Linguagem dos mercados financeiros contemporâneos não descreve e muito menos “analisa objetivamente” um determinado estado de coisas, mas produz imediatamente significados “reais”
No livro “Power”, publicado em 1938, o filósofo e matemático Bertrand Russel observou: “A economia como uma ciência separada é irrealista e enganosa, se tomada como um guia na prática. É um elemento - um elemento muito importante, é verdade - de um estudo mais amplo, a ciência do poder”.
Entre os poderes da economia, brilha de forma intensa o Poder Performático da Linguagem. Apoiado no linguista John Austen, Christian Marazzi em seu livro “Capitale e Linguaggio” cuida das marchas e contramarchas da finança dos últimos 40 anos. Marazzi sublinha a natureza performativa da linguagem do dinheiro e dos mercados financeiros, indicando que a linguagem dos mercados financeiros contemporâneos não descreve e muito menos “analisa objetivamente” um determinado estado de coisas, mas produz imediatamente significados “reais”.
As comunicações entre os bancos centrais e os mercados financeiros são exemplos da “produção de realidade” pela linguagem. O domínio da finança, ou seja, o capitalismo reafirmado segundo sua “natureza” produziu o que Christian Marazzi chamou de “metamorfose antropológica do indivíduo pós-moderno”.
Diz Marazzi: é relativamente simples descrever o comportamento mimético-comunicativo das convenções coletivas típicas dos mercados financeiros. No capítulo XII da Teoria Geral, Keynes se vale dos concursos de beleza promovidos pelos jornais para descrever a formação de convenções nos mercados de ativos.
Os leitores são instados a escolher os seis rostos mais bonitos entre uma centena de fotografias. O prêmio será entregue ao participante cuja escolha esteja mais próxima da média das opiniões. Não se trata, portanto, de apontar o rosto mais bonito na opinião de cada um dos participantes, mas, sim de escolher o rosto que mais se aproxima da opinião média dos participantes do torneio.
Keynes introduz, assim, na teoria econômica, as relações complexas entre Estrutura e Ação, entre papéis sociais e sua execução pelos indivíduos convencidos de sua autodeterminação, mas, de fato, enredados no comportamento de manada.
Keynes, na esteira de Freud, introduz as configurações subjetivas produzidas pelas interações dos indivíduos no ecúmeno social das “economias de mercado”. O afã de realizar sem perdas o valor dos ativos se esbate no fragor das insuspeitadas e caprichosas evoluções e involuções da opinião coletiva. Os fâmulos dos mercados passam da euforia à depressão. É implacável o constrangimento dos indivíduos dos mercados, sempre amestrados sob o guante da conversão de seus valores particulares em dinheiro, a forma geral da riqueza.
Nesse percurso, o comportamento mimético dá origem, em suas conjeturas imitativas, a situações nas quais a busca coletiva da liquidez culmina na decepção de todos. A âncora que sustenta precariamente as ariscas subjetividades atormentadas pela incerteza da liquidez está lançada nas areias movediças da peculiar “sociabilidade” do capitalismo financeiro.
No livro “Capitalisme et Pulsion de Mort”, Gilles Dostaler e Bernard Maris afirmam que nem Freud, nem Keynes acreditam na fábula da racionalidade do indivíduo, tão cara aos economistas. “O indivíduo está imerso na multidão inquieta, frustrada, insaciável, sobre a qual pesa essa imensa pressão cultural, esse movimento ilimitado da acumulação...”.
A metamorfose do indivíduo pós-moderno aludida por Marazzi é um “salto de qualidade” no comportamento mimético examinado por Keynes. Os “avanços” nas formas de comunicação promovidas pelo desenvolvimento da mídia de massas e o uso das tecnologias de informação tornaram mais rápida e eficazmente perigosa a linguagem do dinheiro.
“Avanços” nas formas de comunicação tornaram mais rápida e eficazmente perigosa a linguagem do dinheiro
Marazzi afirma que “a racionalidade econômica governa a sociedade. Ela se impõe às outras formas de pensamento, a todos os outros modos de vida possíveis e determina a forma política mais adequada para representá-la funcionalmente”.
Na mídia impressa e na eletrônica, as matérias de negócios e economia disseminam os fetiches dos mercados financeiros “eficientes” embuçados na linguagem do saber técnico e esotérico. Os comunicadores “falam” a língua articulada conforme as regras gramaticais dos mercados. Assim, o capitalismo investido em sua roupagem financeira cumpre a missão de “administrar” a constelação de significantes à procura de significados, submetendo os cidadãos-espectadores aos infortúnios da domesticação e da homogeneização, decretados pelo “coletivismo de mercado”.
Os mercados de ativos da economia destravada não obedecem a normas da “eficiência alocativa” fundada na hipótese das expectativas racionais. Permanentemente à beira dos abismos da iliquidez, os possuidores de riqueza entregam-se ao comportamento mimético, próprio dos movimentos da manada.
A Psicologia das Massas de Sigmund Freud é um guia valioso para quem pretende compreender a sociedades contemporâneas. “A massa é extraordinariamente influenciável e crédula; é desprovida de crítica; para ela, o improvável não existe. Ela pensa por imagens que se evocam associativamente umas às outras, tal como ocorre ao indivíduo nos estados do livre fantasiar, e nenhuma instância razoável afere sua correspondência com a realidade. Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exagerados. Assim, a massa não conhece nem a dúvida nem a incerteza. Ela vai logo ao extremo; a suspeita manifestada logo se transforma em certeza irrefutável, um germe de antipatia se transforma em ódio selvagem”.
Um amigo sugeriu a leitura do Estouro da Boiada, abrigada em Os Sertões, obra prima de Euclides da Cunha. Aí vai um excerto:
“De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, enredam-se, traçam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura...”.
A boiada arranca.
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