terça-feira, 31 de dezembro de 2024

DEMOCRACIA ERA O EIXO DA DIPLOMACIA DE JIMMY CARTER

Editorial O Globo

Democracia era o eixo da diplomacia de Jimmy Carter

Ele foi o presidente americano que mais contribuiu para derrubar a ditadura militar brasileira

Fora do Brasil, é provável que Jimmy Carter seja lembrado como artífice dos acordos históricos de Camp David, que resultaram na paz entre Israel e Egito, ou pelo fracasso de sua tentativa de reeleição diante da avalanche que Ronald Reagan representou em 1980 para um país consumido pela inflação e pela paralisia econômica. Aqui no Brasil, seu nome estará sempre associado à defesa da democracia. Carter, que morreu nesta semana aos 100 anos, foi o presidente dos Estados Unidos mais perturbador para a ditadura militar brasileira. Sua ascensão ao poder acabou com a vista grossa que a Casa Branca fazia para os desmandos dos generais no Cone Sul e representou uma guinada da política externa americana na direção da democracia e dos direitos humanos.

Carter mostrou a que vinha já na campanha. Numa entrevista em 1976, disse que o apoio dos Estados Unidos ao regime militar brasileiro era “um tapa na cara do povo americano”. Em debate eleitoral, lembrou que os republicanos haviam ajudado a derrubar Salvador Allende e a sustentar Augusto Pinochet no Chile poucos anos antes. Uma vez no poder, cortou a ajuda financeira a países onde havia tortura. No primeiro ano de mandato, enviou ao Brasil a mulher, Rosalynn. Ela deixou o presidente Ernesto Geisel perplexo ao apresentar uma lista de perseguidos políticos. Antes de partir, convidou integrantes da oposição para um jantar, prestigiou a imprensa e conversou com missionários americanos sobre as condições nas prisões. Inconformado com a política de direitos humanos e com a oposição americana ao tratado nuclear entre Brasil e Alemanha, Geisel encerrou um acordo bilateral de cooperação militar. O discurso de Carter não era mera retórica.

Quando veio ao Brasil no ano seguinte, na primeira visita de um presidente americano em 18 anos, encontrou representantes da oposição ao regime militar, como o presidente da OAB, Raymundo Faoro, e o cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Convidou Arns para acompanhá-lo no carro até o aeroporto no Rio. A mágoa de Geisel durou até o fim da vida.

Por anos, prevaleceu a narrativa segundo a qual a política de Carter de criar atrito com o governo militar foi contraproducente para a abertura. Mas documentos secretos à época hoje abertos para consulta pública revelam uma realidade diferente. “Carter chacoalhou o regime, pondo Geisel na defensiva e fortalecendo a oposição à ditadura”, diz Matias Spektor, professor de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV).

É certo que ele não manteve coerência absoluta na defesa dos direitos humanos e da democracia — na disputa com os soviéticos, prestou ajuda ao governo golpista de El Salvador que lutava contra uma insurgência apoiada por Cuba, apesar do histórico terrível de repetidos crimes contra civis. Mesmo assim, tornou ambos os temas prioridades da política externa americana, quebrando o padrão adotado anteriormente por seus antecessores da Guerra Fria. Prova de que sua influência é duradoura foi a posição determinada dos Estados Unidos — tanto no Congresso quanto no Executivo — contra a tentativa de golpe militar no Brasil em 2022 e contra a fraude eleitoral cometida pelo ditador Nicolás Maduro na Venezuela. Ao contrário do que ocorria no passado, desde Carter os americanos passaram a repelir o golpismo no continente.

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