Por Jean Wyllys, deputado federal – PSOL (RJ)
A intolerância religiosa e os preconceitos em relações ao
candomblé e à umbanda sempre infiltraram os poderes da República e as
instituições do Estado que se pretende laico. E talvez pelo fato de essa
infiltração ter sido sempre negligenciada, apesar dos seus efeitos nocivos, ela
tenha feito desabar um cômodo do Judiciário: a Justiça Federal do Rio de
Janeiro definiu que umbanda e candomblé "não são religiões". Tal
definição - que mais se parece com uma confissão pública de ignorância - se deu
em resposta a uma decisão em primeira instância do Ministério Público Federal
que solicitou a retirada, do Youtube, de vídeos de cultos evangélicos
neopentecostais que promovem a discriminação e intolerância contra as religiões
de matriz africana e seus adeptos, já que o Código Penal, em seu artigo 208,
estabelece como conduta criminosa, “escarnecer de alguém publicamente, por
motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática
de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.
Em vez de reconhecer a existência da ofensa - e não há
dúvida para qualquer pessoa com um mínimo de discernimento e senso de justiça
de que a ofensa existe - a Justiça Federal do Rio de Janeiro desqualificou os
ofendidos; considerou que não "há crime se não há religião ofendida".
Para tanto, a Justiça Federal do Rio conceituou umbanda e candomblé como cultos
a partir de dois motivos absolutamente esdrúxulos (ou seria melhor dizer a partir
de dois preconceitos?): 1) candomblé e umbanda deveriam ter um texto sagrado
como fundamento (aqui a Justiça Federal ignora completamente que religiões de
matriz africana são fundadas nos princípios da transmissão oral do
conhecimento, do tempo circular, e do culto aos ancestrais); e 2) candomblé e
umbanda deveriam venerar a uma só divindade suprema e ter uma estrutura
hierárquica (aqui a Justiça Federal do Rio atualiza a percepção dos
colonizadores do século XVI de que os indígenas e povos africanos não tinham
fé, não tinham lei nem tinham rei). Pergunto: Há, na decisão da Justiça
Federal, pobreza de repertório cultural, equívoco na interpretação da lei ou
cinismo descarado?
A decisão judicial fere claramente dispositivos
constitucionais e legais, além de violar tratados internacionais como a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da
Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 1992 e que dispõe sobre a garantia de não
discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões,
políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição
econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Esse pacto diz ainda
que o direito à liberdade de consciência e de religião implica na garantia de
que todos são livres para conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar
de religião ou de crenças, bem como na liberdade de professar e divulgar sua
religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em
privado. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos afirma que ninguém pode
ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar
sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. A
liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita
unicamente às limitações existentes em leis e que se mostrem necessárias à
proteção da segurança, da ordem, da saúde ou da liberdade.
Ou seja, se há uma liberdade religiosa a ser limitada é a
daquelas religiões que usam dos meios de massa para difamar e promover a
intolerância contra outras religiões e divulgam práticas que põem em risco a
saúde coletiva, como pedir que pessoas abandonem tratamento de câncer ou aids
em nome de orações!
Ao ratificar esse Pacto, o Brasil assumiu desde 1992 o papel
de um país que tem a obrigação de respeitar direitos. Infelizmente, o Poder
Judiciário, que tem a função de "dizer o direito", de aplicar as
leis, assim não o fez, simplesmente negando a interpretação dos ditames
constitucionais e disposições supranacionais de direitos humanos.
Já foi noticiado que o Ministério Público Federal recorreu
dessa decisão, mas precisamos ficar atentos a essas manobras que perseguem,
acuam e tentam destruir o que não está de acordo com o que o fundamentalismo
religioso determina como correto. E não resta dúvida de que essa decisão
judicial é fruto do fundamentalismo religioso que avança sobre os poderes da
República. Não podemos nos esquecer de que todos estamos sob a garantia de que
podemos promover reuniões livremente para realizar cultos de qualquer
denominação - um direito individual e coletivo previsto na Constituição
Federal, artigo 5º, inciso VI.
O ataque à umbanda e ao candomblé é também um ataque de viés
racista por se tratar de religiões praticadas sobretudo por pobres e negros.
Mas é, antes, uma disputa de mercado. O que os fundamentalistas pretendem com
os ataques à Umbanda e ao Candomblé é atrair os adeptos - e, logo, o dinheiro
deles - para suas igrejas. E como vivemos sub uma cultura cristã hegemônica, que
se fez na derrisão e repressão das religiões indígenas e africanas, é óbvio que
as igrejas fundamentalistas levam a melhor nessa disputa de mercado e em suas
estratégias de difamação.
O que esperamos do Judiciário é o mínimo de justiça que
possa colocar freios à intolerância e à ganância dessas igrejas e seus
pastores; e possa assegurar a pluralidade religiosa pautada no respeito e sem
hierarquias entre as religiões.
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