Marta Suplicy lia os capítulos finais de Ma Double Vie,
autobiografia da atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923), quando, há alguns
dias, ressurgiu no País a polêmica sobre a publicação de biografias não
autorizadas. O estopim foi a declaração de apoio de Caetano Veloso, Chico
Buarque e Gilberto Gil à bandeira carregada há anos por Roberto Carlos - em
2007, o Rei conseguiu na Justiça recolher das livrarias Roberto Carlos em
Detalhes, de Paulo César de Araújo.
Até então, a ministra da Cultura acompanhava "com
cautela" o debate que corre tanto no Congresso quanto no Supremo Tribunal
Federal. Dizia estar "ouvindo todos os setores interessados para formar
uma convicção". Mas, embora o governo ainda não tenha se posicionado,
Marta decidiu falar. "Marx, Kennedy, Picasso ou Marilyn seriam maiores se
não soubéssemos de seus deslizes? Certas figuras são tão grandes que
transcendem seus pecadilhos ou pequenezas." Em outras palavras:
"Minha opinião caminha para o apoio à liberdade de expressão, com multas
mais vultosas aos autores que infringirem a verdade e a imagem do
biografado".
A discussão está no limbo da Câmara. O projeto foi parar no
fim da fila de 1.200 propostas - também à espera de votação - e corre risco de
caducar. No STF, Cármen Lúcia, relatora da ação proposta por editoras para
acabar com a autorização prévia de biografados ou familiares, convocou para
novembro audiência pública com o intuito de discutir o tema antes da votação em
plenário. Para Marta, será "péssimo" se o Supremo julgar a ação antes
de o Congresso se posicionar. "Mais uma vez, o Legislativo não cumprirá o
seu papel e dever. É a judicialização da política."
O debate está longe do fim. Enquanto isso, a ministra foca
seus esforços no projeto que encara como "a possível grande marca do governo
Dilma": o Vale Cultura. E até o final de sua gestão, quer tirar do papel
pedido feito por Dilma quando assumiu o MinC, há um ano: a federalização do
Museu de Brasília. Mais: almeja construir na capital federal um museu
afro-brasileiro.
A seguir, os principais trechos da conversa.
Qual é a opinião do governo sobre o debate a respeito das
biografias não autorizadas?
MARTA SUPLICY - O governo não se posicionou. O Ministério da
Cultura tem procurado as diferentes opiniões com interesse e respeito pela
suscetibilidade que o assunto traz.
E qual é a sua opinião?
MARTA SUPLICY - Minha opinião vem se afunilando. No momento,
caminha para o apoio à liberdade de expressão, com multas mais vultosas aos
autores que infringirem a verdade e a imagem do biografado. Surge o problema
complexo do que seja a verdade - que sempre pode ser entendida ou interpretada
por vários ângulos. E, se for verdade, que nível de autoridade a pessoa tem
sobre o que ela quer preservar de sua intimidade? Existe um problema mais
fácil: quando o biógrafo falta com a verdade. O debate é saudável numa
democracia, desde que não entremos em ofensas pessoais, absolutamente
desnecessárias e criadoras de turbulência no processo. Marx, Kennedy, Picasso
ou Marilyn seriam maiores se não soubéssemos de seus deslizes? Certas figuras
são tão grandes que transcendem seus pecadilhos ou pequenezas.
Concorda com a proposta de o biografado receber alguma
porcentagem dos direitos autorais?
MARTA SUPLICY - A ideia parece ser para inibir interesses
comerciais, mas não creio que seja o melhor caminho.
Cármen Lúcia marcou audiência pública para debater a
questão. Mas Joaquim Barbosa já defendeu a publicação das biografias não
autorizadas. Como o STF vai decidir o imbróglio?
MARTA SUPLICY - Existe a possibilidade de a ministra Cármen
Lúcia julgar a ação (proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros,
questionando trecho do Código Civil que trata da honra e da vida privada das
pessoas) antes de o Congresso se posicionar - o que será péssimo. Pois, mais
uma vez, o Legislativo não cumprirá o seu papel e dever. É a judicialização da
política.
