Desconexão de autoridades judiciais com realidade abre
flanco para ações autoritárias
“Tribunal de Rondônia garante salários acima de R$ 400 mil a
juízes”. “Em Minas, 32 magistrados receberam salários de mais de R$ 300 mil em
2024”. “Todos os juízes do Tribunal de Justiça de Sergipe receberam salários
acima do teto”. “Tribunais usam ‘dezembrada’ para pagar benefícios e
penduricalhos milionários a juízes”. “Ministério Público de São Paulo autoriza
penduricalho de até R$ 1 milhão a promotores”.
Apesar de todas essas evidências factuais, coletadas em
manchetes de jornais publicadas apenas no último mês, o ministro Luís Roberto
Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, mais uma vez minimizou os
absurdos remuneratórios no Poder que dirige. No discurso de abertura do ano
judiciário, Barroso declarou que “é preciso não supervalorizar críticas que
muitas vezes são injustas ou frutos da incompreensão do trabalho dos juízes”.
Dados do Conselho Nacional de Justiça
informam que os cerca de 18 mil magistrados brasileiros receberam em 2023 um
total de R$ 9,76 bilhões em subsídios - o que representa uma média de R$ 41,9
mil mensais, incluindo o 13º. No entanto, houve ainda um montante de R$ 8,44
bilhões em pagamentos eventuais e indenizatórios, os famosos “penduricalhos”.
Feitos os descontos de imposto de renda, previdência social e outros
abatimentos, o magistrado médio brasileiro levou para casa, líquidos, R$ 742,2
mil naquele ano - uma média mensal de R$ 57,1 mil.
Para além do custo fiscal, que Barroso relativizou
argumentando que o Judiciário brasileiro é um dos mais produtivos do mundo
(mesmo tendo 80 milhões de processos pendentes), há um risco muito maior
decorrente da ganância e da insensibilidade social que grassa entre juízes,
desembargadores, promotores e procuradores.
Empunhando uma motosserra como símbolo de campanha, Javier
Milei teve ascensão meteórica na Argentina prometendo desbancar a “casta” -
expressão repetida à exaustão para designar a classe de políticos e outras
autoridades que sangram os cofres públicos em proveito próprio.
Há mais de um ano no poder, o presidente argentino não
moderou o discurso. Em entrevista à revista The Economist, Milei descreveu o
Estado como “uma violenta organização criminosa que vive de uma fonte
coercitiva de renda, chamada imposto, que é um remanescente da escravidão”.
Essa visão extremamente negativa sobre o setor público
também orienta as ações de Elon Musk à frente do recém-criado Departamento de
Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês) nas primeiras semanas da
presidência de Donald Trump nos Estados Unidos.
Os conflitos de interesses na atuação governamental de Musk
são inúmeros. Além dos contratos que sua empresa de exploração espacial, a
SpaceX, possui com agências governamentais como Nasa e Pentágono, a Tesla é
impactada por decisões de outras duas áreas sensíveis na nova gestão de Trump:
a política ambiental e as tarifas comerciais com a China, ambas fundamentais
para a prosperidade de seus negócios com veículos elétricos. Para completar, a
ofensiva dos executivos do DOGE para ter acesso a sistemas administrativos e de
pagamentos do governo americano beneficiam diretamente a xAI, empresa de
inteligência artificial do homem mais rico do mundo. Ainda assim, Musk goza de
imenso prestígio junto a Trump e sua equipe recebeu livre acesso para acessar
bases de dados, analisar as contas e implementar ações para reduzir as
despesas.
Em nome do ajuste fiscal ou da eficiência governamental,
tanto Milei quanto Musk têm revisado contratos, fechado órgãos, eliminado
serviços públicos e transferências governamentais e dispensado servidores
públicos. Para além da economia de gastos visada, porém, há uma clara
orientação política nas decisões tomadas.
“Meu desprezo pelo Estado é infinito”, provoca Milei. Nas
primeiras ações tomadas pelo DOGE de Musk, os principais alvos são servidores e
programas não alinhados ideologicamente com o trumpismo. As vítimas, em ambos
os casos, são as populações marginalizadas, até então beneficiadas por
políticas públicas, transferências de renda e ações afirmativas que estão sendo
drasticamente reduzidas ou mesmo desativadas.
O que vem acontecendo nos Estados Unidos e na Argentina
deveria servir de alerta para os agentes do Judiciário brasileiro. Ainda na
fala de abertura no STF, Barroso disse que a legitimidade dos magistrados é a
formação técnica e a imparcialidade na interpretação das leis para decidir
questões mais complexas e divisivas da sociedade.
O presidente do STF, porém, se nega a reconhecer que a cada
manchete noticiando pagamentos de centenas de milhares ou até mesmo milhões a
seus integrantes, o próprio Poder Judiciário mina sua credibilidade e o
respeito que ainda recebe do cidadão brasileiro.
Essa desconexão com a realidade do brasileiro comum,
assalariado ou microempreendedor, para quem cada penduricalho supera uma vida
de suor e trabalho, cria o caldo de cultura que permite a ascensão de Mileis e
de Trumps com seus Musks a tiracolo.
Quando a motoserra chegar, palavras bonitas não protegerão a
casta.


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