segunda-feira, 11 de novembro de 2024

ARMADILHAS DA HISTÓRIA

Artigo de Fernando Gabeira

Pobre Francis Fukuyama. Ele escreveu que a democracia liberal era a última e definitiva forma de organização política. Fim da História. Pobres de nós. Pensamos que os regimes autoritários precisavam transitar para a democracia para garantir prosperidade às pessoas. O mundo deu uma volta. As democracias têm dificuldade de crescimento sustentável. Não agradam como antes. Os regimes autoritários adotam os métodos capitalistas e conseguem decolar.

Em 1995, apenas 4% das pessoas com renda de US$ 20 mil ao ano viviam em países de regime autoritário. Eram 35 milhões. Hoje, mais de 350 milhões ganham isso, na Rússia, no Cazaquistão e em países do Golfo Pérsico. Incluindo províncias costeiras da China, o número sobe a 800 milhões. A liberdade de expressão, direitos políticos, tudo isso foi trocado por bem-estar e um certo orgulho nacional.

Trump admira alguns desses regimes autoritários, líderes fortes. Se avançar sem resistência sobre a democracia liberal americana, o planeta muda de figura definitivamente.

Assegurar o regime democrático em nosso continente é uma acrobacia: apoiar a esquerda quando surge o perigo pela direita, como no Brasil; apoiar a direita quando o perigo vem da esquerda, como na Venezuela.

A grande questão que se coloca é a sobrevivência da liberdade num contexto político em que a democracia perde prestígio e cresce a sedução autoritária. O que fazer? Claro que temos muito a discutir, superar divergências. Pouco adiantará nossa discussão se não buscarmos as pessoas, inclusive aquelas mais distantes na periferia. Vivemos numa sociedade de riscos, e os pobres são os principais atingidos pelos eventos extremos. É preciso organizar sua autodefesa, conhecer suas demandas.

Os políticos profissionais parecem não se dar conta da possibilidade de o povo se voltar contra a democracia. Em 2013, houve uma revolta por serviços do Estado. Mesmo agora, é impossível oferecer serviços eficazes se não houver grande esforço, que passa pela redução dos custos do aparato burocrático militar, supressão de supersalários e adaptação às condições reais do país. Os projetos sociais precisam ser modernizados, como na Índia, onde a adoção de um número pessoal suprimiu todo o desperdício, sem prejuízo dos benefícios.

Será preciso ser mais realista na luta identitária. Ela não é instrumento principal, sobretudo em eleições majoritárias. O rígido politicamente correto e os cancelamentos só atrapalham.

O próprio sistema jurídico poderia contribuir para amenizar a polarização. Os vencedores do momento precisam mostrar mais generosidade. Manter presa a mulher que escreveu com batom numa estátua, condenar a 17 anos de prisão uma idosa que fez cocô no STF, tudo isso merece ser revisto. A ideia é que participavam de um plano golpista, abriam caminho aos militares e aos políticos. Os militares não apareceram, os políticos ficaram em seus gabinetes; estamos punindo pesadamente um corpo sem cabeça.

Sei que, assim argumentando, me exponho às acusações de sempre: estar a serviço da direita. Não tenho medo de ser condenado à lata de lixo da História, sempre saio dela reciclado. Vejo o momento como muito grave, um túnel escuro em que os democratas precisam se unir.

Quando começa um período mais difícil, sempre penso nesta frase:

— Coragem, o Reino dos Céus está próximo.

Ouvi de integrantes do Exército da Salvação em Estocolmo. É apenas uma licença poética. Não acredito em reino dos céus. Mas gosto do som da frase.

Importante traçar um rumo desde agora: não sectário, fixado no essencial. Quanto menos estresse, menos conflito inútil, maior a possibilidade de pensar uma saída em tempos sombrios e um dia, quem sabe, a gente poderá rir um pouco de todo esse sufoco.

Artigo publicado no jornal O Globo em 11/11/2024

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