terça-feira, 3 de setembro de 2024

POPULISMO CRESCE NA EUROPA TAMBÉM PELA FALTA DE CONFIANÇA NOS GOVERNOS

Bertrand Benoit, Jones / Valor Econômico

Pesquisadores e analistas acreditam que um dos principais motivadores subjacentes para os eleitores é a diminuição da confiança nos seus governos

O populismo antiestablishment está em ascensão na Europa, alimentando não só pela migração e temores com economia e segurança, mas também por uma tendência mais profunda: a corrosão da confiança na capacidade dos governos de superar esses desafios.

Na Alemanha, no domingo, a Alternativa para a Alemanha (AfD), o partido de extrema direita, e um novo partido populista de extrema esquerda obtiveram quase metade dos votos no Estado da Turíngia, e juntos também conseguiram mais de 40% na vizinha Saxônia. Na Turíngia, o AfD terminou em primeiro lugar, na primeira vez que um movimento de extrema direita vence uma eleição estadual na Alemanha desde a Segunda Guerra.

Na França, uma eleição legislativa que resultou em um parlamento sem maioria absoluta e deu ao Reunião Nacional, de extrema direita, quase um quarto de todas as cadeiras — um aumento de mais de 50% em relação à última eleição — e ainda não produziu um governo dois meses depois.

Uma série de crises que vão da imigração à inflação e a guerra na Ucrânia, ajudou os populistas a obter vitórias eleitorais na Itália, Holanda, Suécia e Finlândia nos últimos anos. Para alguns pesquisadores e analistas, no entanto, crises não são novidade. O que há de novo é a confiança cada vez menor dos eleitores de que os governos eleitos podem resolver essas crises.

“As crises geralmente são boas para aos governos”, diz Manfred Güllner, presidente do grupo de pesquisas Forsa. “Os eleitores se reúnem em torno de uma causa. Isso ocorreu após o 11 de Setembro nos EUA, depois da crise financeira e até mesmo, inicialmente, na pandemia de covid-19. Mas hoje não. As crises se acumulam e o apoio a governos está no fundo do poço.

Em uma pesquisa da Forsa com os eleitores alemães divulgada na semana passada, 54% disseram não confiar em nenhum partido para resolver os problemas do país. Apenas 16% disseram confiar no governo. Outra pesquisa com eleitores na França, Alemanha, Itália e Polônia, divulgada este ano pela Universidade Sciences Po de Paris, 60% disseram não confiar nas instituições políticas. A mesma proporção disse que a democracia não está funcionando.

Para Güllner, a ascensão de partidos novos e populistas é a ponta de um iceberg de descontentamento, cuja parte submersa é a abstenção. Na Saxônia e na Turíngia, a parcela de não eleitores aumentou em 26% e 56%, respectivamente, desde a primeira eleição pós-reunificação em 1990, afirma.

A indecisão pode se autoperpetuar. À medida que os eleitores perdem a confiança nos governos, eles se voltam para populistas e punem partidos do establishment, resultando em parlamentos fragmentados. Isso, por sua vez, gera coalizões pouco viáveis, com problemas para governar.

Mesmo na França, onde um sistema eleitoral de dois turnos por muito tempo assegurou maiorias estáveis, a fragmentação política é tamanha que as duas últimas eleições parlamentares resultaram em parlamentos sem maioria absoluta. A mais recente delas, em julho, ainda não produziu um governo.

“Eu pensava que os políticos eram essencialmente honestos. Mas isso acabou”, diz Gérard Brauchli,72, um otorrinolaringologista aposentado que vive na região central da França. “Eles não são honestos, não são capazes e não são corajosos.”

A perda de confiança também é palpável na Alemanha, cuja economia mal cresceu desde 2019 e onde anos de investimentos insuficientes alimentaram um sentimento geral de que nada mais funciona – da polícia aos trens, os militares, a ajustiça e a educação.

Depois que um refugiado sírio matou três na Alemanha em 23 de agosto em um atentado terrorista reivindicado pelo Estado Islâmico, autoridades disseram que o autor deveria ter sido deportado há dois anos, mas isso não aconteceu. As autoridades tentaram deportá-lo em junho do ano passado, mas não conseguiram encontrá-lo. Elas não tentaram novamente, segundo o governo regional.

“O premiê está perdendo o controle de seu país”, disse Friedrich Merz, líder do CDU, partido conservador de oposição, depois do ataque. “Isso é a gota d’água.”

Para Thomas Biebricher, um cientista político e escritor sobre o conservadorismo, o comentário de Merz “eleva o nível... Ele cria expectativas que dificilmente serão atendidas uma vez que você estiver no governo”.

