Ninguém encarna melhor essa mudança que Kennedy Jr.
Um dos desenvolvimentos mais surpreendentes da política
americana nos últimos meses foi a inesperada aliança entre o movimento de
bem-estar e o trumpismo. Esse alinhamento se evidenciou com o apoio de Robert
Kennedy Jr., candidato independente e crítico das vacinas, a Donald Trump,
culminando com sua nomeação como secretário de Saúde do novo governo.
Bem-estar (wellness) é um termo coringa para
identificar um conjunto de práticas e preocupações com a saúde e o bem-estar
que podem incluir a medicina alternativa, a alimentação natural, práticas
espirituais e o uso terapêutico de psicotrópicos. No passado, esse tipo de atividade
era um componente importante da contracultura de esquerda, mas as reviravoltas
da política têm empurrado essa subcultura para a direita.
A preocupação contracultural com o
bem-estar dos anos 1960, 1970 e 1980 estava geralmente associada com a esquerda
porque partia de uma desconfiança de práticas atribuídas a interesses
econômicos das empresas. Era a oposição às empresas capitalistas que a
empurrava para a esquerda. Hoje, o que a empurra para a direita é a oposição às
elites intelectuais e culturais.
A nova direita é essencialmente populista. Constrói-se a
partir de um antagonismo retórico que opõe o povo às elites. No populismo de
direita, isso geralmente se expressa na rejeição às elites culturais e
políticas. No populismo de esquerda, na rejeição às elites econômicas.
Assistimos agora a certo deslocamento do populismo de direita, que, por meio do
corredor populista, incorpora também a desconfiança das elites econômicas,
sobretudo daquelas ligadas às indústrias farmacêuticas e alimentícias.
A polarização política também contribuiu para a migração do
bem-estar para a direita. Durante a pandemia, a desconfiança das elites
científicas levou a direita a rejeitar vacinas e políticas de isolamento
social. Em resposta, a esquerda passou a apoiar instituições científicas e
sanitárias de forma quase automática. Essa dinâmica consolidou na direita uma
postura crítica em relação à ciência “hegemônica”. Vemos isso também no Brasil.
Antes, a desconfiança de vacinas estava associada a comunidades de medicina
alternativa, de inclinação progressista. Hoje está muito mais associada a
comunidades da direita bolsonarista.
Ninguém encarna melhor essa mudança que Kennedy Jr. O
sobrinho do ex-presidente John F. Kennedy já foi advogado ambientalista e
estrela do Partido Democrata. Tornou-se crítico ardoroso das vacinas, candidato
independente, depois um apoiador entusiasmado de Donald Trump. Construiu uma
ampla agenda de bem-estar que abrigou sob o slogan Make America Healthy
Again (Torne a América Saudável de Novo), trocadilho com o lema de
Trump, Make America Great Again.
Essa agenda mistura políticas baseadas em recomendações
científicas estabelecidas, como combater o consumo de alimentos
ultraprocessados e vetar certos defensivos agrícolas já proibidos na Europa,
com recomendações que vão do duvidoso ao muito perigoso, como retirar a adição
de flúor da água encanada, permitir a venda de leite não pasteurizado e banir
certas vacinas.
A migração da cultura do bem-estar para o trumpismo
evidencia como movimentos culturais podem ser moldados e apropriados por
diferentes espectros políticos ao longo do tempo. A convergência entre a
desconfiança nas instituições e a retórica populista acentuou as contradições
de um mundo em que ciência, política e saúde pública deixaram de ser campos de
consenso para se tornar arenas de disputa ideológica.
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