Como o discurso de Luiz Ruffato, a ausência de Paulo Coelho
e as críticas à seleção dos escritores pela ausência de negros e aos R$ 18,9
milhões investidos na Feira de Frankfurt foram encarados pelo governo?
MARTA SUPLICY - O Brasil entrou na fita. Não sei se da
melhor maneira, mas certamente não como pensávamos. Segundo o presidente da
Feira, Jürgen Boos, o Brasil deixou de ser um País colorido onde ninguém
trabalha.
Qual a sua avaliação após um ano à frente do MinC?
MARTA SUPLICY - Quando entrei no Ministério da Cultura - que
é gigantesco, com sete entidades coligadas e oito secretarias -, escolhi três
prioridades. Primeiro: fazer andar os projetos estruturantes para a cultura que
estavam parados no Congresso; depois, a inclusão social, uma marca de Dilma e
Lula; e, por fim, a internacionalização da cultura brasileira.
Sentia falta de metas no MinC?
MARTA SUPLICY - Não. É que entrei em um ministério enorme.
Estão vinculadas ao MinC a Fundação Rui Barbosa, a Fundação Cultural Palmares,
a Ancine, a Biblioteca Nacional. Tive de conhecer primeiro cada uma dessas
instituições e seus desempenhos para fazer uma avaliação. O mesmo fiz nas oito
secretarias. São muitos atores no ministério. E é um povo muito diverso. Vamos
desde as tradições populares e culturais até os museus muito sofisticados,
passando pelo cinema e pelos artistas exigindo melhorias em suas condições. Era
fundamental que eu fizesse essa análise. Só depois disso - e levando em conta
que teria dois anos para conseguir fazer algo - me perguntei: quais são os
projetos fundamentais? O primeiro: o Sistema Nacional de Cultura, que estrutura
a área cultural e permite que União, estados e municípios tenham um eixo de
passagem de recursos.
De que forma?
MARTA SUPLICY - Fazendo com que cada cidade, mesmo aquelas
com 10 mil habitantes, tenha um plano de cultura e uma organização cultural
para funcionar como um fundo. A ideia é obrigar as cidades a discutirem um
plano de cultura para que, a partir disso, possam ter recursos do Ministério da
Cultura. É um plano estrutural muito importante para a próxima década.
Esse plano não existia?
MARTA SUPLICY - Não. Todo mundo quer os recursos, mas o
ministério não sabe como dar. Não é isonômico, há os que pedem com mais poder e
os com menos poder - ou com mais ou menos influência. Além do Sistema Nacional
de Cultura, tinha de aprovar o Vale Cultura - porque é estruturante para a
cultura e pode ser a marca do governo Dilma. É, até agora, o que o diferencia
do governo Lula.
Quais eram as prioridades no Congresso Nacional?
MARTA SUPLICY - Havia uma demanda da classe artística, há
muitos anos, em relação à fiscalização do Ecad. No começo de julho, conseguimos
aprovar a lei que muda as regras no Ecad. E, há alguns dias, foi aprovada a PEC
da Música, que isenta de impostos a produção de CDs e DVDs de artistas
brasileiros. Depois de pensar nos projetos estruturantes para a cultura e nos
que estavam parados no Congresso, fui para a inclusão social. Foi aí que
percebi que a Lei Rouanet não atendia grupos pequenos. Daí fizemos os editais
para os grupos que não tinham acesso à lei.
Como aconteceu com a moda?
MARTA SUPLICY - Sim. Mas também estou falando de editais
para negros, mulheres, ciganos e povos indígenas.
Não é uma forma de preconceito? Pegar minorias e
destacá-las?
MARTA SUPLICY - Não. Porque não se pode tratar diferentes
como iguais. Olhei para a Rouanet e vi que essas minorias raríssimas vezes
conseguem ter um projeto aprovado. E mais: quando o projeto é aprovado, não
conseguem captar o dinheiro. Ninguém quer patrocinar projetos LGBT, por
exemplo. Ninguém quer patrocinar uma produção negra. Eles não conseguem ter
acesso aos que decidem os projetos nas empresas.
