos e no Partido Democrata. Escreveu Megan Brenan, analista do instituto:

"A demonstração imediata e decisiva de Biden de apoio a Israel após os ataques do Hamas em 7 de outubro parece ter desanimado alguns membros do seu próprio partido, resultando na pior avaliação que os democratas fizeram do presidente desde que assumiu o cargo. O índice geral de aprovação de Biden também corresponde ao seu nível pessoal mais baixo".

O movimento da Casa Branca em direção às expectativas humanitárias e à retomada da proposta de solução de dois Estados –que é, aliás, a posição americana oficial– vão ao encontro de análises sobre novas configurações em gestação na política mundial.

Num artigo no The New York Times, o colunista Ross Douthat sugere que a guerra prenuncia alguma reformatação nas relações internacionais em face de questões como a emergência de uma "rua árabe" no mundo ocidental, a radicalização do progressismo, a resiliência de um sionismo cristão e a instabilidade das relações europeias com Israel.

O mais difícil é imaginar que tipo de arranjo surgirá adiante, na hipótese provável de Netanyahu atolar em seu Vietnã e ser expelido no próximo ciclo político.

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