Entender a alocação do trabalho é crucial para compreender a pobreza em nível individual e as disparidades de renda e bem-estar em escala macroeconômica
A busca pela compreensão do que torna algumas nações ricas e outras pobres remonta aos primórdios da Economia enquanto área do pensamento. Assim como a ideia de que a organização do trabalho e sua produtividade são fundamentais para essa análise.
O fator trabalho representa o principal recurso de produção dos menos favorecidos e é, ainda hoje, um insumo essencial em todas as atividades produtivas e de lazer. Entender a alocação do trabalho em uma sociedade é crucial para compreender a pobreza em nível individual e as disparidades de renda e bem-estar em escala macroeconômica.
Recentemente, Oriana Bandiera, professora de Economia da London School of Economics, com colaboradores, montaram uma base de dados chamada “Jobs of the World Database” (jwd.iza.org). Esta foi construída a partir de observações individuais, combinando informações de duas fontes: os microdados dos Censos Demográficos de diversos países, disponibilizados no IPUMS-International, e da Pesquisa Demográfica e de Saúde (Demographic Health Surveys), que contêm informações individuais de vários países com baixo nível de renda média e que não estão cobertos pelo IPUMS-International.
Há um esforço da equipe para harmonizar as diversas bases de dados, a fim de torná-las comparáveis ao longo do tempo e entre os países. A versão preliminar do “Jobs of the World Database” abrange 115 países, observados em média quatro vezes entre 1990 e 2019.
A análise dos dados revela três grandes transformações do trabalho ao longo do desenvolvimento desses países. Primeiro, a mercantilização, que ocorre à medida que o trabalho deixa de ser realizado de forma não remunerada e passa a ser comercializado.
Conforme os países se desenvolvem, uma parte maior da produção é comercializada e novas ocupações - como carpinteiros, costureiros, tecelões - tornam-se cada vez mais comuns, oferecendo serviços que anteriormente eram realizados no âmbito doméstico. Também há uma grande participação de autônomos na força de trabalho, que ofertam serviços antes oferecidos domesticamente.
A segunda transformação é o surgimento das empresas como a principal entidade organizadora do trabalho. Neste estágio, o trabalho por conta própria é substituído pelo assalariado. Em estágios iniciais de desenvolvimento, mesmo quando a maior parte da produção é comercializada, a maioria das pessoas trabalha de forma autônoma, enquanto nas economias mais desenvolvidas a maior parte do trabalho remunerado é organizado em empresas.
A terceira transformação ocorre dentro das empresas com o aumento da especialização do trabalho, na qual se observa uma expansão na variedade de ocupações dentro da mesma empresa. Com o surgimento de grandes corporações, elas geram ocupações especializadas por meio da implementação de hierarquias de gestão e da subdivisão do trabalho em cada nível hierárquico, de modo que cada trabalhador realize menos tarefas distintas.
Em países desenvolvidos, onde a maioria das pessoas trabalha em uma empresa, o número de ocupações diferentes é bem mais elevado do que em países em desenvolvimento. Em países com as mais baixas médias de renda, 90% dos trabalhadores exercem apenas 10 ocupações, conforme a Classificação Internacional Padrão de Ocupações com mais de 100 ocupações. Por outro lado, nos países de maior renda média, a mesma massa de 90% dos trabalhadores exerce mais de 50 ocupações diferentes.
Há várias explicações para essas diferenças. Uma delas é que a falta de coordenação nos mercados dificulta o crescimento das empresas em países pobres. As empresas só se expandem se houver um mercado para seus produtos e serviços, mas tais mercados dependem da existência de outras empresas. Além disso, a formação em uma determinada ocupação só é vantajosa se várias empresas demandarem essa ocupação específica. Esta é uma ideia antiga em Economia, que enfatiza problemas de coordenação e de demanda, e que a complementaridade de diferentes indústrias oferece a base para políticas industriais. Vale citar o trabalho de Paul Rosenstein-Rodan (1943), a teoria O-Ring do Nobel de Economia Michael Kremer (1993) e artigo recente do professor de Princeton Ernest Liu (2019).
Relacionado também a este argumento está a ideia de subsídio à indústria nascente, já que em mercados integrados internacionalmente seria difícil o desenvolvimento de certas atividades que poderiam gerar demanda interna para outras.
Um argumento alternativo é que o surgimento de grandes corporações depende de ambiente de negócios favorável, com baixo risco de expropriação de investimentos e com alta proteção aos credores para que eles possam investir em projetos de longo prazo e com alto risco e retorno que certas atividades requerem. Além disso, a especialização em determinadas ocupações depende do capital humano e treinamento da força de trabalho, já que diversas ocupações requerem um nível elevado de especialização. Por exemplo, a indústria farmacêutica depende da disponibilidade de cientistas, mas também de altos investimentos iniciais com retornos incertos.
Consequentemente, os países em desenvolvimento deveriam focar esforços em políticas para melhorar o arcabouço institucional de negócios, a previsibilidade política e macroeconômica e concentrar o investimento público na melhoria da capacidade individual das pessoas.
Na teoria é relativamente simples justificar políticas setoriais e subsídios a certos setores, inclusive entre os economistas “neoclássicos”. Há também exemplos de políticas setoriais que tiveram resultados positivos, inclusive no Brasil, porém a narrativa empírica não deve ser baseada apenas em alguns exemplos. A grande questão entre os economistas é de fato no desenho dessas políticas para que elas não sejam capturadas por grupos de interesses e que a alocação dos incentivos não tenha base econômica e social.
No entanto, os países com alto nível de desenvolvimento e elevada capacidade produtiva de sua força de trabalho sempre possuem instituições que facilitam a criação e o crescimento de suas empresas em um ambiente de integração e competição internacional. Contudo, o risco de captura das instituições por interesses privados é constante. “Salvar o capitalismo dos capitalistas” é fundamental para o dinamismo dos negócios e o progresso das nações.
*Tiago Cavalcanti é professor titular de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP
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