Herfried Münkler, um dos principais cientistas políticos da Alemanha, acredita que a falta de confiança no governo é em parte produto da estridente retórica populista, cujo alarmismo cria uma sensação de urgência que nenhum governo pode superar.

Ao mesmo tempo, “as crises se acumulam como camadas de um bolo mais rapidamente do que podem ser resolvidas”, diz ele, fazendo uma analogia com os anos de 1920 na Europa. “Os governos estão sobrecarregados. Eles estão lutando para convencer pessoas de que embora os problemas sejam reais, eles podem ser resolvidos.”

Há razões concretas pelas quais os governos podem se sentir menos eficientes hoje. Na França, Itália e Reino Unido, o elevado endividamento público está restringindo as opções políticas dos governos. Quando a então recém-nomeada premiê britânica, Liz Truss, anunciou planos de grandes cortes de impostos não financiados em 2022, investidores preocupados provocaram uma corrida aos títulos do governo britânico, a libra caiu para um patamar recorde em relação ao dólar e ela renunciou após seis semanas no cargo.

Em toda a Europa, uma população que envelhece rapidamente aumentou a demanda por tratamentos médicos. Combinado com uma crescente escassez de mão de obra capacitada no setor de saúde, isso levou a períodos de espera mais longos para tratamentos, levando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a alertar para uma iminente crise de saúde na região.

Os Estados democráticos, pesados por natureza, com seus emaranhados de leis e freios e contrapesos, podem ser lentos na reação a crises. Quando a crise financeira de 2008 estourou, ameaçando o sistema bancário, o governo alemão teve que contornar procedimentos parlamentares de décadas para aprovar uma legislação emergencial em dias, em vez de meses.

Essa fraqueza inerente tem sido alvo de ataques populistas. No começo dos anos 2000, os populistas poloneses e irmãos gêmeos Lech e Jaroslaw Kaczunski, então presidente e primeiro-ministro da Polônia, denunciaram as restrições impostas pelo Estado de Direito como “impossibilismo jurídico”, justificando sua tentativa de aumentar seus poderes executivos.

Em alguns casos, afirmam analistas, os problemas que os governos enfrentam são tão custosos e complexos de resolver que os políticos acabam fingindo que não existem. Um exemplo frequentemente citado é a ausência de esforços de Berlim para reduzir a cota de gás natural que a Alemanha importava da Rússia, depois de Moscou anexar a Crimeia em 2014.

Isso deixou Berlim vulnerável a chantagens do Kremlin, que começou a restringir entregas de gás a Alemanha após invadir a Ucrânia em 2022. Sem escolha, a Alemanha acabou tendo de reagir, recorrendo ao gás natural liquefeito (GNL), mais caro, dos EUA e outros países.

Em um episódio revelador, Andreas Fulda, um especialista em relações EUA-China da Universidade Nottingham do Reino Unido, viu um alto funcionário do governo em uma recepção em Berlim em junho. Fulda se aproximou e perguntou por que, na opinião dele, o governo fazia tão pouco para reduzir a dependência econômica da Alemanha das exportações para a China, algo que o premiê Olaf Scholz havia prometido buscar.

“Sua resposta foi: ‘Sim, certo. Scholz pode fazer tudo’. Com isso ele quis dizer não, o premiê não poder fazer nada, uma admissão muito séria”, lembra Fulda.

A decisão de Berlim de acolher centenas de milhares de refugiados retidos na Europa ocidental em 2015 é outro exemplo. Ela caiu mal para o governo e marcou o começo da ascensão do AfD.

Em seu livro “Die Getriebenen” (“Os motivados”), o jornalista e escritor Robin Alexander reconstituiu os acontecimentos daquele verão, quando colunas de migrantes, principalmente do Oriente Médio, iniciaram uma jornada pelos Bálcãs em direção à Alemanha. A narrativa, posteriormente transformada em uma série de TV, documenta como o governo de Angela Merkel não decidiu abrir as fronteiras, apenas não conseguiu fechá-las, em grande parte por temer repercussões legais, efetivamente abrindo mão do controle.

Hoje, a fragmentação política está atrapalhando o trabalho dos governos, minando ainda mais a confiança dos eleitores. Na Alemanha, o governo tripartite de Scholz – composto pelos sociais-democratas, liberais pró-mercado e ambientalistas – mal conseguiu chegar a um acordo sobre o orçamento este ano, em meio a constantes disputas internas.

“Pode ser que estejamos chegando aos limites do compromisso político”, diz Münkler. “Isso não é um bom sinal porque pode levar a maioria dos eleitores a pedir um homem ou mulher forte. Alguém que não faça concessões, mas apenas decida.”

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