Sobram motivos para a crescente ira cívica diante do
apodrecimento moral, ético e político da Casa do Povo
Uma parte do Brasil promete ir às ruas hoje. A esbórnia
encenada na Câmara acéfala do minúsculo Hugo Motta, e pela liderança ressentida
de Davi Alcolumbre no Senado, conseguiu atropelar o torpor nacional.
Truculência institucional à parte, o estopim para a convocação dos movimentos
sociais de esquerda foi a aprovação do PL da Dosimetria, que reduz as penas
para condenados nos atos antidemocráticos do 8 de Janeiro, enxugando para pouco
mais de 36 meses os 27 anos de prisão do chefe da quadrilha e ex-presidente,
Jair Bolsonaro.
Sobram, portanto, motivos para a crescente ira cívica diante
do apodrecimento moral, ético e político da Casa do Povo. Mas indignação sem
ação serve apenas para aplacar a consciência do indignado — libera-o da
obrigação de analisar como chegamos a este nível de apodrecimento. Ir às ruas
empunhando um cartaz “Congresso Inimigo do Povo” é fácil, porém quase suicida —
equivale ao direitista “STF Inimigo do Povo”. Bem mais eficaz é tomar as ruas
nomeando quem julgamos indignos do voto recebido e trabalhar para que não sejam
reeleitos.
De todo modo, a força das massas pode ser
contagiosa. Dependendo de sua autenticidade, dinâmica e representatividade, ela
consegue mover indecisos, atropelar a mídia, surpreender pesquisas de opinião e
perturbar os encastelados no poder. Isso em regimes de instituições (ainda)
democráticas. Para regimes opressivos, a conversa é outra. Nenhum poder
totalitário se mantém só por meio de coação, mas pelo conformismo de boa parte
da população em agir como se acreditasse na ideologia oficial.
Um ensaio publicado pelo dramaturgo, poeta e posteriormente
estadista Václav Havel, da antiga Tchecoslováquia comunista, traz um
ensinamento. O texto de 1978, intitulado “O poder dos sem-poder”, analisa o
sistema pós-totalitário da Europa Oriental. Nele, argumenta o autor, mesmo
aqueles que parecem impotentes diante de regimes opressores detêm poder — não
força física nem poder político, mas a capacidade de “viver na realidade”.
Ao contrário dos dissidentes heroicos idealizados pela
História, Havel escolhe para sua metáfora um quitandeiro comum cuja clareza
moral e recusa em continuar com uma farsa cotidiana conseguem perturbar a ordem
vigente. Certa manhã, o tal quitandeiro simplesmente não afixa na porta da
quitanda o cartaz oficial que sempre montou automaticamente:
— Trabalhadores do mundo, uni-vos.
Não por afronta. Apenas se deu conta de que não acreditava
naquele slogan, por isso decidiu removê-lo. Apenas para agradar a si mesmo,
adquirindo no ato um poder latente que brotou da recusa em participar de uma
mentira institucionalizada.
O quitandeiro agora dissidente passa a não mais votar em
eleições que sabe serem uma farsa e começa a falar o que pensa. Rejeita o
ritual, quebra as regras do jogo e destrói o mundo de aparências, pilar
fundamental do sistema. Será dispensado do cargo de quitandeiro e desterrado
para o armazém. O salário será reduzido, o sonho de férias na Bulgária
evaporará, e o ensino superior dos filhos será cancelado. Mas dará a sua
pequena liberdade um significado concreto: a tentativa de viver dentro da
verdade e de permitir que outros espiassem atrás da cortina das aparências.
Ressalvas não faltam à aplicabilidade prática do conceito de
resistência moral nos contextos em que o enfrentamento direto e a busca por
mudanças estruturais são imprescindíveis. Concentrar-se na dissidência
individual e na linguagem da verdade soa ingênuo, insuficiente e moralista.
Além disso, a ideia de que a mentira institucionalizada só se mantém pela
conformidade geral tampouco capta a complexidade das relações de poder. Mas
vale lembrar que foi com ideias assim que o dissidente Havel tornou-se presidente,
primeiro da Tchecoslováquia e, na sequência da divisão do país já
democratizado, da República Tcheca, por dois mandatos.
Cidadãos detêm inúmeras formas de defender sua democracia.
Somente entre 1900 a 2006, as pesquisadoras americanas Erica Chenoweth e Maria
Stephan analisaram 323 movimentos de resistência democrática bem-sucedidos no
mundo. Daí a pergunta persistente envolvendo os Estados Unidos às vésperas de
seus 250 anos de Independência: por que não surgiu nenhum movimento de
resistência à sistemática corrosão das instituições americanas empreendida por
Donald Trump em seu segundo mandato? Esse “miasma de passividade”, como
escreveu David Brooks na revista The Atlantic, assusta.
Daí ser bom o Brasil sair às ruas em pleno domingão
pré-natalino para se fazer ouvir. Quem sabe o ruído chega aos múltiplos
representantes do povo no Congresso que há muito perderam vergonha, decência e
respeito?


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