domingo, 1 de setembro de 2024

CIDADE TRIPARTIDA

Bernardo Mello Franco, O Globo

Nos 30 anos de 'Cidade Partida', um Rio que não aparece na propaganda eleitoral

A ampla vantagem de Eduardo Paes nas pesquisas esvaziou o interesse pela eleição para a Prefeitura do Rio. É pena, porque os cariocas arriscam perder uma chance valiosa de discutir os problemas da cidade. Na semana que passou, um seminário e um novo livro debateram os 30 anos do lançamento de “Cidade Partida”, de Zuenir Ventura. As conversas iluminaram temas que não devem aparecer na propaganda eleitoral.

O best-seller de Zuenir descreveu uma cidade traumatizada pela violência e anestesiada pela desigualdade. Para produzi-lo, o jornalista frequentou por dez meses a favela de Vigário Geral, palco de uma chacina que matou 21 pessoas em agosto de 1993. Depois do banho de sangue, o autor acompanhou dois movimentos que ensaiaram uma reação à barbárie. O Viva Rio, que mobilizou classe média, empresários e meios de comunicação, e o movimento da comunidade de Vigário, que tentava projetar sua voz além dos becos da favela.

“Houve um momento em que parecia que ia dar certo”, escreve o antropólogo Luiz Eduardo Soares, personagem do livro de Zuenir. Ele relembra as mobilizações pela paz e observa que “todos pareciam dispostos a conversar” para mudar os rumos da cidade. “Admito, fomos ingênuos”, confessa. “O acordo sonhado não aconteceu. Não veio a trégua. Nem a convergência.”

O antropólogo Rubem César Fernandes, líder do Viva Rio, reforça a crônica das oportunidades perdidas. Em 2013, quando o movimento fez 20 anos, ele chegou a declarar ao GLOBO que o Rio havia “saído do buraco”. A cidade vibrava com a proximidade da Copa e da Olimpíada, e o governo apresentava a UPP como solução para a segurança pública.

“Aí eu acho que a coisa desandou, primeiro com o Sérgio Cabral e outros governantes sendo presos”, reflete Fernandes, em entrevista para o novo livro. “A interpenetração entre crime organizado ao quadrado e corrupção política derrubou os avanços do Rio. Não há mal que não tenha remédio, mas as patologias se tornaram mais diversas e intratáveis na última década”, sentencia.

Fundadora da ONG Redes da Maré, a pesquisadora Eliana Sousa Silva relata seu desconforto inicial com o termo “Cidade Partida”. “Mais do que uma cidade partida, o Rio é uma cidade desigual”, defende. Criada na Nova Holanda, uma das 15 favelas da Maré, ela sustenta que as políticas públicas precisam integrar em vez de segregar. “Não podemos nos curvar a ser simplesmente um lugar pensado para os turistas, para os ricos, lembrado por suas belezas naturais e pelo Cristo de braços abertos para o lado privilegiado”, escreve.

O novo livro traz uma entrevista inédita de Zuenir. Aos 93 anos, ele lembra como o espírito de repórter o levou a cruzar o túnel em direção a Vigário Geral. “Era a curiosidade de um cidadão de conhecer o outro lado da cidade”, explica. “O Rio sempre foi uma cidade que tem vozes muito fortes, mas tem também outras vozes escondidas, que não apareciam. Então, eu estava descobrindo outras vozes da cidade.”

Três décadas depois do sucesso de “Cidade Partida”, o jornalista faz um diagnóstico pessimista da realidade atual. “Sob vários aspectos, o Rio piorou”, afirma. “Hoje há uma presença maior dessas forças do mal. Há uma variedade de males, de facções, de milícias, de narcomilícias, que não existiam e que estão muito atuantes e poderosas. As pessoas dizem: ‘Ah, não é mais cidade partida’. Eu respondo: é tripartida”.

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