sábado, 21 de dezembro de 2024

A CULTURA DO BEM-ESTAR AGORA É TRUMPISTA

Pablo Ortellado, O Globo

Ninguém encarna melhor essa mudança que Kennedy Jr.

Um dos desenvolvimentos mais surpreendentes da política americana nos últimos meses foi a inesperada aliança entre o movimento de bem-estar e o trumpismo. Esse alinhamento se evidenciou com o apoio de Robert Kennedy Jr., candidato independente e crítico das vacinas, a Donald Trump, culminando com sua nomeação como secretário de Saúde do novo governo.

Bem-estar (wellness) é um termo coringa para identificar um conjunto de práticas e preocupações com a saúde e o bem-estar que podem incluir a medicina alternativa, a alimentação natural, práticas espirituais e o uso terapêutico de psicotrópicos. No passado, esse tipo de atividade era um componente importante da contracultura de esquerda, mas as reviravoltas da política têm empurrado essa subcultura para a direita.

A preocupação contracultural com o bem-estar dos anos 1960, 1970 e 1980 estava geralmente associada com a esquerda porque partia de uma desconfiança de práticas atribuídas a interesses econômicos das empresas. Era a oposição às empresas capitalistas que a empurrava para a esquerda. Hoje, o que a empurra para a direita é a oposição às elites intelectuais e culturais.

A nova direita é essencialmente populista. Constrói-se a partir de um antagonismo retórico que opõe o povo às elites. No populismo de direita, isso geralmente se expressa na rejeição às elites culturais e políticas. No populismo de esquerda, na rejeição às elites econômicas. Assistimos agora a certo deslocamento do populismo de direita, que, por meio do corredor populista, incorpora também a desconfiança das elites econômicas, sobretudo daquelas ligadas às indústrias farmacêuticas e alimentícias.

A polarização política também contribuiu para a migração do bem-estar para a direita. Durante a pandemia, a desconfiança das elites científicas levou a direita a rejeitar vacinas e políticas de isolamento social. Em resposta, a esquerda passou a apoiar instituições científicas e sanitárias de forma quase automática. Essa dinâmica consolidou na direita uma postura crítica em relação à ciência “hegemônica”. Vemos isso também no Brasil. Antes, a desconfiança de vacinas estava associada a comunidades de medicina alternativa, de inclinação progressista. Hoje está muito mais associada a comunidades da direita bolsonarista.

Ninguém encarna melhor essa mudança que Kennedy Jr. O sobrinho do ex-presidente John F. Kennedy já foi advogado ambientalista e estrela do Partido Democrata. Tornou-se crítico ardoroso das vacinas, candidato independente, depois um apoiador entusiasmado de Donald Trump. Construiu uma ampla agenda de bem-estar que abrigou sob o slogan Make America Healthy Again (Torne a América Saudável de Novo), trocadilho com o lema de Trump, Make America Great Again.

Essa agenda mistura políticas baseadas em recomendações científicas estabelecidas, como combater o consumo de alimentos ultraprocessados e vetar certos defensivos agrícolas já proibidos na Europa, com recomendações que vão do duvidoso ao muito perigoso, como retirar a adição de flúor da água encanada, permitir a venda de leite não pasteurizado e banir certas vacinas.

A migração da cultura do bem-estar para o trumpismo evidencia como movimentos culturais podem ser moldados e apropriados por diferentes espectros políticos ao longo do tempo. A convergência entre a desconfiança nas instituições e a retórica populista acentuou as contradições de um mundo em que ciência, política e saúde pública deixaram de ser campos de consenso para se tornar arenas de disputa ideológica.

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