Democracia era o eixo da diplomacia de Jimmy Carter
Ele foi o presidente americano que mais contribuiu para
derrubar a ditadura militar brasileira
Fora do Brasil, é provável que Jimmy Carter seja lembrado
como artífice dos acordos históricos de Camp David, que resultaram na paz entre
Israel e Egito, ou pelo fracasso de sua tentativa de reeleição diante da
avalanche que Ronald Reagan representou em 1980 para um país consumido pela
inflação e pela paralisia econômica. Aqui no Brasil, seu nome estará sempre
associado à defesa da democracia. Carter, que morreu nesta semana aos 100 anos,
foi o presidente dos Estados Unidos mais
perturbador para a ditadura militar brasileira. Sua ascensão ao poder acabou
com a vista grossa que a Casa Branca fazia para os desmandos dos generais no
Cone Sul e representou uma guinada da política externa americana na direção da
democracia e dos direitos humanos.
Carter mostrou a que vinha já na campanha.
Numa entrevista em 1976, disse que o apoio dos Estados Unidos ao regime militar
brasileiro era “um tapa na cara do povo americano”. Em debate eleitoral,
lembrou que os republicanos haviam ajudado a derrubar Salvador Allende e a
sustentar Augusto Pinochet no Chile poucos anos antes. Uma vez no poder, cortou
a ajuda financeira a países onde havia tortura. No primeiro ano de mandato,
enviou ao Brasil a mulher, Rosalynn. Ela deixou o presidente Ernesto Geisel
perplexo ao apresentar uma lista de perseguidos políticos. Antes de partir,
convidou integrantes da oposição para um jantar, prestigiou a imprensa e
conversou com missionários americanos sobre as condições nas prisões.
Inconformado com a política de direitos humanos e com a oposição americana ao
tratado nuclear entre Brasil e Alemanha, Geisel encerrou um acordo bilateral de
cooperação militar. O discurso de Carter não era mera retórica.
Quando veio ao Brasil no ano seguinte, na primeira visita de
um presidente americano em 18 anos, encontrou representantes da oposição ao
regime militar, como o presidente da OAB, Raymundo Faoro, e o cardeal de São
Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. Convidou Arns para acompanhá-lo no carro até o
aeroporto no Rio. A mágoa de Geisel durou até o fim da vida.
Por anos, prevaleceu a narrativa segundo a qual a política
de Carter de criar atrito com o governo militar foi contraproducente para a
abertura. Mas documentos secretos à época hoje abertos para consulta pública
revelam uma realidade diferente. “Carter chacoalhou o regime, pondo Geisel na
defensiva e fortalecendo a oposição à ditadura”, diz Matias Spektor, professor
de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV).
É certo que ele não manteve coerência absoluta na defesa dos
direitos humanos e da democracia — na disputa com os soviéticos, prestou ajuda
ao governo golpista de El Salvador que lutava contra uma insurgência apoiada
por Cuba, apesar do histórico terrível de repetidos crimes contra civis. Mesmo
assim, tornou ambos os temas prioridades da política externa americana,
quebrando o padrão adotado anteriormente por seus antecessores da Guerra Fria.
Prova de que sua influência é duradoura foi a posição determinada dos Estados
Unidos — tanto no Congresso quanto no Executivo — contra a tentativa de golpe
militar no Brasil em 2022 e contra a fraude eleitoral cometida pelo ditador
Nicolás Maduro na Venezuela. Ao contrário do que ocorria no passado, desde
Carter os americanos passaram a repelir o golpismo no continente.
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