A canção descreve algo que move a vida e vem do corpo, do
desejo, da folia e da angústia, presente em todos os lugares: do sagrado ao
profano, do íntimo ao coletivo
Um dos momentos mais sublimes da cultura brasileira foi a
gravação ao vivo de O que será? (À flor da pele) por Milton Nascimento e Chico
Buarque, no programa Chico & Caetano, exibido em 14 de março de 1987. O
encontro histórico cristalizou um instante raro da música brasileira: dois
artistas em sintonia plena, interpretando a canção lançada no álbum Meus caros
amigos. A abertura vocal profunda e comovente do artista, que Elis Regina
resumiu na frase “Se Deus cantasse, seria com a voz do Milton”, e o olhar marejado
de Chico ao iniciar o dueto compõem uma cena antológica, dessas que eternizam
os artistas e suas obras.
O que será? foi composta em 1976 para o
filme Dona Flor e seus dois maridos, dirigido por Bruno Barreto e inspirado no
romance homônimo de Jorge Amado. A canção tem três versões — Abertura, À flor
da pele e À flor da terra — que marcam passagens distintas da narrativa.
Segundo Chico Buarque, talvez para driblar a censura prévia vigente à época, as
letras não guardam relação direta com o país. A força da obra está na
universalidade do texto e na qualidade melódica.
O dueto com Milton não estava nos planos iniciais. Após
ouvir Francis Hime tocar a canção ao piano, nos estúdios da gravadora, Milton
se encantou e sugeriu a interpretação em duo. Chico e Francis acolheram a ideia
e finalizaram os arranjos já considerando a voz de Milton. O que será? saiu no
álbum Meus caros amigos, enquanto Milton a gravou em Geraes. Na versão
cinematográfica, a canção foi interpretada por Simone.
Em 1992, ao acessar sua ficha no DOPS, Chico se surpreendeu
com a leitura feita pelos censores. Em declaração ao Jornal do Brasil,
comentou: “acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se
soubesse, não teria cabimento explicar”. Desde então, a música se consolidou
como ícone do nosso lirismo cult — um amor avassalador, uma paixão que brota à
flor da pele e escapa a qualquer controle ou explicação racional.
Há 50 anos, versos como “não tem governo, nem nunca terá”,
“não tem juízo”, “não tem vergonha” foram lidos como crítica sutil à ditadura
militar, um hino à liberdade que driblava a censura. A canção descreve uma
força que move a vida — corporal e espiritual —, atravessando o sagrado e o
profano, o privado e o coletivo.
Esperança utópica
Muito elogiada pela crítica por sua densidade e pelo jogo
preciso com as palavras, a obra captura a essência do amor e do mistério
humano. A melodia e as vozes de Milton e de Simone, em especial, ampliam a
sensação de entrega. O que será? tornou-se um clássico do cancioneiro porque
permite que cada ouvinte projete suas paixões e inquietações, sendo, ao mesmo
tempo, celebração do desejo, metáfora da resistência e reflexão sobre forças
indomáveis da experiência humana.
Escrita sob a ditadura, a interpretação antológica de Chico
e Milton permanece perturbadora. Enviei o vídeo dessa gravação icônica como
votos de feliz ano-novo a amigos. Em um grupo de vizinhança supostamente
apolítico, o vídeo foi censurado e removido pelo administrador — talvez por
antipatias pessoais, talvez por evocar os anos sombrios dos 1970, quem sabe por
ser visto como ameaça aos bons costumes. A reação, ainda que trivial, diz muito
sobre o nosso tempo: o desejo, quando se expressa com força e beleza, continua
perturbando. A música fala do desejo em sua forma mais profunda:
“O que será que me dá/ Que me bole por dentro, será que me
dá/ Que brota à flor da pele, será que me dá (…)/ O que não tem remédio, nem
nunca terá/ O que não tem receita (…)/ Que é feito estar doente de uma folia/
Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem
todos os quebrantos, toda alquimia/ E nem todos os santos, será que será(…)/
Que me queima por dentro, será que me dá/ Que me perturba o sono, será que me
dá/ Que todos os tremores me vêm agitar/ Que todos os ardores me vêm atiçar/
Que todos os suores me vêm encharcar/ Que todos os meus nervos estão a rogar/
Que todos os meus órgãos estão a clamar…”
Em que momento Chico Buarque ultrapassou os limites da MPB e
passou a integrar o repertório da poesia brasileira? Estudiosa da sua obra,
Adélia Bezerra de Meneses, professora de Literatura da USP, destaca que sua
poesia sempre foi reconhecida por Antônio Cândido e Carlos Drummond de Andrade.
“O que será” representa de forma paradigmática a variante utópica do
compositor. Para Adélia, é uma canção “visionária e épica, um canto libertário,
erótico e político”.
Ao fim de um ano difícil, o dueto de Chico e Milton nos chega aos sentidos como um lembrete poderoso. Ali há algo que insiste em brotar, apesar de tudo. Algo que não tem governo, nem receita, nem remédio — mas que mantém vivos os afetos, a imaginação e a esperança. Que esse canto nos acompanhe na nova travessia. O que será? representa uma ode à esperança. Feliz ano-novo!
Estarei de volta em 6 de janeiro de 2026.


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