domingo, 21 de julho de 2024

O MEDO DAS URNAS

Merval Pereira, O Globo

É compreensível que o governo brasileiro, qualquer governo que se guia pelas regras internacionais, precise manter sua liderança na América do Sul, mas para tal não é preciso assumir as vergonhosas ações das ditaduras

Mesmo que Maduro não fosse seu candidato preferido, o presidente Lula estaria agora mais empenhado do que nunca na sua vitória, para não ter que enfrentar o dilema de quem se mete a apoiar ditadores: evitar o “banho de sangue” prometido pelo ditador venezuelano em caso de derrota. Caso ela venha, o que não parece impossível a esta altura, o presidente brasileiro, que se diz um democrata, terá que intervir para que a Venezuela não se torne uma ditadura escancarada.

Não que Lula não apoie ditaduras, como mostra seu comportamento com Cuba, ou Nicarágua. Esses três exemplos, aliás, são de países que fizeram revoluções de esquerda para afastar governos autoritários de direita, presumidamente para defender o povo explorado. No que foram apoiados entusiasticamente em determinado momento histórico. Agora são eles os ditadores de esquerda que exploram o mesmo povo. De heróis passaram a vilões, e colocam governos como o de Lula em uma enrascada: como dizer-se um democrata quando os amigos se tornam ditadores?

Lula, sem ter o que dizer diante da ameaça de Maduro de que sua derrota poderá gerar “um banho de sangue”, saiu-se com essa: “Eles que elejam quem eles quiserem”. Como assim, se os principais líderes oposicionistas da Venezuela estão presos ou impedidos de disputar a eleição presidencial? Mesmo assim, o oposicionista que sobrou, Edmundo Gonzales, tem chances reais de vencer as eleições, e por isso Maduro espalha suas ameaças dias antes do pleito.

O assessor especial de Lula para assuntos internacionais, Celso Amorim, que hoje assume o papel que um dia já foi de Marco Aurelio Garcia quando Amorim era o chanceler brasileiro, tentou amenizar a fala de seu malvado preferido, dizendo que Maduro se expressou mal ao falar em “banho de sangue”, quando queria se referir à luta de classes. Mesmo que tivesse sido um ato falho, revelaria o que Maduro pensa da “luta de classes”, uma associação da guerra como a continuidade da política por outros meios, como já disse Clausewitz.

Fica cada vez mais difícil para o governo brasileiro sustentar que na Venezuela há “democracia até demais”, como já disse Lula. Uma frase como a dita por Maduro elimina qualquer possibilidade de classificá-lo como “um democrata”, ou seu governo como uma “democracia”. O “banho de sangue” prometido, quando as pesquisas eleitorais mostram a oposição com praticamente 60% dos votos, pode vir a ser uma desculpa para adiar as eleições do dia 28, o que escancararia o caráter simplesmente simbólico da ida às urnas, pois o resultado contrário ao governo não seria aceito.

Já o fato de não ser possível a Maduro organizar uma eleição em que ele não correria chance de perder, como fazem outras ditaduras pelo mundo, já é sinal de sua fraqueza política. Se saberá qual a fortaleza militar quando se aproximarem as eleições, e as pesquisas continuarem a prever uma vitória da oposição longe de um empate técnico.

É certo que o pragmatismo na política externa é incontornável, por isso a chamada maior democracia do mundo, os Estados Unidos, se submetem a uma relação assimétrica com a Arábia Saudita, por exemplo, tendo dado imunidade ao ditador Mohammad bin Salman, acusado pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi. Mas, pelo menos, os órgãos de inteligência dos Estados Unidos desvendaram o caso e divulgaram relatórios, e nunca nenhum dirigente americano garantiu que a Arábia Saudita era uma democracia. É compreensível que o governo brasileiro, qualquer governo que se guia pelas regras internacionais, precise manter sua liderança na América do Sul, mas para tal não é preciso assumir as vergonhosas ações das ditaduras.

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