Pobre Francis Fukuyama. Ele escreveu que a democracia
liberal era a última e definitiva forma de organização política. Fim da
História. Pobres de nós. Pensamos que os regimes autoritários precisavam
transitar para a democracia para garantir prosperidade às pessoas. O mundo deu
uma volta. As democracias têm dificuldade de crescimento sustentável. Não
agradam como antes. Os regimes autoritários adotam os métodos capitalistas e
conseguem decolar.
Em 1995, apenas 4% das pessoas com renda de US$ 20 mil ao
ano viviam em países de regime autoritário. Eram 35 milhões. Hoje, mais de 350
milhões ganham isso, na Rússia, no Cazaquistão e
em países do Golfo Pérsico. Incluindo províncias costeiras da China, o número sobe
a 800 milhões. A liberdade de expressão, direitos políticos, tudo isso foi
trocado por bem-estar e um certo orgulho nacional.
Trump admira alguns desses regimes autoritários, líderes
fortes. Se avançar sem resistência sobre a democracia liberal americana, o
planeta muda de figura definitivamente.
Assegurar o regime democrático em nosso continente é uma
acrobacia: apoiar a esquerda quando surge o perigo pela direita, como no
Brasil; apoiar a direita quando o perigo vem da esquerda, como na Venezuela.
A grande questão que se coloca é a sobrevivência da
liberdade num contexto político em que a democracia perde prestígio e cresce a
sedução autoritária. O que fazer? Claro que temos muito a discutir, superar
divergências. Pouco adiantará nossa discussão se não buscarmos as pessoas,
inclusive aquelas mais distantes na periferia. Vivemos numa sociedade de
riscos, e os pobres são os principais atingidos pelos eventos extremos. É
preciso organizar sua autodefesa, conhecer suas demandas.
Os políticos profissionais parecem não se dar conta da
possibilidade de o povo se voltar contra a democracia. Em 2013, houve uma
revolta por serviços do Estado. Mesmo agora, é impossível oferecer serviços
eficazes se não houver grande esforço, que passa pela redução dos custos do
aparato burocrático militar, supressão de supersalários e adaptação às
condições reais do país. Os projetos sociais precisam ser modernizados, como na
Índia, onde a adoção de um número pessoal suprimiu todo o desperdício, sem prejuízo
dos benefícios.
Será preciso ser mais realista na luta identitária. Ela não
é instrumento principal, sobretudo em eleições majoritárias. O rígido
politicamente correto e os cancelamentos só atrapalham.
O próprio sistema jurídico poderia contribuir para amenizar
a polarização. Os vencedores do momento precisam mostrar mais generosidade.
Manter presa a mulher que escreveu com batom numa estátua, condenar a 17 anos
de prisão uma idosa que fez cocô no STF,
tudo isso merece ser revisto. A ideia é que participavam de um plano golpista,
abriam caminho aos militares e aos políticos. Os militares não apareceram, os
políticos ficaram em seus gabinetes; estamos punindo pesadamente um corpo sem
cabeça.
Sei que, assim argumentando, me exponho às acusações de
sempre: estar a serviço da direita. Não tenho medo de ser condenado à lata de
lixo da História, sempre saio dela reciclado. Vejo o momento como muito grave,
um túnel escuro em que os democratas precisam se unir.
Quando começa um período mais difícil, sempre penso nesta
frase:
— Coragem, o Reino dos Céus está próximo.
Ouvi de integrantes do Exército da Salvação em Estocolmo. É
apenas uma licença poética. Não acredito em reino dos céus. Mas gosto do som da
frase.
Importante traçar um rumo desde agora: não sectário, fixado
no essencial. Quanto menos estresse, menos conflito inútil, maior a
possibilidade de pensar uma saída em tempos sombrios e um dia, quem sabe, a
gente poderá rir um pouco de todo esse sufoco.
Artigo publicado no jornal O Globo em 11/11/2024
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