O Vale Cultura começou a vigorar este mês. Como está a adesão
das empresas?
MARTA SUPLICY - Já temos 11 operadoras de cartões de crédito
inscritas e abrimos inscrições para as empresas. Este ano será de promoção e
divulgação. O programa ainda é novo para as pessoas, para as empresas e já
estamos no final do ano.
É momento de implantação.
MARTA SUPLICY - É hora de as pessoas começarem a entender do
que se trata, de ele ser discutido em negociações coletivas. As empresas estão
começando a aderir e comecei a ter a percepção - que não sei se será certa - de
que as empresas simples e de lucro presumido serão as que mais vão aderir.
Por quê?
MARTA SUPLICY - Comecei a ver pequenos empresários, como
donos de padarias, dizendo que seus funcionários pediram "esse Vale
Cultura". O patrão resolve dar porque são R$ 50 não tributados.
O Vale Cultura será a grande bandeira de sua gestão?
MARTA SUPLICY - A grande bandeira foi aprovar a estrutura de
leis da cultura que estavam no Congresso havia oito anos e não passavam. Isto,
sim, é uma grande marca, uma grande conquista.
Embora a moda tenha sido incluída na Lei Rouanet, nomes como
Pedro Lourenço, Alexandre Herchcovitch e Ronaldo Fraga não conseguiram captar
recursos para seus desfiles. O que deu errado?
MARTA SUPLICY - Não deu errado. Mas acho que, com o fato de
a moda ter sido incluída na Rouanet, se criou uma discussão muito boa sobre a
lei. Primeiro, foi difícil as pessoas entenderem que moda é cultura. As
gerações, as décadas, os anos e os séculos passam e muita de sua tradução está
na moda. Para entendermos como viviam as mulheres do século 18, olhamos para
suas vestimentas. Veremos que não eram iguais às do século 15 nem iguais às de
hoje. E isso tem a ver com a evolução da condição da mulher. A moda é parte da
cultura e nos ajuda a compreender a civilização. Mas, em meio à confusão, uma
barreira foi quebrada.
Quando assumiu o ministério, a presidente lhe fez algum
pedido especial?
MARTA SUPLICY - Sim. Falou que queria a federalização do
Museu de Brasília. Ela gostaria que ele abrigasse a coleção de artes de todas
as estatais.
E como está esse projeto?
MARTA SUPLICY - Tem certa resistência de opositores
políticos ao governador (do Distrito Federal,Agnelo Queiroz), que acham que a
proposta tem de ser votada na Câmara. Mas temos um projeto de construir em
Brasília um museu do acervo afro-brasileiro. Será em um terreno que Cristovam
Buarque doou para a Fundação Palmares, uma de nossas coligadas, quando Nelson
Mandela visitou Brasília. Será nos moldes do Museu da Língua Portuguesa. E
mostrará, por meio da tecnologia, a história não contada.
Fala-se que a senhora pode substituir Aloisio Mercadante no
Ministério da Educação.
MARTA SUPLICY - Olha, não existe a menor possibilidade de
isso acontecer. Há um ano, assumi um compromisso com a cultura brasileira e com
segmentos da cultura brasileira. Sinto que estou fazendo um trabalho de fôlego,
que precisa de tempo. Espero que a presidente Dilma permita que eu fique até o
final de 2014.
Gostaria de voltar a disputar algum cargo em São Paulo?
MARTA SUPLICY - Não penso nisso.
Nem o governo do Estado?
MARTA SUPLICY - Também não existe uma possibilidade no
governo do Estado. O PT já tem candidato, é o meu candidato (Alexandre
Padilha). Acho que ele poderá fazer um excelente governo - tem capacidade de
ampliar alianças e também uma experiência muito interessante em diferentes
setores. Espero ajudá-lo, suar a camisa para ele ganhar. Não sou candidata.
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