Ele portava na orelha direita o curativo branco, sua condecoração de herói do destino e quase mártir
A coreografia levou a assinatura do comunicador de massas intuitivo. Donald Trump sempre exerceu controle detalhista da própria imagem e, muito antes de entrar na política, aprendeu a dominar recursos imagéticos de impacto. Não foi diferente na última noite da Convenção Nacional do Partido Republicano, quando fez seu aguardado discurso de candidato oficial. Mandou escurecer as luzes na arena Fiserv Forum de Milwaukee e emergiu no palco a passos lentos, entre colunas de neon que projetavam cinco letras monumentais: T, R, U, M, P.
Portava na orelha direita o curativo branco, sua condecoração de herói do destino e quase mártir. Cinco dias antes, por um átimo, o candidato quase foi morto com um tiro de AR-15 na cabeça perante uma multidão de apoiadores. O atentado que estarreceu os Estados Unidos e o resto do mundo fez dele um candidato a predestinado.
Iniciou sua fala fazendo um dramático e minucioso relato do que sentiu, pensou, viu, imaginou e concluiu ao sair com vida do atentado. Enquanto descrevia o episódio a uma plateia cativa e emocionada, projeções múltiplas de seu rosto ensanguentado e punho cerrado emolduravam o palco. Ao final, concluiu com ardor na voz:
— Eu me senti seguro porque tinha Deus a meu lado.
Amém. Aleluia. Antes de mudar de assunto, Trump ainda beijou o capacete e alisou a jaqueta de bombeiro que pertenceu a Corey Comperatore, o pai de família atingido na cabeça por um dos disparos do franco-atirador. Os dois objetos plantados no palco haviam sido emprestados pela viúva da vítima, que dias antes declinara atender um telefonema de condolências do presidente Joe Biden.
— Nos erguemos juntos ou caímos desunidos — prosseguiu, em voz mansa, alimentando a expectativa de incautos de que, tendo visto de perto a cara da morte, pudesse ter se convertido à conveniência de um desarmamento verbal.
Não foi o que se ouviu. “Paz, estabilidade e harmonia no mundo” coabitaram com as velhas tiradas contra a “invasão de imigrantes ilegais, criminosos, estupradores que vêm roubar nossos empregos”. Como sempre, abordou a surrada “farsa eleitoral”, reclamou dos “chamados Aliados”, elencou o “tremendo fracasso” do governo Biden. Num mesmo sopro, disse estar falando “com grande humildade”, enquanto anunciava suspender a produção de carros elétricos e dar prioridade à perfuração de poços de petróleo. Tudo salpicado da habitual enxurrada de superlativos e acusações de perseguição judicial.
Como resumiu o jornalista americano Eric Lutz, foi um discurso de união de sentido único:
— União comigo, ou sai da minha frente.
A própria redação final do programa partidário aprovada na convenção deu a dimensão da disposição de Trump para atropelar o que lhe parecer estorvo. Já nas semanas anteriores, fez saber aos autores do festejado Projeto 2025 — originário de 34 cabeças pensantes da ultraconservadora Heritage Foundation, mais 140 ex-assessores de próprio Trump — que o catatau de 922 páginas não serviria de linha mestra para seu futuro governo. Em Milwaukee, surpreendeu o grupo de delegados designados para debater o programa partidário apresentando um texto enxuto, praticamente já acabado, sem muito espaço para debate. Aos delegados que haviam levado pastas recheadas de sugestões, restou concordar. Assim se forja um autoritário.
A grande surpresa da convenção, contudo, atende pelo nome de Usha Vance, née Usha Chilukuri, mulher do senador J.D. Vance, que Donald Trump tirou da cartola para compor sua chapa raiz. Na eleição de novembro próximo, os republicanos votarão em dois homens brancos e machos para presidente e vice. As semelhanças terminam aí. Trump é velho, Vance tem 39 anos; por ter nascido em família influente, Trump escapuliu de servir no Vietnã, enquanto Vance, nascido em família disfuncional e sem recursos, foi fuzileiro naval no Iraque; Trump casou três vezes, sempre com mulheres-troféu, sem formação — Usha fez Direito na Universidade Yale (onde conheceu o marido) e História em Cambridge, é vegana e atua como litigante em grande escritório de advocacia transnacional.
Sobretudo, Usha Vance é filha de imigrantes indianos, o que, para muitos supremacistas do entorno de Trump, é sinônimo de traição. Alguns divulgadores da teoria conspiratória de um fantasioso plano que visa a substituir a população americana por hordas de imigrantes já se manifestaram.
— Duvido que um cara com mulher indiana possa apoiar a identidade dos brancos — avisou o extremista Nick Fuentes em seu podcast radical.
Sem falar que Vance é um duplo convertido — atribui seu “retorno à vida com Cristo” ao amor pela mulher, e a recente, ferrenha, defesa do trumpismo a seu amadurecimento político.
Para o ex-presidente autoungido a imorrível, a semana deu um respiro. Para seu adversário Joe Biden, isolado com Covid numa casa de praia em Delaware, a vida política está por um fio. Que tempos!
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