segunda-feira, 11 de novembro de 2024

POLÍTICA IDENTITÁRIA MORRE NA ELEIÇÃO DOS EUA

Demétrio Magnoli, O Globo

America First. O retorno triunfante de Donald Trump assinala a vitória de um neonacionalismo sombrio, da xenofobia extremada e do protecionismo econômico. No campo dos derrotados encontram-se o consenso liberal-democrático, a estabilidade das instituições americanas, a ponte atlântica entre Estados Unidos e Europa, a nação ucraniana. Putin terá erguido um brinde nos salões dourados do Kremlin. Netanyahu celebrou publicamente. Mas nem tudo é tragédia. Jaz, em meio aos destroços, a bíblia identitária dos “progressistas” .

A eleição não foi um plebiscito sobre as políticas de raça, etnia, gênero e orientação sexual. Foi, claro, sobre a herança de Biden: inflação, imigração e guerras. Marcou, porém, a morte do programa identitário que soldou uma aliança elitista entre “progressistas” de centro e de esquerda.

O retrato da agonia final surgiu na campanha de Kamala Harris, que renunciou a rezar no altar do dogma. Numa tentativa fracassada de dialogar com a maioria dos eleitores, queimou o que adorava, evitando descrever-se como personificação simbólica de grupos vitimizados. A banda de fundo que celebrava a “mulher” (e, grau superior, “mulher negra”) tocou sozinha — mas ainda assim foi ouvida, para regozijo da caravana de Trump.

O retrato do corpo sem vida surgiu na hora da apuração. Os grupos minoritários esculpidos pelas políticas identitárias recusaram o papel a eles atribuído: fornecer uma massa compacta de votos ao partido que alega representá-los. A erosão dos votos democratas de hispânicos e negros não foi compensada por uma onda providencial de votos de mulheres. O Make America Great Again (Maga), movimento de Trump que tomou o lugar do antigo Partido Republicano, tornou-se algo como um Partido dos Trabalhadores, expulsando os democratas para os redutos das grandes cidades cosmopolitas.

A “traição das minorias” implode o manual estratégico dos “progressistas”. Na vida democrática real, eles terão de desistir da pregação moral pedante e formular uma resposta política ao desafio do neonacionalismo da direita. Serão obrigados a reaprender a falar com o povo inteiro, resgatando do Maga a bandeira da unidade nacional e restaurando o conceito abandonado de igualdade política e jurídica entre os cidadãos.

As políticas identitárias “progressistas” nasceram na academia, de onde fluíram até o meio editorial e artístico, os veículos de comunicação, o aparato judiciário e as grandes empresas. O retorno de Trump iluminou, porém, o abismo que separa as elites intelectuais e econômicas da vida popular. Por algum tempo, o cadáver identitário continuará a emitir ruídos nos ambientes sanitizados de sua infância.

Diante do fracasso de seus remédios milagrosos, as seitas ideológicas tendem, invariavelmente, a dobrar a dose. Nas universidades e na imprensa “progressista”, permanecerão ecoando os sermões identitários, e o debate público seguirá truncado pela invocação terminal do “lugar de fala” e pelo exercício purificador do “cancelamento” de dissidentes. Contudo, na esfera pública mais ampla, encerrou-se a era identitária: nenhum partido político sério, nos Estados Unidos ou fora dele, renunciará à vitória em nome de um totem oco.

Brasil, país da imitação. Há cem anos, os bens culturais americanos moldam o imaginário brasileiro (sobre isso, leia-se “O amigo americano” e “O imperialismo sedutor”, de Antonio Pedro Tota). A importação diretamente política, fenômeno mais recente, manifesta-se pela esquerda e pela direita. Agraciados com bolsas de estudos e intercâmbios acadêmicos, os intelectuais “progressistas” aderiram ao novelo sem fim da engenharia social identitária. A direita retrucou aportando no cais seguro da Flórida, ajoelhando-se no altar de Trump e abraçando outro identitarismo, nacionalista e religioso

A americanização voluntária tem mão e contramão. Dos destroços da campanha de Kamala, emana uma luz de alerta. O discurso identitário “progressista”, com seu cortejo de leis de cotas e seus éditos de censura, funciona como fábrica de vitórias eleitorais da direita. O que morreu na sua terra natal não sobreviverá numa pátria adotiva.

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