terça-feira, 3 de setembro de 2024

FECHAR O X É UMA TRAGÉDIA, MAS MORAES NÃO TINHA ESCOLHA

Pedro Doria, O Globo

No momento em que Elon Musk escolheu parar de acatar decisões judiciais, plataforma não poderia mais operar no país

A decisão de fechar o X é uma tragédia. Vinte milhões de brasileiros com contas ativas na plataforma foram privados do espaço onde discutiam regularmente sobre toda sorte de assunto. Tecnologia, ciência, celebridades, futebol e, sim, política. Quando uma democracia cassa o direito de 10% da sociedade conversar no ambiente que escolhe, três liberdades essenciais, cláusulas pétreas da Constituição, são extirpadas: o direito à livre expressão, à livre associação e, se considerarmos que o ambiente digital é um espaço real, a ir e vir. A decisão do ministro Alexandre de Moraes, ratificada pela Primeira Turma do STF, era esperada. Nem por isso é menos grave.

Neste momento, Moraes não tinha escolha. E esse é um problema que o Fla x Flu da política não nos permite debater. É preciso ter uma opinião binária, contra ou a favor. Ver por inteiro desagrada a todos. No momento em que Elon Musk escolheu parar de acatar decisões judiciais, o X não poderia mais operar no país. Mas quem vê um lance apenas da partida não compreende o que foi o jogo. Musk é um demagogo a serviço do movimento antidemocrático de direita no mundo. Quer o espetáculo que Moraes lhe permitiu encenar. É um dos homens mais ricos do mundo, não está nem aí para prejuízos no X. Obedece sem piscar a ordens judiciais de ditaduras como TurquiaChina ou Arábia Saudita. Cortou repentinamente o acesso dos ucranianos à internet via Starlink para ajudar os russos na guerra. A Musk interessa, politicamente, fazer teatro de defesa da liberdade de expressão nalgum canto do mundo que sirva a seus propósitos. E, ao dar continuadas ordens absurdas para cassar contas em segredo de justiça, Moraes lhe entregou a faca e o queijo nas mãos.

Sim. Algumas são ordens absurdas. Muitos acreditam que esse é o jeito de defender a democracia. Não é. Sacam do bolso o argumento do Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper, sem jamais terem lido o que o filósofo austríaco de fato escreveu. Calar todas as vozes com alcance da extrema direita, mesmo quando são meros aloprados iletrados como o apresentador Monark, não diminui os riscos contra a democracia. Tem, pelo contrário, o potencial de aumentá-los.

Quando o Muro de Berlim caiu e se iniciou a democratização do Leste Europeu, os americanos abandonaram o realismo kissingeriano, ideologia dominante em sua política externa, em nome de duas correntes em disputa. Uma, o liberalismo de Bill Clinton e Barack Obama. Outra, o neoconservadorismo de George W. Bush. Ambos acreditavam que os Estados Unidos tinham a ganhar se aumentasse o número de democracias no mundo. Oportunidades comerciais aumentariam, mercados se abririam, o número de conflitos armados diminuiria. A diferença é que liberais defendiam que uma democracia só se estabelece de baixo para cima. Ou a sociedade deseja o regime, vai às ruas exigi-lo, ou a democracia é frágil e não dura muito. Os neoconservadores, não. Acreditavam que dava para impor a democracia de cima para baixo. Basta construir as instituições e pôr no poder as pessoas certas. 

O Iraque foi o caso exemplar dos neocons. Fracassou retumbantemente. Os liberais, em contrapartida, podem exibir como exemplos América Latina e Leste Europeu, ambos com longa história autoritária, em que a democracia se fincou e permanece, com raras exceções, desde a década de 1990.

A tese liberal não vinha da filosofia. Vinha do trabalho de cientistas políticos como Robert Dahl, Francis Fukuyama ou Larry Diamond, entre outros. O “espírito da democracia”, para usar a expressão cunhada por Diamond, exige ativa participação popular, dedicação ao regime e disposição de lutar por ele. Não eram e não são, esses acadêmicos, gente que vive no mundo das ideias. Estudam na prática como democracias ficam de pé, o que as faz estremecer. Ou cair. Democracias não são mero fruto de eventos históricos, condições estruturais da sociedade ou instituições fortes. Democracias acontecem quando uma sociedade as exige. Foi o que aconteceu aqui, no Brasil, em 1984. Quem viveu lembra.

Com Jair Bolsonaro cassado, o X fechado e a possível cassação da candidatura de Pablo Marçal, informamos a algo entre 20% e 30% dos brasileiros: sua voz precisa ser calada, suas escolhas devem ser ignoradas. Eles podem ser desagradáveis, mas ainda têm os mesmos direitos constitucionais de todos nós.

Moraes teve papel fundamental para impedir um golpe de Estado em 2022. Agora, lidera um movimento, sob amplo incentivo da esquerda, que corrói o espírito da democracia numa quantidade grande demais de brasileiros. Se gente demais da sociedade não acredita que a democracia lhe sirva, ela decai. É quando o povo não acredita na democracia que ela pode cair.

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