segunda-feira, 16 de setembro de 2024

REJEIÇÃO À IMIGRAÇÃO REFORÇA O EXTREMISMO NA EUROPA E AINDA PODE ELEGER TRUMP NOS EUA

Humberto Saccomandi, Valor Econômico

A ascensão do extremismo político é facilitado pela incompreensão dos governos ao nível de rejeição das populações à imigração

Chamou a atenção no debate presidencial da semana passada nos Estados Unidos a afirmação de Donald Trump de que imigrantes haitianos estavam comendo animais de estimação de americanos numa pequena cidade do Estado de Ohio. A fake news foi logo desmentida pelos mediadores. Mas, por trás desse episódio bizarro, está o tema que pode dar a vitória a Trump nas eleições de novembro: a rejeição crescente dos eleitores à imigração em grande escala. Isso ocorre tanto nos EUA como na Europa. E a falta de resposta dos governo, especialmente os de esquerda, vem favorecendo a ascensão da extrema direita.

Segundo estimativa do Congresso americano, desde o começo do governo do presidente democrata Joe Biden, em 2021, os EUA tiveram uma entrada líquida de cerca de 9,3 milhões de pessoas. Esse já é um dos maiores fluxos migratórios da história dos EUA. Cerca de 70% entraram sem permissão legal. A imensa maioria vem de países da América Latina e do Caribe. Apenas quatro meses atrás o presidente adotou medidas para restringir o que Trump chama de “invasão”. Segundo pesquisa de junho do instituto Gallup, 55% dos americanos apoiavam reduzir a imigração. Em 2022 eram 38%.

A fatia da população americana nascida fora do país está hoje em cerca de 14% e subindo. Em 1970, eram apenas 4,7%. Nos últimos 170 anos, o maior percentual foi 14,8%, em 1890.

Os países da Europa também enfrentam há muitos anos um forte fluxo migratório, que fez com que a população estrangeira disparasse. Em 2022 (último dado disponível) cerca de 5,1 milhões de estrangeiros entraram na União Europeia (UE), um aumento de 117% em relação ao ano anterior. Nos 27 países da bloco, 9% da população nasceu fora do bloco. Mas em alguns países esse percentual é bem maior. Na Suécia, por exemplo, quase 20% da população nasceu fora da UE. Incluindo os filhos de pais estrangeiros, 22% da população da UE tem origem fora do bloco, segundo dados da Eurostat.

Para comparação, apenas cerca de 0,6% da população brasileira nasceu no exterior.

No caso da Europa, a maior parte desse fluxo é composto por migrantes legais, ou seja, pessoas que em algum momento receberam autorização de residência, devido principalmente às regras de asilo mais generosas que as dos EUA.

A entrada maciça de migrantes traz vários benefícios econômicos, que já são bem conhecidos. O aumento da população eleva a demanda por consumo, o que estimula a atividade econômica. A maior parte dos imigrantes são adultos em idade de trabalhar. Ou seja, o país recebe mão de obra formada, que aumenta a população economicamente ativa. Isso é particularmente importante em países com população envelhecida. Desde o começo de 2021, a participação de pessoas não nascidas nos EUA na força de trabalho americana aumentou de 17,2% para 19,6%. O impacto fiscal da imigração costuma ainda ser positivo para as contas públicas.

O bônus demográfico da imigração está também ajudando os EUA a enfrentar a concorrência da Ásia, onde a população de muitos países, como o Japão e a China, está em queda.

Mas a imigração também causa tensões sociais. Uma parte da população vê seus empregos ameaçados pelos imigrantes, que em geral trabalham por salários menores. Costuma haver ainda um aumento da criminalidade, apesar de muitos estudos indicarem que o aumento real é menor do que o percebido pela população, já que o crime associado ao imigrante costuma receber um destaque maior na midia e nas redes sociais. Trump, por exemplo, destaca regularmente crimes cometidos por estrangeiros.

Há também a questão da identidade cultural. Em países com população relativamente homogênea, existe a percepção de que é preciso preservar a identidade nacional, ameaçada pela imigração. Mesmo em países heterogêneos, como os EUA, isso ocorre. O cientista político americano Samuel Huntington, autor do best-seller “Choque de Civilizações”, argumentava que a entrada maciça de imigrantes latino-americanos era uma ameaça à civilização ocidental americana.

Essas tensões são cada vez mais exploradas por grupo e partidos de direita ou de extrema direita, tanto nos EUA como na Europa, que buscam frear ou até reverter a imigração. Esse é o principal tema da campanha eleitoral de Trump, que promete um programa de deportação em massa. O mesmo ocorre em vários partidos na Europa. Há duas semanas, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão) venceu a eleição no Estado da Turíngia e ficou em segundo na Saxônia. Partidos contra a imigração foram os que mais cresceram nas eleições de junho para o Parlamento Europeu. Para a AfD, a presença de população islâmica na Alemanha é incompatível com os valores culturais, sociais e políticos do país.

Essa ascensão do extremismo político é facilitado pela incompreensão que governos liberais ou de esquerda parecem ter do nível de rejeição à imigração nos vários países. O asilo político é um direito reconhecido internacionalmente, e a migração alivia o sofrimento de milhões de pessoas pelo mundo. Ainda assim, defender a restrição à imigração é um direito dos eleitores. Sentir-se incomodado com a presença maciça e crescente de estrangeiros (palavra que deriva do substantivo estranho) não é um crime. Se os únicos partidos a darem vazão a esse incômodo forem extremistas, é para lá que boa parte desses eleitores confluirão.

Recentemente, tanto os EUA como a Europa começaram a adotar medidas de restrição à entrada de migrantes. Mas, para muitos eleitores, o que foi feito até agora é muito pouco e veio muito tarde. O governo Biden somente em junho tentou conter a entrada recorde de imigrantes não autorizados, o que gerou acusações de que estava agindo apenas de olho nas eleições de novembro. O mesmo ocorreu na UE, onde o Parlamento Europeu aprovou, em abril, às vésperas das eleições de junho, um pacote de medidas restritivas.

A maior parte dos partidos de centro e esquerda ainda tratam a rejeição à imigração como uma demanda equivocada ou até mesmo ilegítima de parte da população, que estaria sendo manipulada pelos movimentos extremistas. Equivocada ou não, é uma realidade de fato com a qual governos e partidos precisam lidar.

Um dos poucos partidos de esquerda europeus a entender essa dinâmica foi o Partido Social Democrata da Dinamarca. O governo da premiê Mette Frederiksen endureceu ainda mais as regras já rígidas recebidas do governo anterior, de centro-direita. Em 2021, o país aprovou uma lei que permite enviar para o exterior solicitantes de asilo, até que o pedido seja processado. Em 2023, revogou a permissão de residência de boa parte dos asilados sírios, por considerar que a Síria já reunia condições de receber essa população de volta. O resultado foi que os social-democratas, que governam a Dinamarca desde 2019, acabaram reeleitos em 2022. E o sistema política dinamarquês conseguiu evitar o avanço que a extrema direita conseguiu em outros países.

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