O custo para desinflacionar a economia é mais alto em
virtude da desancoragem das expectativas de inflação e da inércia inflacionária
do ano anterior
A inflação oficial superou, pela terceira vez nos últimos
quatro anos, o intervalo de tolerância estabelecido pelo regime de metas. O
responsável maior por recolocar o índice de preços no alvo de 3% é o Banco
Central, que tem mandato legal, autonomia e os instrumentos necessários à sua
disposição. A tarefa será tão menos custosa para o setor real da economia
quanto maior for o apoio da política fiscal - e quanto menores forem os ruídos
políticos em torno do trabalho técnico do BC. O IBGE divulgou na sexta-feira o
Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 2024, que ficou em 4,83%. O
percentual supera o limite superior do intervalo de tolerância da meta de
inflação, de 4,5%.
Como determina a legislação, o presidente do BC, Gabriel
Galípolo, escreveu uma carta aberta ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
explicando os motivos do novo estouro, as providências que estão sendo tomadas
para corrigir o problema e o horizonte em que pretende colocar o IPCA de volta
na meta.
O BC apresenta uma análise numérica, com o uso de
instrumentos matemáticos e estatísticos, que decompõe os fatores que levaram ao
estouro da meta. A seca, que afetou negativamente os preços dos alimentos, teve
um papel importante, com um impacto de 0,38 ponto percentual na inflação de
2024. A alta do dólar deu uma contribuição mais expressiva, de 1,21 ponto
percentual. O sobreaquecimento da economia teve peso relevante, com um impacto
de 0,49 ponto. A inércia inflacionária (0,52 ponto) e a desancoragem das expectativas
(0,3 ponto) também foram fatores preponderantes.
Corretamente, a autoridade monetária se restringe à análise
técnica do descumprimento da meta, sem nomear os responsáveis. Mas seria um
erro entender todos esses eventos como exógenos, ou seja, como acontecimentos
fora do controle do BC e do próprio governo. A inflação acima da meta é
resultado também das decisões sobre a taxa de juros tomadas pelo próprio BC, do
conjunto da política econômica adotada pelo governo e do ambiente político em
que a autoridade monetária operou.
Houve acontecimentos fora do controle direto das autoridades
de Brasília, como a seca, que contribuiu para uma alta de 8,22% nos preços do
grupo alimentação e bebidas. Uma parte da desvalorização cambial de 21,8%
ocorrida em 2024 pode ser atribuída aos cortes menos profundos do que o
esperado na taxa de juros pelo Federal Reserve (Fed).
Choques inesperados de oferta, como esses, ocorrem
corriqueiramente, e, ao BC, nada resta além de acomodá-los no intervalo de
tolerância da meta - além de combater os seus efeitos secundários, evitando que
se espalhem para outros preços da economia. Não teria havido o estouro do teto
da meta se a pressão inflacionária se restringisse a esses fatores.
Mas houve danos autoinfligidos. A carta aberta reconhece,
acertadamente, que a significativa depreciação cambial "decorreu
principalmente de fatores domésticos". Ou seja, da percepção dos mercados
de que o governo não está disposto a apresentar um plano crível para gerar os
superávits primários necessários para, num horizonte razoável, estabilizar e
reduzir a dívida bruta.
“O crescimento da atividade econômica, que surpreendeu para
cima ao longo do ano, foi forte e também contribuiu para a inflação acima do
intervalo de tolerância”, completa o documento. A demanda agregada cresceu
acima da capacidade de oferta em decorrência da expansão fiscal, da força do
mercado de trabalho e do vigoroso crescimento do crédito bancário e do mercado
de capitais. Esses fatores são decorrentes de escolhas de política econômica.
Em todas as circunstâncias, estava ao alcance da política de juros agir de
forma contracíclica.
O custo para desinflacionar a economia é mais alto em
virtude da desancoragem das expectativas de inflação e da inércia inflacionária
do ano anterior. Os participantes do mercado estão céticos sobre a
possibilidade de o BC cumprir o centro da meta de inflação sem o controle das
contas públicas. Ataques ao BC das alas políticas do governo, incluindo o
presidente Lula, levantaram dúvidas sobre se a política monetária seria
autônoma o suficiente para executar o seu trabalho.
Na carta aberta, Galípolo repassa o plano para recolocar a
inflação na meta, que já é conhecido. O Copom do BC iniciou, em dezembro, um
choque de juros, que levará a Selic a 14,25% ao ano até março. Os especialistas
já esperam que o aperto siga até meados do ano, com uma taxa de 15% ao ano. O
BC passa o recado de que, independentemente das origens da inflação, a política
monetária é eficaz para equacionar o problema.
Os modelos de projeção do Copom sugerem que, seguindo essa
estratégia, a inflação vai cair à meta no final de 2026, com um custo mínimo em
termos de perda de atividade. A desaceleração tende a ser gradual, sem
recessão, com um nível de ociosidade da economia estimado em 0,6% do PIB
potencial em meados de 2026.
Esse pouso suave da economia assume como premissa que o
governo vai fazer a sua parte, reduzindo os estímulos à economia por meio do
cumprimento das metas de resultado primário e dos limites do arcabouço fiscal.
Ainda assim, a incerteza fiscal tende a perdurar, já que os compromissos
assumidos pelo governo são insuficientes para conter a trajetória insustentável
da dívida pública. Isso deixa a economia vulnerável a novos choques negativos
que podem aumentar ainda mais os custos para o BC baixar a inflação para a meta
definida pelo governo.
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