Do blog do Mário Magalhães
Hoje faz 40 anos que os portugueses derrubaram a ditadura
salazarista. Tim-tim.
Com a Revolução dos Cravos, a ponte sobre o rio Tejo que
homenageava o ditador Salazar mudou de nome. Passou a se chamar 25 de Abril.
Depois os “portugueses'', no sentido preconceituoso de pouco
sábio, são eles, e não nós, viventes de um país em que escolas, ginásios e até
uma ponte mantêm o nome de próceres da ditadura.
Em 2004, em jogo de legenda, a seleção portuguesa dirigida
por Felipão venceu a Inglaterra nas quartas-de-final da Eurocopa. Em casa,
acabaria perdendo a final para a Grécia.
Então colunista esportivo da “Folha'', escrevi as
maltraçadas abaixo.
* * *
Dona Luísa, seu Júlio e Felipão
O nome dele, com certeza, era Júlio. O dela, se a memória
por uma vez não trai, Luísa. Beiravam os 80 anos. Viviam em um apartamento de
quarto andar na rua Santa Marta, Lisboa. Pertinho da avenida da Liberdade, onde
ontem multidões de portugueses festejaram o triunfo.
Seu Júlio falava pouco. Dona Luísa compensava -falava pelos
dois. Tinha uma obsessão desde meio século antes, quando o tipo pacato do
marido a ninguém causava impressão. “O Júlio não é parvo, não é parvo'',
repetia.
Eu adorava provocar-lhes: “Passei hoje pela Ponte 25 de
Abril''.
“Ponte Salazar!'', retrucavam, furiosos, insistindo no velho
nome já trocado.
Ela subia a escadaria em espiral, do prédio antigo sem
elevador, e suspirava cansada: “Ai, que saudade do António''.
O dito cujo, ditador António de Oliveira Salazar, um dia
parecera-lhe imortal. Morrera muito tempo atrás.
Depois de 16 anos de Revolução dos Cravos, ganhavam uma
pensão magra. Em compensação, o aluguel, congelado, saía mais barato que um
engradado de garrafinhas de um sumo de maçã chinfrim e saboroso cuja marca o
tempo apagou da lembrança. Não poderiam ser despejados enquanto vivessem.
Alugavam dois quartos para engordar as finanças. Passei
semanas morando ali. Quando me assentara em Cascais, fui assistir com eles a um
confronto célebre da Copa de 90: Inglaterra e Camarões, 2 a 2 no tempo normal,
1 a 0 para os europeus na prorrogação. Conosco estava um jovem engenheiro do
interior, o Miguel, que continuava por lá.
Dona Luísa e seu Júlio torciam pelos ingleses. Miguel e eu,
pelos camaroneses. Os velhinhos foram calando. Olharam-se.
Até que ela, incrédula, constatou, na única vez que a ouvi
falar baixinho: “Ê, pá! Vocês estão a torcer para os pretos…''.
“Claro'', confirmamos.
“Por quê?''
Não resisti: “Quem sabe não é por isso mesmo…''.
Odiavam os africanos que acorriam a Portugal em busca de
trabalho. Também encrencavam com brasileiros, de todas as raças. “Isso tudo já
foi nosso'', comentou seu Júlio, quando a TV exibiu reportagens sobre colônias
de antanho.
Outros tantos portugueses não iam com a cara dos brasileiros
que desembarcavam onde outrora haviam embarcado seus antepassados. Era uma
reticência atávica. Por séculos, mandaram gente sem fim para além-mar. A nação
que construiu a Escola de Sagres acostumou-se com seus emigrantes. Não com os
imigrantes que agora acolhia com pé e meio atrás. Os brasileiros não
contribuíam. Nos jornais, éramos mais assíduos nas páginas de polícia.
O sucesso de Luiz Felipe Scolari na seleção portuguesa
talvez indique que as coisas tenham mudado. Pelo menos um pouquinho. Nos
tropeços, não falta dedo a acusar sua condição de estrangeiro. Mas, já por mais
de uma semana, um país inteiro, Portugal, se comove com seu time dirigido por
um técnico brasileiro.
Felipão diminui o oceano entre almas, no fundo, semelhantes.
O que pensariam seu Júlio e dona Luísa?
Parabéns por estar hoje na Premiação do TOP BLOG!
ResponderExcluirSucesso
Sandra Portugal
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