Vivemos uma espécie de distopia, uma inversão de valores
que me causa estranheza e preocupação
Vivemos uma espécie de distopia, uma inversão de valores que
me causa estranheza e preocupação. A maior potência do planeta — ou seria
a China? — é governada por um narcisista. Alguém que, apesar de promover uma
perseguição sem precedentes aos imigrantes ilegais e travar uma batalha
ideológica contra as maiores universidades de seu país, faz uma autocampanha
para ganhar o Nobel da Paz. Um chefe de Estado que se orgulha de ter acabado
com a guerra entre Israel e Irã, mesmo que tenha mandado seus caças e bombardeios
atacarem o território iraniano e ameaçado matar o aiatolá Ali Khamenei. Um
presidente que impõe tarifas ao mundo para dobrar-lhe os joelhos e fazer valer
seus interesses econômicos; que não se furta em se intrometer em assuntos de
outras nações, em uma clara ingerência política e diplomática; e que demite a
diretora do próprio Federal Reserve (Banco Central dos EUA), ainda que essa
atribuição não seja sua.
A distopia faz com que alguns normalizem o
fato de um deputado federal licenciado fazer uma campanha deliberada contra a
economia da própria nação, à sombra daquele mesmo líder americano, apenas para
impedir que o Supremo Tribunal Federal honre seu papel de guardião da
Constituição. Esse mesmo deputado, a partir dos Estados Unidos, tenta obter à
marra uma anistia para o pai, acusado de golpismo, e ameaça jogar no desemprego
e na sarjeta milhões de brasileiros. Como ele próprio disse, em um cenário de
terra arrasada no Brasil, pelo menos se sentirá vingado.
Depois da doutrinação ideológica, muitos brasileiros aceitam
passivamente a matança na Faixa de Gaza como uma ação legítima contra o grupo
terrorista Hamas. Não se comovem com as cenas de horror, os corpos empilhados,
os seres humanos castigados pela fome e transformados em ossos e pele. A
indiferença de muitos países lança a humanidade em uma letargia. É quase como a
também normalização da morte em massa. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin
Netanyahu, considera um ataque ao único hospital em funcionam na Faixa de Gaza
e os assassinatos de cinco jornalistas no bombardeio de segunda-feira, em Khan
Yunis, como um "acidente trágico". É quase sempre a mesma
desculpa esfarrapada: a de que o Hamas usa hospitais como base. Como se isso
legitimasse o massacre de civis. Ontem, Israel afirmou ter eliminado "seis
terroristas" no hospital e alegou que o alvo era um cinegrafista do
Hamas.
No Brasil, não se pode mais defender as aspirações
— legítimas, diga-se de passagem — do povo palestino por um Estado
independente e soberano. Pouco antes de escrever este artigo, o ministro da
Defesa de Netanyahu, Israel Katz, chamou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
de "antissemita apoiador do Hamas". Tudo porque Lula tocou em um
grande tabu, ao comparar as ações das Forças de Defesa de Israel em Gaza às do
Exército nazista durante o Holocausto. Todos os dias recebemos imagens de Gaza
pelas agências de notícias. Muitas delas mostram crianças de corpos esquálidos,
engolidos pela fome.
A distopia segue seu curso na guerra da Rússia contra a
Ucrânia. O presidente Vladimir Putin parece determinado a forçar a ex-república
soviética a ceder parte de seu território. É mais um absurdo de um conflito
repleto de absurdos. As forças russas sequestraram cerca de 20 mil crianças
ucranianas e as levaram para territórios ocupados ou para a própria Rússia.
Mais um sinal de um mundo em dessaranjo.


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