Estratégia de
Marçal à Prefeitura de São Paulo se assemelha à interação dos personagens da
ópera Rigoletto
Ante a admissão de Pablo Marçal de que surfa na idiotia, cabe perguntar se parte da Paulicéia está fora de si, ou desvairada para além dos versos modernistas de Mário de Andrade. A resposta comporta uma distinção entre idiota e bobo da corte, nisso ajuda a ópera "Rigoletto", de Verdi. Na corte de um Duque veneziano, Rigoletto, o bufão, não é nenhum parvo, mas alguém que sabe o que quer e, no caminho, combina intrigas com crime. Idiotas são os alvos de suas tramoias, exatamente como os seguidores de Marçal, por ele assim, aliás, referidos. Marçal está mais para Rigoletto do que para um microcéfalo bolsonarista.
É que o bobo da corte divertia por meio de verdades espirituosas, mas também incômodas, no que punha em risco o próprio pescoço. Era o avesso tolerado do rei. Agora, no universo paralelo das redes, sem centralização monárquica, desenha-se uma espécie de corte composta por financistas, empresários, evangélicos, gente do agronegócio e pacóvios "libertários", abertos à novidade de um esperto com pele de bobo.
Novidade em rede, e não ruptura, é o abre-te-sésamo da extrema direita. Troque-se o barrete pelo boné de Bukele, a roupa de guizos por um terno ao gosto da Faria Lima e a botina por um sapatênis, para compor o figurino de bufão na corte virtual de ricos, ou aspirantes, desvairados. O que atrai é o nada: nula experiência prévia, repetição de não-assuntos, nenhuma proposta viável.
Mas ressurge o maquiavelismo de Rigoletto contra os evangélicos. Encastelado numa mansão de 900 metros, seu "Quartel do Reino de Deus", Marçal ataca o dízimo, argumentando que a religiosidade dos crentes é independente da religião organizada por templos. Incrível que pareça, está próximo do sociofilósofo alemão Georg Simmel, para quem religiosidade não provém de religião. Seria de outra natureza, uma mescla de devoção e de vida própria como vetores psíquicos das condutas religiosas. Em suma, a relação com Deus não é definida por igrejas.
Destrambelhos à parte, o bufão emergente emplacou dois ardis. Primeiro, arrebatou do capitão Bozo o berrante metafórico com que ele arrebanhava o gado. Segundo, ao expor o trambique financeiro dos pastores, convida ao cristianismo como lifestyle, sem religião. Para isso investe em "templos de garagem", núcleos de oração celulares, velha estratégia do comércio de cosméticos. "Oração" é eufemismo para cabalar voto nas igrejas-palanques. O que caracterizou a incipiente criação digital nos EUA, aqui desponta como criatividade beata.
Nada assegura a Marçal a gestão da maior cidade do país. Mas qualquer que seja o resultado das urnas, ele sai vitorioso na arena da ultradireita, por ter desbancado a idiotia bozolóide com a estratégia de Rigoletto: detrás da fachada de bobo da corte, a nostalgia da lama e o choque "redentor" de cursos afins à sua imersão na criminalidade de fraudes bancárias. O capitão Bozo foi superado no apetite por destruição que caracteriza o espírito extremista.
De todo modo, ai de ti, Paulicéia, por esse novo tipo de ópera-bufa, em que personagens reais ocupam palco, libreto e plateia para o desvario político numa sociedade que parece doente. A ópera séria sugere que Rigoletto seria uma figura do dia a dia. Mas a experiência mostra que bobo arrisca perder a graça: malandro demais se atrapalha. Talvez a proximidade com o colega Milei não leve a entoar nenhuma ária operística, mas a tocar um tango argentino, recomendação do poeta Manoel Bandeira (em "Pneumotórax") como epitáfio para uma doença terminal.
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