Presidente deveria ter a humildade de se desculpar diante do mundo
O Brasil sempre foi um refúgio para perseguidos de outras partes do mundo. Recebeu e integrou à sociedade imigrantes de todas as origens nacionais, étnicas e religiosas, entre os quais árabes (cristãos e muçulmanos) e judeus. Essa característica acolhedora tradicionalmente deu à diplomacia brasileira uma posição privilegiada de equilíbrio em relação aos conflitos recorrentes no Oriente Médio. Atos e declarações recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, põem em xeque esse equilíbrio, agridem os fatos e, no mínimo, sugerem que ele desconhece a História.
Na tentativa de criticar as ações de Israel na Faixa de Gaza, Lula fez um paralelo frequente entre os antissemitas, que ofende não somente os judeus, mas as consciências justas do mundo todo. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando o Hitler resolveu matar os judeus”, disse Lula. A comparação descabida da guerra em Gaza com o Holocausto que exterminou 6 milhões de judeus na Segunda Guerra recebeu apoio do grupo terrorista Hamas, que agradeceu a Lula nas redes sociais. Isso diz tudo.
A declaração de Lula destoa da posição que ele próprio emitiu na véspera em seu discurso na 37ª Cúpula da União Africana, quando considerou o momento “propício” para resgatar tradições humanistas. “Ser humanista hoje implica condenar os ataques perpetrados pelo Hamas contra civis israelenses e demandar a libertação imediata de todos os reféns. Ser humanista impõe igualmente o rechaço à resposta desproporcional de Israel”, afirmou.
É plenamente legítimo que Lula critique Israel por crer exagerada sua resposta ao ataque terrorista de 7 de outubro do ano passado, o maior morticínio de judeus depois da Segunda Guerra. Mas é inaceitável comparar a reação israelense ao extermínio genocida promovido pela Alemanha nazista e seus Estados-satélites contra os judeus. Imaginar qualquer equivalência moral entre os nazistas e os judeus é uma ofensa à memória dos mortos no Holocausto, à dos sobreviventes e de seus descendentes, em Israel ou em qualquer parte, inclusive no Brasil. E a todos no mundo com consciência moral.
Lula afirmou, com base em números divulgados pelo Hamas, que o conflito em Gaza vitimou até agora “quase 30 mil palestinos em Gaza, em sua ampla maioria, mulheres e crianças” (Israel afirma ter matado cerca de 11 mil terroristas). Pois, durante o Holocausto, apenas em dois dias de setembro de 1941, 33.771 judeus foram fuzilados na ravina de Babi Yar, perto de Kiev, na Ucrânia. Quando os campos de extermínio do Leste Europeu funcionavam a pleno vapor, em 1942, eram envenenados nas câmaras de gás e queimados nos fornos crematórios 15 mil judeus por dia. Por mais que as ações israelenses em Gaza sejam condenáveis — e sobram motivos para condená-las —, não há termo possível de comparação. Não é uma questão aritmética: o Holocausto não pode e não deve ser banalizado.
Lula deveria saber disso perfeitamente, pois visitou em seu governo anterior o mesmo Museu do Holocausto em Jerusalém a que o embaixador brasileiro foi convocado para levar uma reprimenda do chanceler israelense, Israel Katz. Numa das instalações mais pungentes do museu, um áudio reproduz o nome de cada uma entre o 1,5 milhão de crianças judias mortas pelo nazismo. Katz declarou Lula persona non grata e exigiu um pedido de desculpas. Alguém pode afirmar que dar uma reprimenda em um museu talvez seja incabível — mas o Brasil se expôs a isso diante da afirmação tão deformada de Lula.
A declaração de Lula não é fato isolado. Têm sido frequentes — sempre disfarçadas pelo biombo conveniente do antissionismo — as manifestações de teor antissemita oriundas de próceres do petismo ou do governo. O ex-presidente do PT José Genoíno chegou a defender um absurdo “boicote a empresas de judeus”, sem elaborar o sentido de suas palavras. Criticado, não apenas não se retratou nem pediu desculpas, como ainda foi objeto de um ato de desagravo na reunião de um movimento ligado ao PT. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos, sempre cioso de criticar o discurso de ódio contra minorias, classificou como “censura” o processo movido pela Confederação Israelita do Brasil contra um jornalista que exaltou os ataques do Hamas e comparou israelenses a ratos, repetindo uma imagem clássica do antissemitismo.
Em desafio à posição equidistante e de equilíbrio esperada do Brasil, Lula também empenhou seu apoio à ação movida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, em Haia, acusando Israel de violar a Convenção do Genocídio por suas ações em Gaza. Em seu discurso no último sábado, ele nem esperou o julgamento do processo, repleto de acusações questionáveis ou descabidas. Afirmou taxativamente que “na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”. Curioso que tenha sido mais cauteloso com a opinião da Justiça ao justificar seu silêncio sobre a morte — em circunstâncias para lá de suspeitas — do líder oposicionista russo Alexei Navalny, principal adversário político de Vladimir Putin: “Se a morte está sob suspeita, você tem que primeiro fazer uma investigação para saber do que o cidadão morreu. (...) Senão, você julga agora que foi alguém que mandou matar e não foi, depois você vai pedir desculpas”.
Lula pode acreditar que, com suas palavras, apenas defende uma causa justa, a criação do Estado palestino. Ou que elas são necessárias para alinhar o Brasil a outros países emergentes no combate às “potências imperialistas” que povoam o imaginário da esquerda. Ou mesmo que elas ajudarão a aliviar o sofrimento da população palestina em Gaza. Todos esses sentimentos são compreensíveis. Mas as críticas às ações do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, por mais necessárias e pertinentes que sejam, não podem abrir flanco a ódios e preconceitos que não devem ter espaço numa democracia plural. Sejam suas declarações resultado de antissemitismo autêntico ou apenas de ignorância atroz, elas são incompatíveis com a atitude que se espera de um presidente da República e envergonham o Brasil. Só um pedido de desculpas inequívoco, sem ressalvas, poderá reparar o erro e dirimir essa dúvida.
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