terça-feira, 25 de março de 2025

VIVEMOS UM TEMPO MAIS CENSOR E MAIS AGRESSIVO

Pedro Doria, O Globo

Está feia a coisa nos Estados Unidos. A Universidade Columbia capitulou e, para que suas verbas federais não sejam cortadas, intervirá no departamento de Estudos do Oriente Médio e instalará uma polícia interna para coibir manifestações da esquerda radical. Não vai parar lá. O governo de Donald Trump pretende usar os recursos que distribui às grandes universidades com o objetivo de interferir nos cursos que podem ser oferecidos. Quanto isso é distinto das ações da Justiça brasileira, do Supremo Tribunal Federal, que criou uma lista de banimento em que algumas vozes não podem ter acesso às redes sociais no Brasil? A comparação pode parecer esdrúxula no primeiro momento, mas não é. E, na esteira da série “Adolescência”, grande sucesso desta temporada da Netflix, uma conversa maior nasce a respeito de como a internet mexe conosco. Sim, os três temas se encontram.

O Zeitgeist, o espírito do tempo em que vivemos, é simultaneamente mais censor e mais agressivo. Vivemos uma época marcada pela intolerância. Isso começa na maneira como a internet reorganiza as sociedades. O menino Jamie, da série “Adolescência”, vive como todos nós, simultaneamente no mundo virtual e no real. No real, apresenta uma face. No virtual, encontra uma comunidade que o acolhe. Essa comunidade ouve suas dores e retribui com reconhecimento. Mais que isso: insufla essa sensação. Estimula-o a ver-se como injustiçado perante o mundo. Transforma quem o rejeita em caricatura. Na série, trata-se de uma comunidade misógina. Mas que comunidade virtual não funciona, essencialmente, seguindo os mesmos mecanismos?

Ambientes de direita, na internet, acolhem os seus e transformam quem é de esquerda numa versão caricaturalmente vilanesca. O mesmo se dá na esquerda. Muitos dos jovens que protestam nos campi das universidades americanas se radicalizaram e criaram um ambiente hostil para jovens judeus. Ou jovens conservadores. Claro: a direita representada por Trump ameaça a essência da democracia americana. Quer intervir no currículo das universidades, coisa que qualquer presidente anterior jamais cogitaria. Mas isso não muda o fato de também a esquerda ser intolerante.

Os algoritmos das próprias redes ajudam. Eles nos apresentam vozes de quem discordamos, mas sempre na versão mais radical e mais caricatural. Somos cada vez menos apresentados a vozes moderadas. Cada vez menos nos expomos a diálogos francos, abertos, recheados com argumentos sólidos de que discordamos. Quando o que vemos do outro lado é sempre a caricatura radical, quando não temos qualquer incentivo a reagir à versão mais sólida e razoável dos argumentos de quem discordamos, o resultado é uma democracia mais fraca. Pior: o resultado é um ambiente em que desperta o desejo constante de calar o outro.

Neste momento, todos os lados do debate público acreditam que calar o outro é uma ideia razoável. E todos querem isso em nome da democracia. A democracia está sob ameaça. Há entre nós um movimento autoritário e populista, na maioria das vezes vindo do flanco direito. Mas estamos nos esquecendo do que torna as democracias fortes. É o debate. Um debate franco, aberto, em que todas as ideias possam ser testadas. Em que absurdos podem ser ditos livremente, e em que qualquer ideia que ganhe popularidade tenha espaço para ser desafiada. Só que, para isso ocorrer, precisamos defender a diversidade de ideias e debatedores.

A democracia é o regime em que ideias nunca são impostas. É preciso persuadir. Convencer. Só se convence quando há espaço aberto para qualquer um se apresentar livremente. Ideias que nos convencem são mais sólidas que as impostas. Há limite? Claro. Quando há ameaça real de dano. Se o ato de calar se torna corriqueiro, então a censura já não é mais exceção. Isolados como estamos, em comunidades digitais onde somos sempre vítimas do outro, onde o outro é sempre vilão e nós os únicos puros, somos cada vez menos expostos ao outro.

As democracias estão enfraquecidas não porque haja ideias erradas circulando. Mas porque somos cada vez menos expostos à diversidade de ideias. Porque chegamos ao ponto de considerar quem pensa diferente o inimigo. Nos odiamos. Há uma doença, uma doença coletiva que só será curada quando tivermos a coragem de ouvir, de peito aberto, o diferente.

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