Está feia a coisa nos Estados Unidos. A Universidade
Columbia capitulou e, para que suas verbas federais não sejam cortadas,
intervirá no departamento de Estudos do Oriente Médio e instalará uma polícia
interna para coibir manifestações da esquerda radical. Não vai parar lá. O
governo de Donald Trump pretende usar os recursos que distribui às grandes
universidades com o objetivo de interferir nos cursos que podem ser oferecidos.
Quanto isso é distinto das ações da Justiça brasileira, do Supremo Tribunal Federal,
que criou uma lista de banimento em que algumas vozes não podem ter acesso às
redes sociais no Brasil? A comparação pode parecer esdrúxula no primeiro
momento, mas não é. E, na esteira da série “Adolescência”, grande sucesso desta
temporada da Netflix, uma
conversa maior nasce a respeito de como a internet mexe conosco. Sim, os três
temas se encontram.
O Zeitgeist, o espírito do tempo em
que vivemos, é simultaneamente mais censor e mais agressivo. Vivemos uma época
marcada pela intolerância. Isso começa na maneira como a internet reorganiza as
sociedades. O menino Jamie, da série “Adolescência”, vive como todos nós,
simultaneamente no mundo virtual e no real. No real, apresenta uma face. No
virtual, encontra uma comunidade que o acolhe. Essa comunidade ouve suas dores
e retribui com reconhecimento. Mais que isso: insufla essa sensação. Estimula-o
a ver-se como injustiçado perante o mundo. Transforma quem o rejeita em
caricatura. Na série, trata-se de uma comunidade misógina. Mas que comunidade
virtual não funciona, essencialmente, seguindo os mesmos mecanismos?
Ambientes de direita, na internet, acolhem os seus e
transformam quem é de esquerda numa versão caricaturalmente vilanesca. O mesmo
se dá na esquerda. Muitos dos jovens que protestam nos campi das universidades
americanas se radicalizaram e criaram um ambiente hostil para jovens judeus. Ou
jovens conservadores. Claro: a direita representada por Trump ameaça a essência
da democracia americana. Quer intervir no currículo das universidades, coisa
que qualquer presidente anterior jamais cogitaria. Mas isso não muda o fato de
também a esquerda ser intolerante.
Os algoritmos das próprias redes ajudam. Eles nos apresentam
vozes de quem discordamos, mas sempre na versão mais radical e mais
caricatural. Somos cada vez menos apresentados a vozes moderadas. Cada vez
menos nos expomos a diálogos francos, abertos, recheados com argumentos sólidos
de que discordamos. Quando o que vemos do outro lado é sempre a caricatura
radical, quando não temos qualquer incentivo a reagir à versão mais sólida e
razoável dos argumentos de quem discordamos, o resultado é uma democracia mais
fraca. Pior: o resultado é um ambiente em que desperta o desejo constante de
calar o outro.
Neste momento, todos os lados do debate público acreditam
que calar o outro é uma ideia razoável. E todos querem isso em nome da
democracia. A democracia está sob ameaça. Há entre nós um movimento autoritário
e populista, na maioria das vezes vindo do flanco direito. Mas estamos nos
esquecendo do que torna as democracias fortes. É o debate. Um debate franco,
aberto, em que todas as ideias possam ser testadas. Em que absurdos podem ser
ditos livremente, e em que qualquer ideia que ganhe popularidade tenha espaço
para ser desafiada. Só que, para isso ocorrer, precisamos defender a
diversidade de ideias e debatedores.
A democracia é o regime em que ideias nunca são impostas. É
preciso persuadir. Convencer. Só se convence quando há espaço aberto para
qualquer um se apresentar livremente. Ideias que nos convencem são mais sólidas
que as impostas. Há limite? Claro. Quando há ameaça real de dano. Se o ato de
calar se torna corriqueiro, então a censura já não é mais exceção. Isolados
como estamos, em comunidades digitais onde somos sempre vítimas do outro, onde
o outro é sempre vilão e nós os únicos puros, somos cada vez menos expostos ao
outro.
As democracias estão enfraquecidas não porque haja ideias
erradas circulando. Mas porque somos cada vez menos expostos à diversidade de
ideias. Porque chegamos ao ponto de considerar quem pensa diferente o inimigo.
Nos odiamos. Há uma doença, uma doença coletiva que só será curada quando
tivermos a coragem de ouvir, de peito aberto, o diferente.
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